"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

O problema são os políticos?



Helio Santos

Qual é realmente o problema do Brasil. Quem são os protagonistas desta peça teatral que vivemos cotidianamente?

Me faço sempre a pergunta de qual é o problema do  Brasil.

Por que um país com uma capacidade enorme e bem diversificada na produção, com terras férteis, sem grandes desastres naturais como vulcões, tempestades ou congêneres está constantemente em crise. Além disso,  somos um pais que por causa de seu relativamente simples processo de colonização não tem grandes conflitos internos atuais relacionados à política, a religião ou  a etnia.

Então novamente vem em  mente. Por que não somos uma potência mundial?

Por que somos um país pobre e com enorme desigualdades  sociais?

Tenho certeza que muitos falarão: Haa... o problema do Brasil  são os políticos. Haa.. o problema é a atual presidente  que não sabe governar. Haaa.... o problema é a corrupção dos parlamentares.

  
Pois bem, mas  quem são os políticos? Da onde eles vêm? Como são empossados?

Vivemos em uma sociedade muito individualista e "grupalista" em que todas as ações tem por objetivo único o bem-estar individual ou do seu pequeno grupo.

O outro não importa. Vivemos em uma sociedade em que o “meu” é muito mais importante que o “nosso”. 

E por este mesmo motivo é que considero que o real problema no Brasil não está nas mãos dos políticos.

Até porque os políticos do futuro são os jovens ou até as crianças de hoje que já crescem levando consigo valores distorcidos e pouco humanitários  de nossa sociedade atual.

Então como cobrar políticos descentes se nós mesmos não somos muita das vezes honestos e solidários?

As manifestações que ocorreram e que periodicamente ocorrem acerca do impeachment da atual presidente nada mais nada menos tem por objetivo a troca do poder. Mas tenha certeza que a corrupção não acabará e sim passará para as mãos de outro grupo.

O problema não está com o PT, o PMDB, o PZ ou o PW5. O problema está com o perfil dos brasileiros. Nós temos que mudar. Nós somos muita das vezes desonestos  e pensamos apenas em nós mesmos ao invés do outro.

Temos que agir para que todas as nossas ações sejam em pról do coletivo, em pról do bem-estar de todos e não apenas de nós mesmos ou de nosso pequeno grupo e isso se dá não na maior parte das vezes em pequenas ações do dia-a-dia como um bom dia, um aperto de mão, um sorriso, uma ajuda que você dá para o seu vizinho, a devolução de um troco recebido indevidamente, enfim. A grandiosidade do ato não está em sua concepção de importância e sim na repercusão que terá na vida da outra pessoa seja a curto ou médio prazo. 


E para fazer isso não é necessário ficar na inércia e se desmotivar porque ninguém faz o certo. Para contribuir para a mudança do Brasil é necessário apenas uma coisa: faça você primeiro! Assim seremos a força motriz de uma mudança plena e sustentável.

Semipresidencialismo: quando a separação entre Estado e governo pode ser desejável



Gilmar Mendes

A grave crise político-institucional que hoje atormenta o país, reforçada pelos cotidianos escândalos que revelam a capilaridade da corrupção na estrutura administrativa brasileira, não deixa dúvida de que é primordial repensar as formas pelas quais o Estado brasileiro é regido.

Coloquemos em foco o Poder Executivo Federal. Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 — fato que simboliza categoricamente a redemocratização do Brasil após os penosos anos de regime militar — elegeram-se quatro presidentes da República: Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Vana Rousseff. Dos quatro presidentes eleitos, apenas dois conseguiram terminar os mandatos sem serem destituídos compulsoriamente do cargo. Ou seja, em quase 30 anos de democracia, apenas a metade dos presidentes eleitos para governar o país não perdeu o seu mandato.

O quadro é deveras grave e a busca por solução deve ser, inquestionavelmente, prioridade para os atuais governantes. A resposta para essa questão passa certamente pela revisão do nosso sistema de governo.

Para Jorge Reis Novais, prestigiado constitucionalista português e professor da Faculdade de Direito de Lisboa, a expressão sistema de governo consistiria, em linhas gerais, no “relacionamento institucional entre os vários órgãos de exercício do poder político”.

O Brasil atualmente é regido sob o sistema de governo presidencialista. Nesse sistema, a partir de eleições populares, designa-se um presidente da República, o qual acumula as funções de chefe de Estado e de chefe de governo. Enquanto chefe de Estado, o presidente é quem representa o país nos países estrangeiros, é quem comanda as Forças Armadas e quem define políticas externas, por exemplo. Enquanto chefe de governo, por outro lado, o presidente é incumbido de exercer as funções executivas, de fato, como a de impor as políticas públicas e a de nomear os ministros de Estado, a título de exemplo.

Já se tornou evidente que, em nosso país, o acúmulo das funções de chefe de Estado e de governo não gera bons resultados, mas, na verdade, resulta em sérios desacertos nas relações institucionais entre o Poder Executivo e o Legislativo. Basta, para tanto, analisar a dificuldade para governar a nação enfrentada por um presidente da República que não tenha boa aprovação no Congresso Nacional.

Vê-se, assim, que o presidencialismo brasileiro, ao concentrar a chefia de Estado e a chefia de governo na pessoa do presidente da República, não distingue nitidamente os limites de cada atribuição, fazendo com que problemas de governo se tornem problemas de Estado.

Por outro lado, a adoção de um sistema de governo parlamentarista no Brasil também não seria oportuna. Isso porque, no parlamentarismo, o chefe de Estado possui atribuições meramente formais e representativas, motivo pelo qual a adoção do sistema ocasionaria um enfraquecimento drástico dos poderes conferidos ao chefe de Estado brasileiro.

Em vista disso, a melhor solução para o impasse parece ser a adoção de um sistema de governo semipresidencialista, um modelo situado entre o presidencialismo e o parlamentarismo.

O semipresidencialismo diz respeito a modelo intermediário, no qual o exercício do Poder Executivo é compartilhado entre um presidente da República — que desempenha a função precípua de chefe de Estado — e um primeiro-ministro — que desempenha a função de chefe de governo.

Nesse sistema, o presidente da República é escolhido por eleição popular — assim como ocorre no presidencialismo — e desempenha papel mais relevante do que o desempenhado pelo chefe de Estado no modelo parlamentarista. A depender das regras estabelecidas, o presidente da República, no semipresidencialismo, poderia indicar o primeiro-ministro, controlar a política externa do país, solicitar referendos, propor leis e, inclusive, dissolver o parlamento.

De outro lado, quem exerce a chefia de governo no sistema semipresidencialista é o primeiro-ministro. Nessa circunstância, a ele compete, por exemplo, a escolha dos ministros de Estado, a elaboração de políticas econômicas, bem como toda a articulação política com os membros do Poder Legislativo.

Como se vê, a adoção do sistema semipresidencialista resultaria na introdução de novas particularidades próprias do sistema parlamentarista — como o aumento da responsabilidade do processo decisório congressional —, sem abolir, no entanto, a inteireza das funções relevantes conferidas ao presidente da República.

Além disso, o sistema semipresidencialista permitiria a criação de mecanismos de destituição dos primeiros-ministros que porventura viessem a perder apoio político, sem, todavia, prejudicar a chefia de Estado e sem a necessidade de cometimento de crime de responsabilidade — que é hoje o que autoriza o processo de impeachment.

Há dois modelos de sistema semipresidencialista que merecem destaque: o modelo português e o modelo francês. Esses dois modelos possuem diferenças marcantes entre si, principalmente no que concerne às atribuições do presidente da República.

O semipresidencialismo francês guarda raízes na Revolução Francesa e nos ideais do general Charles de Gaulle, no pós-Segunda Guerra Mundial. A forte tradição parlamentarista foi herdada da revolução, com as competências centrais atribuídas à Assembleia Nacional. Já o pensamento de De Gaulle, por sua vez, possibilitou emergir uma nova ideia de participação no sistema político francês, apresentando, assim, a figura de um presidente que, além de exercer a chefia de Estado, participava ativamente da política.

Com a promulgação da Constituição Francesa de 1958, firmou-se um sistema político que conferia destaque às atribuições do chefe de Estado. De Gaulle coordenava diretamente a política externa do país, comandava as Forças Armadas e ainda tinha o poder de dissolver a Assembleia Nacional, em caso de crises políticas. O firmamento desses poderes fez com que o sistema de governo francês tornasse um híbrido entre parlamentarismo e presidencialismo.

Já no que diz respeito ao modelo semipresidencialista português, concebido na década de 1970, uma importante dessemelhança pode ser facilmente notada. Isso porque, apesar de antever eleições gerais para a escolha do presidente — tal qual ocorre no modelo francês — o sistema português se diferencia do sistema francês por não atribuir à Presidência o exercício de competências executivas relevantes, de modo que o presidente eleito apresenta-se como figura politicamente neutra, que arbitra, intervém e aconselha.

Ambos os modelos possuem suas virtudes, e uma eventual adoção do sistema de governo semipresidencialista no Brasil aconselharia a análise dos modelos já empregados em outras democracias, bem como o estudo do cenário político brasileiro, para se avaliar o modelo ao qual o Brasil melhor se adaptaria.

A adequação de mecanismos presidencialistas e parlamentaristas permitiria uma relação mais harmoniosa e amoldável às vicissitudes das instabilidades políticas que acometem o país. Contudo, tais premissas somente são válidas se, concomitantemente, todo o sistema político brasileiro acompanhar essa superação.

Com efeito, o engajamento também na remodelação do sistema partidário e eleitoral brasileiro, por exemplo, seria fundamental. É necessário que haja uma reforma política integral que acompanhe essa sistemática, para que se supere por inteiro a crise política. Por óbvio, a pura adoção do sistema semipresidencialista não seria, se individualmente considerada, capaz de extirpar a crise político-institucional brasileira. No entanto, se combinada a outros elementos, a implementação da medida guiaria a construção de novas práticas institucionais aptas a amenizar alguns dos problemas estruturais apresentados pelo país.

O Brasil tem enfrentado inúmeras digressões no andamento de seu sistema político e isso parece ocorrer de maneira cíclica. As sucessivas crises políticas que se alastram parecem conferir a ideia de que a instabilidade é algo intrínseco ao nosso sistema de governo.

Contudo, é importante destacar que tais períodos tormentosos, ao passo que desgastam os pilares democráticos, também fazem emergir a necessidade de mudanças.


Dessa forma, a instabilidade se mostra como uma importante e necessária fase do desenvolvimento de qualquer sistema. As crises políticas demonstram que o bom funcionamento do governo está sendo solapado e evidenciam a necessidade de mudança. Não se trata de acreditar que a simples mudança do sistema irá solver a crise política hoje vivenciada, mas sim de buscar atrelar, junto às mudanças em todo o cenário político, um sistema que confira maior segurança e eficácia à democracia brasileira.

Para ordem econômica, o STF deve ser um tribunal de direita ou de esquerda?


Rodrigo de Oliveira Kaufmann

O turbilhão de eventos políticos que vem assolando o país nos últimos anos trouxe uma polarização ideológica entre grupos ou correntes de pensamento que tentam se localizar no espectro político: a “direita” que, grosso modo, abarcaria os pensamentos conservador e liberal; e a “esquerda” que — também de forma resumida — seriam os herdeiros do pensamento marxista.


Por óbvio, essa descrição simplória não tem o condão de amarrar — com clareza de limites — a complexidade do pensamento político, especialmente se colocado em perspectiva histórica. Esses rótulos, com o tempo, ganham novas significações e não se pode negar a simbiose entre eles. Há, porém, um critério de natureza econômica que, embora também problemático, parece ser hoje aceito razoavelmente: dizer que alguém é de “direita” — afastados os preconceitos e as provocações — costuma descrever um pensamento mais orientado às restrições de atuação do Estado e, portanto, à proposta de encolhimento do chamado “espaço público” de intervenção. O pensamento de “esquerda” — também sem considerar os exageros e as insinuações — costuma atestar alguém que, priorizando alcançar a justiça social, destaca a importância da ação do Estado e, portanto, a inevitabilidade de seu intervencionismo. As deformações dessa ação estatal na esfera privada são consideradas geralmente por essa linha de pensamento uma espécie de efeito colateral de um remédio essencial e inevitável.


É com base nessa específica abordagem que se propõe aqui pensar estruturalmente a atuação do STF em questões contratuais e econômicas. De maneira mais ampla, esse debate vem sendo travado sob inúmeras perspectivas especificamente jurídicas, muito embora o ângulo de análise não tivesse ajudado nessa rotulação. Vejam que ponderações na linha da defesa do ativismo judicial ou do neoconstitucionalismo poderiam significar uma leitura constitucional de “esquerda”, uma vez que prestigiam, na linha da proteção às minorias e ao combate à discriminação, uma atuação judicial mais incisiva, mais intromissiva no espaço de liberdade e autonomia do cidadão e da empresa. É o Poder Judiciário a afirmar, nas decisões que representam essa linha de pensamento, que o particular não pode fazer tudo o que acha que pode ou a responsabilizar o Estado legislador ou Estado Executor por omissões ou incompetência na defesa dos direitos fundamentais, especialmente quando falha em limitar a liberdade na esfera privada.


A famosa discussão em torno da eficácia horizontal dos direitos fundamentais (a chamada drittwirkung na Alemanha) revelava um pouco dessa polarização quando discutia a possibilidade de incidência direta de direitos fundamentais nas relações privadas e nos contratos, inclusive no próprio STF. O tema, entretanto, pode ser perfeitamente descrito de outra forma (talvez uma forma mais fiel e correta sob a perspectiva da teoria constitucional): é possível que direitos fundamentais ligados à justiça social (e que sugerem a intervenção estatal na seara econômica) se sobreponham, em tese, aos direitos fundamentais ligados à liberdade (que sugere a não intervenção do Estado)? Ou, é possível que o direito civil e o direito comercial sejam abstratamente rebaixados em sua importância, fragilizados recorrentemente pela relativização de sua aplicação como garantias da livre iniciativa?


Essa é uma pergunta que vem sendo respondida positivamente pelo STF, contando, para tanto, com certo consenso irrefletido da doutrina. Esse critério (justiça social X liberdade) é tão importante na forma como se analisa o STF que é com base nele que juristas e ministros julgam o nível de “progressismo” do Tribunal em suas diversas épocas.


Certamente, encontra-se, com certa dificuldade, julgamentos que objetivavam o prestígio e a proteção da autonomia privada no STF. Toma-se, nessa linha, o exemplo no pós-1988, (i) da ADI nº 2.290, um eloquente exemplo da defesa do comércio, sob a perspectiva do princípio da proporcionalidade; (ii) do RE nº 193.749 ao se reafirmar a livre iniciativa contra leis restritivas de instalação de farmácias; (iii) do RE nº 407.688 quando se definiu que ao fiador de contrato de locação não beneficiava a cláusula de proibição de penhora do bem de família; (iv) do HC nº 72.131 ao se afirmar que, na alienação fiduciária em garantia, vigorava a sanção da prisão civil; (v) da ADI 493 que, ao definir, o regime constitucional do princípio da proteção ao ato jurídico perfeito, afirmou não ser possível no Brasil qualquer tipo de retroatividade (certamente uma proteção poderosa do vínculo contratual contra a alteração do regime jurídico); (vi) da ADI nº 1946 que, embora não trate da livre iniciativa propriamente dita, demonstra uma compreensão raramente serena da forma como funciona a lógica econômica desse espaço de autonomia (ao decidir sobre a licença-gestante e o eventual tratamento discriminatório da iniciativa privada, concluindo pela assunção integral do custo previdenciário pelo Estado); dentre outros.


É certo, entretanto, mesmo na composição anterior do Tribunal, encontrar a defesa sólida da intervenção do Estado na seara privada-econômica em certos contextos, tal como se fez no famoso caso da ADI nº 319-QO.


Da mesma forma como se discute hoje a eficácia e utilidade da intervenção do Estado (especialmente diante dos resultados conquistados nos últimos anos), é também chegada a hora de reavaliar essa “premissa” que tem servido de base para a definição, inclusive, da própria pauta do STF. É discurso relativamente comum, mesmo entre Ministros, defender que a pauta “natural” do STF são os casos de direito de minorias, combate à discriminação e limitação da liberdade de empreender e de comerciar.


A jurisdição constitucional como “realizadora da justiça social” paga um preço bastante caro e que até hoje era pouco percebido. Na medida em que o Estado é vista como protagonista de todas as atividades, como garante exclusivo da realização de todos os direitos fundamentais, estrangula-se a iniciativa privada e se reduz à filigrana princípios constitucionais como a livre iniciativa, a livre concorrência e a autonomia negocial, valores essenciais da ordem econômica (art. 170 da CF).


São raras as manifestações do STF em que a interpretação constitucional se orienta para a proteção da esfera privada nesse contexto e baseada em uma premissa de “self-restraint”. Nesse sentido, o ativismo judicial não apenas é perigoso sob a perspectiva política (da separação dos poderes), mas principalmente na dimensão econômica e social, quando parte do pressuposto de que o empresário, o produtor, o comerciante, o profissional liberal e o empreendedor formam uma classe suspeita e perigosa que precisa ser fiscalizada e controlada pelo Estado e que sua autonomia deve ser mínima. Esse estrangulamento da iniciativa privada — baseado, vale dizer, em puro preconceito ou visão distorcida —, além de matar a única força produtiva e autônoma do país, acaba por criar uma imagem equivocada do próprio STF que, nesse contexto, se resume a um papel de “Robin Hood” consistente em redistribuir a riqueza por meio da ação confiscatória do Estado-juiz. O século XX, entretanto, foi a prova viva da falência desse projeto.


Para um país que precisa se desenvolver economicamente (de forma a garantir a criação de mais riqueza), o que se precisa, para um novo paradigma da jurisdição constitucional, não é a criação de novos formatos de intervenção do Estado (o que serviu enormemente para a injustificada “inflação dos direitos”), mas sim, como podemos limitar a ação do Estado conservando a consistência de nossa liberdade responsável. Como já defendido por Dworkin, “direitos são trunfos”, e, por isso, — digo eu - não são eles que alicerçam o Estado Democrático de Direito. Essa idéia fundante está baseada, em realidade, na noção de obrigação e responsabilidade do cidadão, no dever recíproco de todos de respeitar as liberdades fundamentais, de conviver e de compartilhar interesses e espaços de ação autônoma.


Essa proposta de maior proteção à liberdade de empreender e de maior prestígio da livre iniciativa denuncia duas enormes contradições que nosso atual modelo de jurisdição constitucional “de esquerda” no Brasil está a patrocinar: em primeiro lugar, esse modelo indica um caminho diametralmente oposto à idéia original e histórica de direitos humanos que eram considerados verdadeiros “pontos de resistência” contra a ação e gigantismo do Estado (o discurso dos direitos humanos promovendo exatamente esse crescimento do Estado é um contrassenso perverso); e, em segundo lugar, os direitos humanos que deveria ancorar posições para a realização de uma política republicana pacífica, passaram a servir como verdadeiras “declarações de guerra” entre “minoria” e “maioria” ou entre “excluídos” e “incluídos”, grupos esses que, várias vezes, são criados artificialmente para sustentar esse discurso da inevitabilidade da ação e do controle do Estado.



A jurisdição constitucional no Brasil, para servir como pedra angular de um regime verdadeiramente democrático e republicano, deve, portanto, reescrever o seu papel, valorizando mais o cidadão, suas responsabilidades e a esfera privada (onde sua individualidade se realiza) e menos o Estado e suas prerrogativas de intervenção.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

"Presidencialismo de coalizão" vive improviso há quase 30 anos


As constantes denúncias de corrupção de políticos e partidos políticos no Brasil têm dado força a reflexões sobre a crise do sistema de governo brasileiro, chamado comumente de “presidencialismo de coalizão” e estimulado os clamores por reformas nesse sistema. 

Eliardo Teles Filho

A título de exemplo, cito a coluna de Igor Gielow publicada no jornal Folha de S.Paulo no dia 28 de junho de 2017:

“A crise quase terminal do governo de Michel Temer, e insisto no quase porque o peemedebista não se chama Dilma Rousseff, está levando ao epílogo do status quo implantado pela velha Nova República, inaugurada em 1985 e plasmada na Constituição de 1988. (…)

O "silver lining" da barafunda (…) consiste na possibilidade de que alguma coisa melhor saia da crise, seja qual for o desfecho dela.

O que seria isso? A revisão das bases representativas da política. A resposta mais óbvia seria a adoção do parlamentarismo, já que todo presidente precisa compor com uma maioria estável no Congresso para governar. A supracitada Dilma foi executada nessas condições, e Temer agora incinera sua pinguela para manter o semiparlamentarismo tão eficaz até a primeira crise que o atingiu diretamente.

O triste é que estamos no Brasil, e um parlamentarismo daria no que a Itália do pós-guerra teve de pior: um gabinete caindo após o outro. (…)

O problema é que o presidencialismo de coalizão também morreu após 13 anos do projeto petista de poder, que instituiu uma espécie de terrorismo de Estado nos cofres da nação.”


Sem endossar os juízos do autor sobre pessoas e partidos políticos ou a sua análise da conjuntura política ou da situação do governo, eu gostaria de chamar a atenção para a relação que o texto estabelece entre os elementos criminal e constitucional da crise política que o Brasil vem vivendo desde, pelo menos, 2015, ano em que o Brasil começou a contemplar como real a possibilidade de que Dilma Rousseff, reconduzida à presidência da República, não terminasse seu mandato.

O elemento criminal mencionado no texto é, sem dúvida, a corrente incessante de acusações de que políticos podem ter se beneficiado de enormes esquemas de corrupção. Esses esquemas seriam montados em conluio com algumas das maiores empresas brasileiras e transfeririam recursos públicos para empresas, seus dirigentes e familiares, partidos, políticos e familiares.

O elemento constitucional é o sistema representativo brasileiro que, pelo que aponta o texto, estaria sendo levado à falência pelo elemento criminal. Aqui entra o chamado “presidencialismo de coalizão”, um conceito relativamente frouxo, mas útil para descrever a forma como funciona o poder político eleito no Brasil.

Segundo a definição mais aceita, o “presidencialismo de coalizão” seria o sistema de governo ou regime político adotado pela Constituição de 1988 e reuniria duas características principais e interligadas. A primeira é o fato de o sistema brasileiro mesclar características do sistema parlamentarista e do sistema presidencialista, principalmente no que se refere à taxa de êxito de aprovação de proposições legislativas de iniciativa do poder executivo. Essa é a característica mais enfatizada pela ciência política.

A segunda é o fato de os governos não serem unipartidários, mas sim montados por uma multidão de partidos políticos que dividem entre si os ministérios que compõem o Poder Executivo no Brasil. Assim, ao contrário da imagem que comumente se faz do presidencialismo norte-americano, os ministérios não seriam todos ocupados por autoridades apoiadas pelo partido político do presidente da República, mas sim por um conjunto de partidos que pode, a qualquer momento, se retirar do governo.

Essa característica é destacada pelo Direito Constitucional, mais preocupado com o tema da separação de poderes do que com a taxa de sucesso de projetos de lei. De todo jeito, as duas características são interligadas, de modo que podemos resumir o presidencialismo de coalizão, na definição mais aceita, da seguinte forma: haveria uma divisão do Poder Executivo entre diversos partidos, o que garantiria uma larga base parlamentar governista e, por consequência, uma alta taxa de aprovação de proposições legislativas de interesse do executivo, se não inteiramente de sua iniciativa.

As conexões que hoje se fazem entre esses dois elementos, o criminal e o constitucional, na crise política brasileira são variadas. A do texto transcrito acima parece ser a de que o elemento criminal levou à falência do sistema de governo, elemento constitucional, mas outros analistas fazem a relação contrária: seriam as distorções do elemento constitucional que teriam levado os componentes do sistema político a recorrer a expedientes criminosos. Em ambos os casos, no entanto, o que se defende é uma reforma política para romper essa correlação entre o elemento constitucional e o elemento criminal no coração do presidencialismo de coalizão.

O que eu gostaria de apontar nessa coluna é a inconveniência de se reformar um sistema de governo tendo por horizonte apenas a luta contra a corrupção. Ou, em outras palavras, a necessidade de se quebrar essa relação automática entre os elementos criminal e constitucional da crise.

Em primeiro lugar porque, embora os sistemas políticos devam ter mecanismos que impeçam sua captura pela corrupção, nenhum sistema político importante foi feito apenas com esse objetivo, mas sim para garantir valores mais profundos, como a liberdade, a igualdade, a propriedade, os direitos humanos.

Esses valores se traduzem em configurações de governos moderados, ou governos social-democratas ou socialistas, ou outros modelos. Em segundo lugar, e é esse o principal ponto do texto, porque me parece que um dos problemas do sistema de governo do Brasil atual é justamente a falta de sua correspondência a um ou mais desses valores mais profundos.

Para defender a plausibilidade da minha sugestão, quero voltar ao seminal texto de Sérgio Abranches sobre o presidencialismo de coalizão. Aquele texto, pleno de insights sobre o processo constituinte que levou àquela solução institucional, parece ter sido pouco explorado em vários pontos. Gostaria de indicar um que merece a atenção dos especialistas do Direito Constitucional interessados no problema da relação entre os elementos criminal e constitucional na crise política brasileira.

Trata-se do problema da formação de consensos durante o processo constituinte. Embora o ponto não tenha sido muito bem desenvolvido ali, Abranches registra que, naquele momento de saída da ditadura para a democracia, as forças políticas presentes à elaboração da Constituição tinham dificuldade de chegar a consensos constitucionais substantivos, além do compromisso com a democracia. Descrevendo o momento, Abranches afirma:

Há um claro “pluralismo de valores”, através do qual diferentes grupos associam expectativas e valorações diversas às instituições, produzindo avaliações acentuadamente distintas acerca da eficácia e da legitimidade dos instrumentos de representação e participação típicos das democracias liberais. Não se obtém, portanto, a adesão generalizada a um determinado perfil institucional, a um modo de organização, funcionamento e legitimação da ordem política.

E depois:

A probabilidade de acumulação de conflitos em múltiplas dimensões, precariamente contidos pelo pacto mais genérico de transição democrática – que foi brevemente revigorado durante o período de sucesso do Plano Cruzado -, bem como de sucessão de ciclos de instabilidade, aumenta na proporção em que as energias da nova direção política (no Legislativo e no Executivo) são consumidas na administração de crises.

Esses fragmentos apontam para a existência de dificuldades, àquela época, de se chegar a consensos principiológicos básicos, além do compromisso “mais genérico” com a democracia, a partir dos quais aderir a um perfil institucional coerente.

Com efeito, se olharmos com atenção para a nossa Constituição, veremos que essa dificuldade de formulação de um consenso básico que fosse além do compromisso com a democracia se espraia por todo o seu texto. São mais de 350 artigos tratando de temas muitas vezes de natureza tipicamente legislativa além de uma multiplicidade de princípios que, segundo o constitucionalismo mais influente, entram em conflito constantemente.

O próprio poder constituinte originário previu uma regra de revisão constitucional dentro de cinco anos da promulgação do texto. Essa dificuldade de formação de um consenso mais profundo, que se refletiu na profusão legislativa-constituinte, tem uma consequência prática: a necessidade de se alterar a Constituição para governar. Desde 1992, aprovaram-se em média 4,4 emendas à Constituição por ano. No Brasil, governar é alterar a Constituição.

A dificuldade de consenso se refletiu também na opção por um sistema de governo no qual, parece-me, a opção principal foi por estabelecer uma relação entre Estado e sociedade, e não um sistema de freios e contrapesos. Já defendi em outra coluna neste Observatório que o presidencialismo de coalizão, pelo menos na definição de Abranches, reflete muito mais o estabelecimento de um mecanismo de legitimação do Estado graças a uma completa abertura às demandas da sociedade, pela via da representação proporcional e do multipartidarismo autorregulado, do que um sistema de separação de poderes no qual um Poder Legislativo forte pudesse realmente servir de contrapeso ao Executivo.

A configuração de um conjunto de mecanismos de controle do poder sobre o poder parece ter ficado a reboque das decisões sobre como o poder se relacionava com a sociedade. Por outro lado, a Constituição de 1988 cumulou o presidente da República de poderes legislativos, o que, aliás, termina sendo uma das poucas garantias de funcionamento do mecanismo do presidencialismo de coalizão.

Se o excesso de abertura do Congresso Nacional, com uma previsível fragmentação partidária, impedisse o processo decisório, o presidente da República poderia destravá-lo mantendo o governo em ação. A impressão é que, na dúvida sobre qual separação de poderes fazer, a Constituição parece ter querido uma superposição de poderes.

Hoje, quase 30 anos depois de promulgada a Constituição, já se pode dizer que a sociedade brasileira foi capaz de chegar a alguns consensos. Um deles é o de que o atendimento das demandas da sociedade não justifica o aumento da inflação; outro é o reconhecimento de que o Estado não pode extrair recursos da sociedade indefinidamente; outro, registrado pela literatura econômica, é o compromisso radical com a inclusão social. Outro consenso, ainda, é o de que os governantes devem ter responsabilidade fiscal.


Enquanto isso, o presidencialismo de coalizão parece ser ainda uma improvisação a completar 30 anos, sem outro objetivo que o de impedir o país de regredir no seu compromisso com a democracia. Muito mais do que a ideia de combater o crime de corrupção, o que deve guiar os debates sobre as mudanças no sistema político é a atualização desse sistema para que ele seja capaz de realizar aquelas aspirações mais profundas que a sociedade brasileira hoje já é capaz de expressar.

Sobre as reformas trabalhista e previdenciária – ameaças ao Estado de bem-estar social


“São reformas com viés fiscal e liberal, que prejudicam os mais pobres – ou os que dependem de salário ou de benefícios previdenciário ou assistencial – preservando de qualquer sacrifício daqueles que vivem de renda. Aliás se tira daqueles para favorecer estes”

ANTÔNIO AUGUSTO DE QUEIROZ
 
As reformas trabalhista e da Previdência, que estão sob exame do Congresso Nacional, podem até ser necessárias, mas no formato proposto são uma ameaça ao estado de proteção social e significarão um enorme retrocesso civilizatório, conforme veremos a seguir.

A trabalhista, já aprovada na Câmara e sob exame do Senado, tramita sob o número de PLC (Projeto de Lei da Câmara) nº 38/17. O texto representa a mais abrangente investida sobre os direitos dos trabalhadores, desde a promulgação da CLT, em 1943.

O PLC 38/17 promove um verdadeiro desmonte da legislação trabalhista, atacando as três fontes do Direito do Trabalho: 

1) a lei, em sentido amplo, que inclui a Constituição, as leis complementares, as leis ordinárias e os tratados internacionais subscritos pelo Brasil, como as Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT); 

2) a Sentença Normativa, que são as decisões em sede de Poder Normativo adotadas pelos Tribunais do Trabalho; e 

3) a negociação coletiva.

No primeiro caso estabelece a prevalência do negociado sobre o legislado, retirando da lei sua condição de norma de ordem pública e caráter irrenunciável, autorizando a transação de todo e qualquer direito assegurado, mesmo que em prejuízo da parte mais fraca econômica, social e politicamente na relação de negociação.

No segundo, restringe o acesso do trabalhador à Justiça do Trabalho, inclusive limitando a prescrição constitucional, e impede que a Justiça do Trabalho possa fazer uso de seu poder normativo para impor normas e condições ao empregador, além de onerar o empregado que resolver demandar judicialmente.

E, no terceiro, debilita, política e financeiramente, o movimento sindical, retirando dele recursos e prerrogativas de representação, e autoriza a negociação coletiva para reduzir direitos, inclusive com o acordo se sobrepondo à convenção, mesmo que menos vantajoso. Além disso, permite a negociação direta entre patrões e empregados, desde que o trabalhador tenha nível superior e tenha ganho dois tetos do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), algo como R$ 11.000,00.

Os trabalhadores e suas entidades, conforme documenta o Dieese, não se opõem à atualização e modernização do sistema de relações de trabalho brasileiras, mas exigem que sejam observados os seguintes princípios e adotadas regras de combate a práticas antissindicais, sem o cumprimento dos quais, qualquer mudança poderá resultar em precarização:

1. incentivar o diálogo e soluções compartilhadas;

2. valorizar e incentivar a negociação coletiva em todos os níveis (chão da fábrica, local, setorial e nacional);

3. fortalecer a representatividade sindical desde o local de trabalho;

4. promover a solução ágil de conflitos;

5. assegurar segurança jurídica aos trabalhadores e empregadores (públicos e privados);

6. orientar a harmonia e complementariedade entre o legislado e o negociado; e

7. favorecer aprimoramento e/ou mudanças de processos, procedimentos e organização com caráter voluntário e incentivo para a adesão das partes.

A reforma da previdência, por sua vez, está aguardando votação em dois turnos no plenário da Câmara, após ter sido aprovada na comissão especial. O texto, que tramita sob a forma da Proposta de Emenda à Constituição – PEC 287/16, ataca, em prejuízo do segurado, os três fundamentos do benefício previdenciário: 

a) a idade mínima, que é aumentada; 
b) o tempo de contribuição e a carência, que também são aumentados; e, 
c) o valor do benefício, que é drasticamente reduzido.

A reforma da previdência, se aprovada no formato proposto, será a responsável por uma possível quebra da paz social no Brasil, em face da quase impossibilidade, por força da ampliação das exigências, de acesso a benefícios de importante contingente de segurados e idosos.

Apenas a título de ilustração, podemos mencionar quatro situações: 

1) ampliação do prazo de carência para acesso a benefício previdenciário, de 15 para 25 anos, 
2) instituição de idade mínima para efeito de aposentadoria, 

3) aposentadoria com integralidade da média apenas após 40 anos de contribuição, e 

4) redução do acesso ao benefício de prestação continuada pelo idoso.

A  ampliação do prazo de carência, de 180 meses (15 anos) para 300 meses (25 anos), caso já estivesse em vigor, segundo as estatísticas do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), apenas 24% dos atuais aposentados por idade estariam em gozo de benefício, porque 76% do total de aposentados por idade não teriam comprovado os 25 anos de carência.

Ainda em relação à carência, registre-se que pelo menos um terço dos atuais segurados do INSS com idade igual ou superior a 55 não atingiriam os 25 anos de contribuição ao completarem 65 anos de idade, levando ao adiamento de suas aposentadorias para além dessa idade, comprometendo a sobrevivência desse importante contingente de brasileiros.

A instituição de uma idade mínima – é mínima porque será aumentada automaticamente sempre que houver aumento da expectativa de vida após os 65 anos de idade – em respectivamente 65 para homens e 62 para mulheres, é fundamentada no fato de que tem havido aumento da expectativa de sobrevida no Brasil e que os países desenvolvidos já adotam idades semelhantes para efeito de aposentadoria.

Essas mudanças, nos países desenvolvidos, foram antecedidas de políticas pública, que possibilitam o trabalho do idoso em condições dignas, com políticas públicas de capacitação continuada, de saúde ocupacional, de melhoria no transporte público, entre outras, diferentemente do Brasil. Além disso, nesses países a expectativa de vida é maior que a brasileira e a expectativa de sobrevida com saúde é, igualmente, bem maior que no Brasil.  A expectativa de vida com saúde no Brasil, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), é de 65,6,  enquanto na Europa e nos países Nórdicos é, em média, superior à brasileira em nove anos.

A exigência de 40 anos de contribuição efetiva para fazer jus à integralidade da média de contribuição excluiria desse direito a esmagadora maioria dos trabalhadores brasileiros, porque, também segundo estatísticas do INSS, para cada doze meses, o segurado do INSS comprova 9,1 (em razão do desemprego e da informalidade) e para comprovar 40 anos de contribuição teria que estar em atividade pelo menos 54 anos, só garantindo o direito a esse benéfico aos 72 anos, e, ainda assim, se começasse a trabalhar aos 18.

Quanto aos Benefícios de Prestação Continuada (BPC), propõe-se o aumento de 65 para 68 anos de idade para acesso ao benefício, no valor de um salário mínimo, para idosos cuja renda média per capita seja inferior a um quarto de salário mínimo, considerando todos os rendimentos brutos auferidos por todos os membros da família, inclusive o próprio BPC. O aumento da idade, combinado com a inclusão de benefício de outro idoso na renda, irá excluir milhares de idosos do acesso ao BPC.

Além disso, a reforma da previdência também dá uma mãozinha para os patrões, permitindo que os aposentados que continuaram trabalhando possam ser demitidos sem recebimento da multa do FGTS. Altera o artigo 10 das Disposições Gerais da Constituição para dar esse presente aos patrões.


São reformas com viés fiscal e liberal, que prejudicam os mais pobres – ou os que dependem de salário ou de benefícios previdenciário ou assistencial – preservando de qualquer sacrifício daqueles que vivem de renda. Aliás se tira daqueles para favorecer estes. Se há necessidade de ajustes, que os sacrifícios deles decorrentes sejam distribuídos de forma proporcional à capacidade contributiva de cada brasileiro. Escolher como variável de ajuste apenas os que dependem de salário, de aposentadoria ou de prestação do Estado não é uma medida de justiça. Isso os parlamentares precisam saber!

Precisamos discutir o tamanho do Estado brasileiro


“Se tomaremos a decisão por mais Estado ou menos Estado, resta claro que ele permanecerá lá, ainda firme. Não alcançaremos o status de Anarquia. Precisamos, todavia, aumentar sua capacidade de transparência e sua eficiência”

 VINÍCIUS SOUSA 
 
As reformas política, trabalhista e previdenciária em tramitação na Câmara dos Deputados mostram que é inadiável o debate sobre qual deve ser o tamanho do Estado brasileiro. Se no período de bonança não paramos para discutir qual nível de participação do Estado queremos enquanto sociedade, esse debate precisa acontecer agora, no momento da crise. Nós, cidadãos, estamos reféns de um Estado visto como ineficiente e corrupto, em todos os sentidos e ideologias. Isso não pode continuar assim por muito tempo.

É inegável que a constituição brasileira sofreu influências dos modelos social-democrata e do Estado de Bem-Estar Social, muito comuns entre os países europeus à época da sua proclamação. Estas concepções políticas, que priorizam a distribuição mais equitativa das riquezas geradas pela sociedade e o estabelecimento de mecanismos de proteção social, respectivamente, foram importantes para a formação do quadro de políticas públicas hoje existentes e para o nível de garantias e direitos estabelecidos na Carta Magna.

Não obstante, tais modelos se concretizaram no período da redemocratização brasileira, no final da década de 80, vindos de contextos de crise, haja vista estarem sob constantes críticas por conta do aumento no nível de desemprego nos países.

Como exemplo, o famoso informe da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de 1981, diagnosticava que o Estado de Bem-Estar Social estaria em crise após seus “30 anos gloriosos” (1945-1975). A justificativa se baseia na lógica de que o aumento do desemprego acarreta impactos negativos nas finanças do Estado, pois este estaria impelido a repassar o seguro-desemprego ao passo que o nível de contribuição estaria em queda.

Isso talvez diga muito sobre o que percebemos do nosso texto constitucional, tendo em vista a diminuição da sua capacidade de ser exequível diante da situação crítica do país, com quase 13 milhões de desempregados e deficit primário, dos últimos 12 meses, correspondendo a quase 2,5% do PIB.

Ademais, a alta taxa de endividamento mostra que precisamos repensar a lógica dos gastos do Estado. Quais devem ser as prioridades do “Estado empresário”? Em que agendas o Estado deve priorizar o investimento e a participação? Quais são os limites do “Estado fiscal”? Qual o nível de contribuição tributária é suficiente para regular a relação Estado-Sociedade? Estas perguntas precisam, com urgência, fazer parte da realidade dos cidadãos, para que possamos, conjuntamente, melhorar a máquina estatal.

Exemplo dessa urgência foi a operação deflagrada pela polícia federal na semana passada. Denominada de Operação Bullish, ela investiga possíveis fraudes e irregularidades na concessão de aportes financeiros do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a JBS, um dos maiores frigoríficos do Brasil e do mundo.

Esta operação apenas evidencia o que já se desconfiava, não apenas em relação a este frigorífico, mas entre outros empreendimentos brasileiros de grande porte: há a presença elevada e desnecessária de subsídios e empréstimos de origem estatal.

Pesquisadores, como os economistas Sérgio Lazzarini e Alexandre Schwartsman, não veem grandes justificativas para tal atuação estatal, que mais se assemelha a uma versão do “Bolsa família”, o “Bolsa Empresário”.

Eles atestam que empreendimentos semelhantes à JBS possuem pouco impacto no desenvolvimento industrial do país e conseguiriam empréstimos financeiros equivalentes na iniciativa privada – contando, contudo, com menos benesses, como juros menores e maiores prazos para a quitação do débito.

Nos resta, porém, nos indignarmos com esta realidade e reivindicarmos maior accountabillity das operações do BNDES, assim como o uso dos empréstimos como investimentos em empreendimentos que realmente necessitem do aporte financeiro de origem estatal.

Neste mesmo jornal, Andre Rafael, co-idealizador do Projeto Brasil 2030, nos alerta que muitos dos problemas no modelo de financiamento do Estado brasileiro são decorrentes da inexistência de esforço consistente e contínuo de tornar a Constituição plenamente exequível.

Se não houver esta revisão do texto constitucional, seus direitos e garantias, podemos ver se concretizar a visão do Estado mínimo, ao qual André avalia que isso poderá surgir não pela crença da sociedade nos princípios liberais, mas pela necessidade de ter o mercado como alternativa ao Estado e sua dificuldade em fomentar políticas públicas que correspondam ao interesse dos cidadãos.

Se tomaremos a decisão por mais Estado ou menos Estado, resta claro que ele permanecerá lá, ainda firme. Não alcançaremos – seguramente não nos próximos anos – o status de Anarquia. 

Precisamos, todavia, aumentar sua capacidade de transparência e sua eficiência. Como disse José Murilo de Carvalho, em seu livro Cidadania no Brasil: o longo caminho, “os progressos feitos são inegáveis, mas foram lentos e não escondem o longo caminho que ainda falta percorrer”.

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Casamento gay: um direito civil ou uma “aberração”?


“Não queremos destruir a família de ninguém, queremos construir a nossa, do nosso jeito. Cumprimos nossos deveres, queremos igualdade de direitos. Em momento algum as religiões serão obrigadas a fazer o casamento religioso de pessoas do mesmo sexo”

 TONI REIS
               
 
Quarta-feira (03/05/2017) foi um dia histórico no Congresso Nacional. Foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal o substitutivo do Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 612/2011, cujo propósito é permitir o reconhecimento legal da união estável homoafetiva, bem como sua conversão em casamento civil. O projeto é da autoria da senadora Marta Suplicy (PMDB-SP), sendo que o substitutivo foi aprovado com base no parecer do relator senador Roberto Requião (PMDB-PR)

Mesmo com alguns gritos de pessoas minoritárias vociferantes que não acompanharam a evolução da humanidade e permanecem paradas no tempo, na Idade Média, só o fato de a comissão mais importante da Câmara Alta do Congresso Nacional ter aprovado o PLS já é inédito, levando em consideração que a omissão do Parlamento em legislar questões atinentes à população LGBTI tem sido objeto de sete ações no Supremo Tribunal Federal (STF).

O PLS poderá ser aprovado no plenário do Senado e seguir para a Câmara dos Deputados. Diferente de outros projetos em voga, ninguém perderá direitos com a aprovação deste projeto e, segundo estimativas populacionais, 18 milhões de brasileiros e brasileiras LGBTI ganharão o direito de constituir uma família com base na lei.

Não queremos destruir a família de ninguém, queremos construir a nossa, do nosso jeito. Cumprimos nossos deveres, queremos igualdade de direitos. Em momento algum as religiões serão obrigadas a fazer o casamento religioso de pessoas do mesmo sexo. Além disso, ninguém será obrigado a se casar com uma pessoa do mesmo sexo, a não ser que queira! Apenas existirá o direito igualitário ao casamento civil entre pessoas do sexo oposto ou do mesmo sexo, em perfeita consonância com o princípio constitucional da igualdade de todas as pessoas perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.

O Censo de 2010 revelou que naquele ano o país tinha pelo menos 60 mil casais homossexuais que se declararam como tais, podendo este número estar sujeito à subnotificação, antes mesmo da decisão do STF em 2011 que equiparou a união estável homoafetiva à união estável entre casais heterossexuais e a subsequente Resolução 175/2013 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinando a possibilidade de sua conversão em casamento civil em todo o país. Segundo o IBGE, houve mais de 14 mil casamentos homoafetivos civis desde a Resolução 175 até o final de 2015. A aprovação do PLS 612/2011 apenas fará com que a legislação nacional passe a refletir o que já existe de fato.

Nesse sentido, o Brasil se coloca junto com 22 países que permitem o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, inclusive Argentina, Colômbia e Uruguai na América Latina, bem como 23 países que reconhecem a união estável homoafetiva, segundo a International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association (ILGA).

Seria muito importante a aprovação do PLS 612/2011 no plenário do Senado e posteriormente na Câmara dos Deputados. No entanto, se não for aprovado continuaremos com os direitos garantidos pela Constituição Federal em suas cláusulas pétreas, analisadas e referendadas pelo STF e pelo CNJ, no que diz respeito ao reconhecimento da união estável e do casamento entre pessoas do mesmo sexo.


“Aberração” é querer legislar de acordo com convicções religiosas em contrário à Constituição Federal, criar divisões na sociedade e distinções entre as pessoas com base em orientação sexual e identidade de gênero, negando a isonomia dos direitos e promovendo a noção de cidadãos e cidadãs de segunda classe.

O sonho de uma geração – dos anos de chumbo à democracia incompleta


“Foi uma longa e complexa travessia de 1974 a 1989. Em nossas cabeças, justiça social, estabilidade econômica e desenvolvimento cairiam por gravidade, consequência natural da liberdade conquistada. Ledo engano”

MARCUS PESTANA
 
Certa vez, John Lennon sentenciou: “The dream is over”. Mas, a esperança é a matéria-prima que move a vida. Talvez seja melhor ficar com Victor Hugo, para quem “não há nada como o sonho para criar o futuro. Utopia hoje, carne e osso amanhã”.

Sou parte de uma geração que sonhou um outro Brasil, na segunda metade dos anos 1970. Diante da liberdade escassa e da injustiça máxima, encaramos o futuro com coragem, ousadia e desprendimento. Queríamos achar o fio da meada que nos unia às tradições de 68. Luta política, prática cultural, revolução comportamental, contestação ao consumismo, tudo misturado no caldeirão das utopias acalentadas. No movimento estudantil, nas comunidades de base, na trincheira do velho MDB, no teatro e na música o mergulho profundo no desafio de mudar o mundo e o país.

Por outro lado, tínhamos, independentemente de qualquer juízo de valor, um conjunto de homens públicos da melhor qualidade, que admirávamos e tínhamos como exemplo: Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Franco Montoro, Teotônio Vilela, Leonel Brizola, Mário Covas, Fernando Henrique Cardoso, Miguel Arraes. Líderes que eram apaixonados pela política como ferramenta de trabalho em favor de um projeto de nação e do interesse público.

O rumo era claro. Tarefa número um: a reconstrução da democracia. Anistia ampla, Constituinte soberana e eleições diretas para presidente. Tivemos êxito, missão cumprida. Foi uma longa e complexa travessia de 1974 a 1989. Em nossas cabeças, justiça social, estabilidade econômica e desenvolvimento cairiam por gravidade, consequência natural da liberdade conquistada. Ledo engano.

É inegável que o país avançou nestes anos de Nova República. É o mais longo e mais intenso período democrático da nossa história. Domamos a inflação, distribuímos renda, universalizamos o ensino fundamental, consolidamos o Sistema Único de Saúde, democratizamos o acesso às telecomunicações, modernizamos a economia. Tropeços ocorreram. A obra está incompleta. Dois presidentes foram afastados, a qualidade na educação ainda é um desafio, os gargalos na saúde são enormes, os índices de violência assustam a população, os serviços de saneamento ainda são claramente insuficientes, o deficit habitacional é grande.

Mas aquela geração generosa e sonhadora não poderia imaginar que, ao final do ciclo, encontraríamos um horizonte tão nebuloso. A maior recessão na trajetória econômica do país, o maior escândalo de nossa existência como nação, o sistema político no seu conjunto em xeque e com a credibilidade abalada, estrangulamento fiscal agudo e um universo de interrogações quanto ao futuro. A intolerância e a indisposição para o diálogo campeando soltas.


Nessa hora não é hora de jogar a toalha e admitir que o sonho morreu. É hora de reacender a chama da esperança, arregaçar as mangas para driblar os obstáculos, aprender com os erros e construir o Brasil sonhado nos verdes anos de nossa juventude.

domingo, 21 de maio de 2017

O sistema alemão, adaptado ao Brasil, é a melhor solução


“O sistema alemão, que junta eleições majoritárias e proporcionais para compor um Parlamento em que os partidos têm representação ajustada aos votos que receberam, pode ser adaptado ao Brasil, mantendo sua essência”

 HELIO DOYLE  

As discussões sobre a reforma política e eleitoral deveriam ser feitas em bloco, sem fatiar os temas como se fossem independentes. O debate segmentado fica capenga e é prejudicado quando, por exemplo, discute-se financiamento de campanha ou o tempo de televisão sem considerar se as eleições para deputados serão proporcionais ou majoritárias e, nesse caso, qual o tamanho do distrito. Nem mesmo financiamento da campanha e tempo de TV deveriam ser assuntos discutidos separadamente.

Há uma forte relação entre os temas da reforma política, em vários outros aspectos. Se as eleições são simultâneas ou de dois em dois anos, isso se reflete no financiamento, no tempo de televisão, na lista aberta ou fechada e por aí adiante. Muitas outras escolhas acerca da reforma política e eleitoral deveriam estar submetidas à definição sobre o modelo para eleger deputados e vereadores.
A eleição de deputados e vereadores pode ser proporcional, como no Brasil, ou majoritária, como nos Estados Unidos, na Inglaterra e no Canadá. No primeiro caso, a votação que cada partido ou coligação obtém define o número de candidatos que elegerá. Na eleição majoritária, são eleitos os mais votados em cada circunscrição, independentemente de proporcionalidade na composição da casa parlamentar.

O voto majoritário, conhecido como distrital, distorce a representação popular, pois o número de votos que cada partido recebe não se reflete na composição do Parlamento. O resultado disso é que os partidos maiores são beneficiados e os menores são prejudicados, levando a que na prática haja apenas dois partidos, como nos Estados Unidos, ou apenas três ou quatro, como em outros países que adotam o sistema distrital. Os partidos que não conseguem ser majoritários em nenhum distrito desaparecem, mesmo que representem parcelas significativas, mas minoritárias, do eleitorado.

É fácil entender a distorção provocada pelo voto distrital: o candidato A, do Partido Y, tem 50 mil votos no distrito Amarelo, derrotando o candidato B, do Partido Z, que obtém 49 mil votos. No distrito Azul, o candidato C, do Partido Y, recebe 45 mil votos e o candidato D, do Partido Z, tem 44 mil votos. O Partido Z perde nos dois distritos por dois mil votos apenas.

O Partido Y, assim, teve 95 mil votos (50,53%) e o Partido Z teve 93 mil (49,47%) nos dois distritos, praticamente empatados. Mas o Partido Y elege dois deputados e o Partido Z não elege ninguém. Em um sistema de eleição proporcional, cada partido elegeria um deputado. O segundo colocado em todos os distritos pode ficar sem representação mesmo se somar 49,9% dos votos no país.

Para simplificar, vale o exemplo das últimas eleições parlamentares no Canadá, em que foram eleitos 308 deputados em 308 distritos eleitorais, cada um com cerca de 110 mil habitantes. O Partido Conservador teve 39,62% dos votos e elegeu 54% dos deputados (166). O Novo Partido Democrático, social-democrata, recebeu 30,62% dos votos e elegeu 33% dos deputados (102). No sistema proporcional, o Partido Conservador elegeria 122 deputados e o NPD elegeria 94 parlamentares.

Esses dois partidos ganharam deputados à custa do Partido Liberal, que elegeu 35, mas deveria ter 58 cadeiras, do Bloco de Quebec, que elegeu quatro quando deveria ter elegido 18 e do Partido Verde, que elegeu apenas um deputado, mas que pelo sistema proporcional teria 12.

O sistema distrital tem vantagens: os eleitos estão mais próximos de seus eleitores, quando o distrito eleitoral não é muito grande, e as campanhas são mais baratas, pois o território a ser abrangido pelos candidatos é menor do que todo um município ou todo um estado. Como cada partido apresenta um candidato por distrito, há também maior identificação entre os eleitores e os partidos

O sistema proporcional tem a vantagem de assegurar a representação de cada partido de acordo com a votação obtida (desde que superada a cláusula de barreira, onde ela existe), mas também tem desvantagens: com a lista aberta, o eleitor vota em um candidato e pode eleger outro e não há relação próxima entre quem vota e quem é eleito. No sistema de lista fechada, a não ser onde é possível ao eleitor reordená-la, vota-se no partido e não nos candidatos.

Com a lista aberta, cada candidato disputa o voto com colegas do mesmo partido, pois são eleitos os mais votados de cada chapa. Com a lista fechada, o voto é no partido, que define previamente a ordem de colocação. A campanha é mais dispendiosa no processo de lista aberta, pois cada candidato disputa o voto do eleitor. Na campanha com lista fechada, é o partido que faz campanha e não cada candidato. A lista fechada é mais coerente com o financiamento público e por pessoas físicas.

Os alemães conseguiram juntar os dois sistemas, majoritário e proporcional, em um que é conhecido no Brasil como “distrital misto”, mas que na verdade é proporcional com eleição parcialmente majoritária. Não é perfeito, como nenhum é, mas tem mais vantagens que desvantagens e poderia ser aplicado no Brasil. Na Alemanha funciona com o voto em lista fechada, mas há países em que o eleitor pode mudar a ordem definida por cada partido e há outros em que essa ordem é decidida em eleições prévias partidárias, e não pelos caciques de cada organização.


O sistema alemão, que junta eleições majoritárias e proporcionais para compor um Parlamento em que os partidos têm representação ajustada aos votos que receberam, pode ser adaptado ao Brasil, mantendo sua essência. Aqui a lista pode ser aberta, ou reordenada, por exemplo. Ou os distritos podem ser maiores e podem ser eleitos mais deputados em cada um deles.