O debate sobre a efetividade das normas constitucionais positivas tem se tornado, cada vez mais, lugar comum nas aulas de Teoria da Constituição. Professores e alunos dialogam sobre a problemática entre a Constituição formal e a ideia de Constituição material, em geral a partir de investigações de seu conceito político (Schmitt), sociológico (Lassalle), jurídico (Kelsen) e normativo (Hesse).
Este não é o lugar adequado para uma análise mais aprofundada de cada uma dessas definições, suas consequências teóricas e práticas e sua utilidade para a teoria constitucional contemporânea. Por esse motivo, partirei de uma delas – a proposta da Constituição normativa de Konrad Hesse – que penso melhor se adequar às exigências atuais – na tentativa de apresentar um novo elemento: o princípio factibilidade como vetor argumentativo que pode contribuir para maior justificação racional na ampliação das possibilidades de concretização do “dever ser” formalizado constitucionalmente em face da realidade fática (“ser”). Assim se supera, com ganhos, a ideia de limites em face da reserva do possível.
Sobre a força normativa da Constituição
Em aula inaugural proferida na Universidade de Freiburg-RFA, o professor alemão Konrad Hesse insurge-se contra a tese de Ferdinand Lassalle, que, ao entender que a essência da Constituição se realiza como uma lei básica, suporte de validade de todas as outras leis e tipificada pela necessariedade, defende que a Constituição formal (jurídica) não tem valor porque são os fatores reais de poder vigentes em determinado país que possuem a força ativa e irradiante de promover a organização social e a efetividade (ou não) dos direitos. Nessa leitura, o texto normativo apenas será eficaz se reproduzir fielmente as normas não escritas que imperam na realidade social.
Opondo-se a tal concepção realista da Constituição, denegatória da autonomia do Direito e de sua força normativa em face das relações de poder, Hesse propõe três questões fundamentais que, respondidas, trariam luz à questão. São elas: “1º) Existiria, ao lado do poder determinante das relações fáticas, expressas pelas forças políticas e sociais, também uma força determinante do Direito Constitucional?; 2º) Qual o fundamento e o alcance dessa força do Direito Constitucional? 3º) Não seria essa força senão uma ficção necessária para o constitucionalista, que tentar criar a suposição de que o direito domina a vida do Estado, quando, na realidade, outras forças mostram-se determinantes?”.
Ao respondê-las, Hesse, reconhece a existência de condicionamento recíproco entre a Constituição jurídica e a realidade político-social. Elas não podem ser tomadas isoladamente, sob pena de levar “quase inevitavelmente aos extremos de uma norma despida de qualquer elemento de realidade ou de uma realidade esvaziada de qualquer elemento normativo”.
Considerado esse condicionamento, o professor alemão propõe que entre as teses puramente formalistas ou exclusivamente realistas há um terceiro caminho, o da pretensão de eficácia, que se alicerça na ideia de que toda Constituição possui uma essência que deseja ser realizada, respeitando-se as condições naturais, técnicas, econômicas e sociais.
Para o autor, a “pretensão de eficácia” é elemento autônomo que vem associado às condições de sua realização e faz com que a Constituição não seja mera expressão do “ser”, mas constitua também um “dever ser” porque procura imprimir uma ordem e conformação à realidade política e social.
A Constituição jurídica estabelece uma relação de coordenação com a realidade e sua força normativa reside na capacidade de realizar sua pretensão de eficácia. Por isso, deve converter-se em força ativa e impor tarefas, ainda que respeitando a situação histórica concreta e suas condicionantes.
Essa força ativa depende da consciência geral em que esteja presente a “vontade de Constituição”, ou seja, a vontade de concretizar a ordem constitucional independente dos juízos de conveniências.
A “vontade de Constituição” se origina, primeiro, na “compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme”. Implica, também, no entendimento de que essa ordem não é apenas legitimada pelos fatos, mas demanda um constante processo de legitimação e apenas será eficaz com o concurso da vontade humana.
Nessa perspectiva, o desenvolvimento de forma ótima da força normativa da Constituição deve observar alguns pressupostos. Primeiro, ela será maior quanto mais o conteúdo corresponder aos elementos sociais, políticos e econômicos do presente. A Constituição deve também possuir capacidade de maior adaptação às mudanças das condições fáticas, o que impõe que ela se limite a poucos princípios fundamentais e não se apoie apenas em uma estrutura unilateral,conciliando estruturas contrárias;
Além do conteúdo, a práxis – entendida como “vontade de Constituição” compartilhada por todos os partícipes da vida constitucional – é decisiva para o desenvolvimento ótimo da sua força normativa. Ela demanda sacrifícios para que haja o respeito à Constituição e impõe que sejam repelidos impulsos de reforma constitucional fácil, ainda que momentaneamente mais cômodos.
Também a interpretação contribui decisivamente na consolidação da força normativa da constituição. O intérprete deve buscar a melhor adequação do sentido das proposições normativas observando as condições reais dominantes no contexto em que se apresenta.
Para Hesse, é importante que a interpretação mude quando haja mudança nas relações fáticas (mutação constitucional), respeitando, todavia, os limites estabelecidos pela proposição jurídica.
O princípio factibilidade e o incremento da pretensão de eficácia da Constituição
O princípio factibilidade é uma ideia emprestada da proposta apresentada por Enrique Dussel na obra Ética da libertação – na idade da globalização e da exclusão. Nela o filósofo argentino elabora um consistente fundamento teórico para a conciliação entre as exigências de conteúdo material e validade formal na formulação normativa da ação ética. Contudo, para além da conformação do princípio ético-material universal com o princípio de validade formal ali esboçado, Dussel verifica que é preciso que o agir ético e suas normas sejam concretizados no mundo real, empírico, produzindo efeitos bons e úteis – daí a necessidade do terceiro princípio ou momento de realização ética – o da operabilidade ou factibilidade.
E justamente esse terceiro princípio revela uma abordagem que pode gerar interessantes consequências no estudo da pretensão de eficácia da Constituição e sua justificação racional, já que diz respeito justamente à possibilidade ou impossibilidade do objeto prático da norma ética, regida pelas condicionantes econômicas e tecnológicas do ambiente em que é formulada.
Em sua leitura, Dussel recorre às formulações de Franz Hinkelammert. Este autor, ao constatar a incapacidade humana para alcançar conhecimentos perfeitos, afirma o princípio geral empírico da impossibilidade enquanto categoria das ciências sociais, de acordo com o qual o possível é o resultado da submissão do impossível ao critério de factibilidade, de modo que os deveres ético-normativos são exigíveis dentro dos quadros de factibilidade da ação proposta.
Nas palavras de Hinkelammert, “...qualquer imaginação da ‘melhor sociedade possível’ tem que partir da ‘melhor sociedade concebível’. (...) Por isso, o conteúdo do possível é sempre algo impossível, mas que dá sentido e direção ao possível, em cujo quadro se apresentam as valorações arbitrárias.Ou seja, todo possível existe em relação a uma plenitude impossível, em referência à qual é experimentado e argumentado o quadro do possível”.
A partir dessa base, Dussel defende que o princípio operabilidade/factibilidade trabalhe com uma racionalidade estratégica que, desde a consideração do horizonte ideal, enfrente o problema da efetividade normativa a partir de diversos níveis de factibilidade.
São eles os níveis da:
i) impossibilidade lógica;
ii) possibilidade lógica: impossibilidade empírica;
iii) possibilidade empírica: impossibilidade técnica (não factibilidade);
iv) factibilidade técnica: impossibilidade econômica etc.;
v) possibilidade econômica etc.: impossibilidade ética;
vi) possibilidade ética: princípio da operabilidade;
vii) processo efetivo de realização;
viii) conseqüências a curto prazo e longo prazo (institucionalidade);
ix) processo de legitimação e coerção legal.
Guardando as diferenças e a necessidade de adequações das categorias, a análise desses níveis, ou melhor, dessas regras oriundas do princípio geral de factibilidade, inspira a delimitação de critérios a serem considerados em uma teoria da pretensão de eficácia da decisão em sede de jurisdição constitucional.
Com efeito, em atendimento ao nível (i), uma norma ou decisão constitucional, para ser eficaz, deve primeiro ser logicamente válida – do ponto de vista interno (não conter contradições performáticas) – e externo (coerência e consistência em relação à Constituição).
Pelo critério (ii), a decisão, ainda que lógica e normativamente possível, não pode ser empiricamente impossível. Por exemplo, o direito à saúde é normativamente válido mas não é empiricamente possível que uma decisão determine que pessoas não fiquem doentes.
Superadas as etapas iniciais, o terceiro critério impõe que a decisão seja tecnicamente possível – p. ex., não adianta, com base nas duas primeiras regras condenar o Estado a tratar um paciente de doença grave – o que em tese é possível empiricamente – mas o estado-da-arte da técnica médica não permite que o tratamento seja eficaz. Imagine o caso de um cidadão portador do vírus HIV que tivesse proposto uma ação no ano de 1989 exigindo medicamentos que curem sua doença, quando a eficácia dos tratamentos ainda era muito rudimentar e duvidosa.
Aqui, lembrando Hesse, a interpretação deve se adaptar às mudanças nos condicionamentos técnicos – veja-se que, dez anos depois, a mesma decisão seria possível ante à evolução das técnicas de controle da doença com os coquetéis antivirais.
O quarto critério diz respeito à superação da factibilidade técnica, mas limitação em face da impossibilidade econômica. Neste ponto, a interpretação da impossibilidade econômica deve ser restritiva e devidamente demonstrada. Há que se considerar também – mais uma vez observando a exigência hessiana de adaptação às transformações nas condicionantes fáticas – que o desenvolvimento de novas tecnologias e métodos de produção bem como as políticas estatais podem levar ao barateamento dos produtos/medidas demandadas e permitir com que haja possibilidade econômica. Retomando o exemplo concreto do coquetel anti-HIV, ficou claro que a possibilidade de produção em massa dos medicamentos aliada a medidas governamentais (quebra de patentes e produção em laboratório públicos) fez com que fosse superada a impossibilidade econômica de fornecimento universal aos cidadãos que dele necessitavam.
Já o critério previsto na regra (v), uma vez adaptado à teoria do direito, parece indicar que mesmo uma norma válida, possível empírica, técnica e economicamente, pode, em situação muito excepcional, deixar de ser aplicada ante à perspectiva de gerar uma decisão insuportavelmente injusta. Aqui se manifesta o problema da derrotabilidade da norma positiva em face de princípio moral, questão de alta controvérsia, merecedor de análise mais profunda incompatível com este espaço.
Por sua vez, configurado primeiro estágio de operabilidade (item vi) o parâmetro indicado em (vii) importa em consideração do modo de efetivação da decisão, enquanto que o (viii) diz respeito às consequências, especialmente as institucionais – aqui é possível vislumbrar os efeitos de uma decisão constitucional de índole substancial no controle do orçamento público ou mesmo na estrutura de separação dos poderes.
O último critério, o (ix), traz à luz o problema da eficácia prática ante o caráter imperativo do Direito, isto é, a ordem judicial necessita ser cumprida, normalmente pelo reconhecimento de sua legitimidade e autoridade ou, de maneira anômala, pelos mecanismos de coerção legal, sob pena de configurar mera decisão figurativa, de caráter retórico-simbólico.
Essas diretrizes sedimentam a ideia da eficácia progressiva das normas constitucionais protetoras dos direitos fundamentais e sociais (inclusive com cláusula de proibição de retrocesso), sem recair em falácias argumentativas que, através do culto de conceitos abstratos de “dever-ser” acabam por ignorar a realidade e negar a efetividade a direitos constitucionalmente garantidos com base em argumentação vazia ou desprovida de qualquer comprovação empírica.
Por isso, a substituição da negação pela afirmação com eficácia progressiva nos diferentes níveis/critérios,propicia maior aplicação, in concreto, das normas constitucionais na realidade das pessoas, notadamente se houver a consciência da pretensão de sua eficácia aliada à vontade de Constituição.
Marco Aurélio Marrafon
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