"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Regime de governo: noções sobre a democracia


O presente artigo busca estudar o regime de governo democrático, analisando suas variações, principalmente quanto aos aspectos jurídicos, políticos e históricos.

A democracia é um regime governamental cujos cidadãos estão incumbidos de tomar importantes decisões políticas acerca do que se passa no governo.

A democracia pode dar-se de maneira direta ou indireta. É considerada direta quando os cidadãos manifestam sua vontade política em todas as decisões, pelo poder do voto direto. Classifica-se como indireta a democracia em que é necessária a eleição de representantes, os quais estão encarregados de defender os interesses de seus eleitores.

Há também o chamado sistema democrático misto, no qual se conjugam elementos de democracia direta e indireta. No Estado brasileiro, vive-se em uma democracia mista, ainda que não seja usual a utilização das ferramentas democráticas diretas, como o plebiscito e o referendo.

Historicamente, a democracia, como forma de governo, foi concebida na Grécia antiga, em Atenas. O termo “democracia” quer dizer “poder do povo” e, justamente por isso, foi vastamente criticado por grande parte dos pensadores gregos. Intelectuais como Platão diziam que a democracia é a forma mais baixa de poder, pois alegavam que o povo não é apto para governar a próprio Estado.

Regem a democracia alguns importantes valores. Tais como os princípios da maioria, da igualdade e o da liberdade, os quais serão mais detalhadamente explicados ao decorrer de nosso trabalho.

A DEMOCRACIA SEGUNDO PLATÃO E ARISTÓTELES

Segundo Platão, a democracia é a forma mais baixa de governo. Em sua obra “As Leis”, Platão classifica as formas de governo em duas: monarquia e democracia. O poder está diferentemente localizado em ambas. Na monarquia o poder vem de cima e, na democracia, de baixo. “O regime ideal é uma mistura dos dois; uma cidade governada por um colégio de sábios, guardiães das leis.”

Para Aristóteles – discípulo de Platão – existem três formas de regime de governo: monarquia, aristocracia e democracia. Nenhuma delas é melhor do que a outra. O que ocorre é que para cada sociedade há um regime mais adequado. O problema está na degeneração de cada um destes regimes, resultando, segundo Aristóteles, em tirania, oligarquia ou demagogia. Nessa linha de raciocínio é pertinente a observação de John Gilissen:

“A monarquia, aristocracia e democracia; se degeneram, apresentam-se sob uma forma corrompida: tirania, oligarquia, demagogia. Aristóteles é um dos primeiros a admitir a relatividade humana: uma forma de governo pode ser boa ou má conforme o grupo social ao qual se destina. As suas preferências vão para um regime misto, conciliando os princípios monárquicos, aristocráticos e democráticos. O povo não deve intervir senão para eleger os magistrados e tratar os grandes problemas; o poder deve ser exercido pela classe média, por ser a que tem mais méritos. Na estrutura do Governo, Aristóteles distingue três atividades: o poder deliberativo, o poder executivo (para recrutar e organizar as funções públicas) e o poder judiciário. A sua análise é mais matizada e mais sutil do que fará Montesquieu no século XVIII; mas terá pouco sucesso porque tanto Roma como os regimes políticos da Idade Média e dos tempos modernos admitirão a confusão dos três poderes entre as mesmas mãos.”
A democracia é um poder do povo e, nesse sentido, ela está diretamente relacionada à noção aristotélica de ser humano como animal político. Ou seja, para Aristóteles o Homem só existe em sua plenitude quando inserido no processo político da polis.

DEMOCRACIA DIRETA

Como já dissemos, a democracia direta é aquela em que cada cidadão manifesta sua opinião em todas as questões que se referem ao governo, por meio do voto.

Quando a democracia surge em Atenas, apresenta-se de caráter direto. Contudo, isso só era possível porque, embora a população de Atenas fosse grande, os cidadãos (quem possuía o direito ao voto) eram poucos. Ou seja, quanto menor a democracia, mais fácil será para ela apresentar-se de maneira direta.

Em contrapartida, quanto maior for o número de cidadãos, mais difícil será de se estabelecer um regime de democracia direta.

Analisando as diferenças entre a noção de democracia para os antigos e para os modernos, Norberto Bobbio alerta:

“O significado descritivo geral do termo não se alterou, embora se altere, conforme os tempos e as doutrinas, o seu significado valorativo, segundo o qual o governo do povo pode ser preferível ao governo de um ou de poucos e vice-versa. O que se considera que foi alterado na passagem da democracia dos antigos à democracia dos modernos, ao menos no julgamento dos que vêem como útil tal contraposição, não é o titular do poder político, que é sempre o “povo”, entendido como o conjunto dos cidadãos a que cabe em última instância o direito de tomar as decisões coletivas, mas o modo (mais ou menos amplo) de exercer esse direito: nos mesmos anos em que nasce o Estado constitucional moderno, os autores do Federalista contrapõem a democracia direta dos antidos e das cidades medievais à democracia representativa, que é o único poder popular possível num grande Estado.”

DEMOCRACIA INDIRETA

A democracia indireta ou representativa nasce quando os cidadãos votantes são muitos. Ou seja, em uma democracia, o governo possui muitas questões que devem ser votadas. Justamente por isso, quanto maior o número de votantes, mais difícil é a apuração dos votos e mais difícil se torna o debate da matéria.

Portanto, para preservar a democracia, foi criado um mecanismo de representação política. Em outras palavras, a democracia indireta consiste na eleição, em intervalos regulares, de representantes que deverão defender os interesses de seus eleitores.

Na atualidade, por conta da crescente expansão dos meios de comunicação, existe forte ativismo que busca reivindicar algo que se aproxima mais da democracia direta. Nesse sentido, apresentam-se projetos de lei ou propostas de emenda à Constituição. Foi o caso da frustrada PEC 73/2005, a qual objetivava que os cidadãos pudessem, diretamente, revogar mandatos de políticos. Isso sim resgataria os valores da democracia direta.

DEMOCRACIA MISTA

No mesmo compasso que a aludida reivindicação de mecanismos democráticos diretos, encontra-se a democracia mista.

A democracia mista conjuga em si elementos das democracias direta e indireta, ou seja, é um meio termo entre esses dois extremos. O exemplo mais próximo que temos de uma democracia mista é justamente o Brasil.

O regime de governo adotado pelo Brasil é a democracia mista. Esse fato acaba confundindo muitos, pois não estamos acostumados a utilizar ferramentas de democracia direta. Não obstante, tais instrumentos democráticos estão previstos em nosso ordenamento jurídico, por exemplo, a ação popular, lei de iniciativa popular, plebiscito e referendo.

Cabe aqui uma reflexão: dado o atual contexto histórico-político brasileiro, não seria adequado que o povo exigisse uma utilização mais frequente dos instrumentos de democracia direta por ele titularizados?

O PRINCÍPIO DA MAIORIA

O princípio da maioria é reflexo da ideia de que a soberania pertence à massa. Tal princípio fundamenta-se na ideia de que a maioria tem o direito à decisão, justamente porque todos vão estar submetidos ao que será decidido. Ou seja, se todos devem se curvar a determinada decisão, cabe à maioria o poder de escolha.

O PRINCÍPIO DA IGUALDADE JURÍDICA

O princípio da igualdade é, também, produto da evolução humana. Tal princípio desenvolveu-se ao decorrer dos séculos e, hoje, é de suma importância no âmbito da ciência jurídica.

É verdade que, em nossa sociedade, muitos fatores impedem os cidadãos de serem plenamente iguais. De fato, no Brasil e na grande maioria dos países, a desigualdade econômica, política e cultural são gritantes. Contudo, para se chegar ao nível mais próximo do que chamamos de justiça, nossa atual democracia põe em prática algo que chamamos de isonomia. A isonomia nada mais é que a igualdade perante a lei.

Em outras palavras, a isonomia jurídica é o valor que auxilia os legisladores e magistrados a efetivar ou materializar a justiça. Esta, por sua vez, pode depender do contexto histórico, pois a definição de o que é justo já foi severamente alterada ao decorrer dos séculos.

É interessante a comparação entre a sociedade antiga e a contemporânea na perspectiva da igualdade jurídica. Na sociedade antiga o que ocorria era o oposto da atualidade. O que se buscava, antigamente, era legitimar os atos desiguais. Como por exemplo, a escravidão.

Paulatinamente, e com grande influência das revoltas populares, a igualdade na vida civil começa a ser reconhecida como um princípio necessário para que se haja paz em uma nação.

 PRINCÍPIO DA LIBERDADE

Assim como a igualdade, o princípio da liberdade é um dos grandes valores da democracia. A liberdade representa a capacidade, garantida pelo estado, para um indivíduo gerenciar seus atos. Todo cidadão é livre para tomar suas decisões desde que estas não violem os direitos de terceiros ou infrinja alguma lei.

Todos os cidadãos tem o direito de fazer tudo o que não está vedado pela lei e, igualmente, não são obrigados a fazer nada que não esteja explicito nela.

Caso, ao tomar uma decisão, a pessoa infrinja alguma lei, o sujeito deverá responder por seus atos e cumprir o que havia sido previamente estipulado para tal infração.

CONCLUSÃO

No mundo contemporâneo, a democracia é, sem dúvida, tida como o modelo ideal de governo. Afinal, trata-se de um modelo no qual as decisões, pelo menos teoricamente, traduzem a expressão popular.

É certo que, no mundo real, muitas vezes as decisões tomadas por nossos representantes não expressam, de fato, os anseios populares. Ainda assim, não devemos desistir dos valores democráticos. Em verdade, devemos nos dedicar à identificação das falhas de nossa democracia para, deste modo, podermos aprimolá-la, objetivando, cada vez mais, a participação do povo nos processos decisórios.


Lucas Tavares Simão

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

A religião e a política de um Estado Laico.



Ivison Guilherme Teixeira Barbosa | Leonardo Barreto Ferraz Gominho


O proselitismo religioso do Congresso Nacional que põe em risco a essência de nossa democracia


Ao analisar os projetos de leis apresentados ao Congresso Nacional, sob uma ótica doutrinária e jurídica, percebe-se que não há aplicabilidade da laicidade no Estado brasileiro.

Tratar em pesquisa da laicidade de um Estado “Cristão” é uma tarefa tão árdua quanto admitir que uma instituição política soberana é mais progressiva que qualquer outra que contém elementos religiosos.

O termo “laico” tem sua origem etimológica no grego laikós que significa “do povo”. Ao se falar em Estado laico, trata-se de um estado do povo em que a convicção de todos tem o mesmo peso. A laicidade consiste na separação da religião e do Estado, um sem interferir no campo de atuação do outro.

Dentro deste tema, trataremos da relação comum entre o Direito Brasileiro e o Direito Canônico e ainda veremos o histórico das Constituições Federais Brasileiras, inclusive a vigente, que versaram e versa, respectivamente, sobre as liberdades religiosas e o estabelecimento da Laicidade do Estado Democrático de Direito Brasileiro.

Neste trabalho, centralizarei o estudo em cima do proselitismo religioso do Congresso Nacional decorrente do abuso da liberdade religiosa que vai de encontro ao Princípio Constitucional da Laicidade do Estado Democrático de Direito Brasileiro e que põe em risco, inclusive, a própria liberdade religiosa prevista na Constituição Federal vigente.

E, para verificar se a Laicidade do Estado realmente se aplica, discorreremos sobre posicionamentos de representações políticas que apresentam projetos de leis baseados em seus princípios religiosos que se sobrepõem aos princípios democráticos e que sua aprovação recairá obrigações sobre aqueles de religiões diversas que não seguem determinados princípios, pondo em risco a liberdade religiosa e a essência de nossa Democracia.

Veremos também que a conservação e o aperfeiçoamento da democracia moderna necessitam da laicidade na prática. Demonstrar que a democracia depende da separação entre o Estado e a igreja, e para haver de fato a liberdade religiosa, a democracia e a laicidade devem andar juntas.

Viver em laicidade consiste num regime de convivências em que as instituições políticas estejam legitimadas pela soberania de um povo e não por elementos religiosos, incluindo nestes, princípios e doutrinas.

Pretende-se mostrar, com este trabalho, o equívoco relacionado entre a religião e a política do Estado Brasileiro que está pondo em risco nossa Democracia com a prática do proselitismo religioso no Congresso Nacional.

Em seguida, será tratada a relação do Direito Brasileiro com o Direito Canônico.




RELAÇÃO DO DIREITO BRASILEIRO COM O DIREITO CANÔNICO

Fazendo um apanhado histórico, não podemos deixar de citar a relação intrínseca entre o homem e a religião para o desenvolvimento das primeiras civilizações e, consequentemente, do fenômeno jurídico que a priori era a base de cunhos morais e religiosos.

Acerca da relação histórica entre o homem e a religião, assim leciona Luciano Teixeira Odebrecht:

"Em todas as sociedades que a história documentou é possível perceber a presença de alguma religião, quando não uma constituída com símbolos e entidades, mas algo que tente justificar o injustificável, tentando entender os mistérios da vida. Até nas sociedades que se consideravam atéias no período da "cortina de ferro", durante a Guerra Fria, existiam religiões atuando na clandestinidade. Um trabalho histórico que busque compreender determinada sociedade não pode furtar-se de tratar dos fenômenos religiosos presentes na época."

Desde o início da civilização que a religião já se encontra presente na vida do homem e foi por meio dela que foram criadas e seguidas as primeiras espécies de normas que regulamentavam a vida social.

Em relação ao nosso Direito Moderno, é sabido que a estrutura jurídica brasileira tem influência clara da religião. Por exemplo, o Direito Canônico que, sucintamente, influenciou tanto o Direito Latino, quanto o Direito Brasileiro. Daí, surgiram as primeiras codificações modernas do Ocidente e ordenamentos que passaram a reger as relações de um povo que seguia um Deus, Líder, um Ídolo ou até mesmo Deuses.

Edson Luiz Sampel apresenta a influência que o Direito Estatal sofreu do Direito Canônico: “Inegável é a influência que o direito estatal sofreu do Direito Canônico. Exemplo disto, temos o fato de que em várias faculdades, mesmo as públicas (a USP no Brasil é um caso), até meados do século XX lecionava-se ao lado do direito romano, o Canônico”.

Acerca da recepção do Direito Canônico pelo Direito Civil Brasileiro, também discorre Rafael Llano Cifuentes: “Ademais, é denso e contínuo o aporte dado ao Direito Canônico pelo Direito Civil, como o significado que o trabalho dos pandectistas e civilistas do século XIX teve à ciência canônica”.

Transcorrida esta etapa será abordada a evolução histórica das Constituições Federais Brasileiras, especialmente quanto a liberdade religiosa e alaicidade.



 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS CONSTITUIÇÕES FEDERAIS BRASILEIRAS QUANTO A LIBERDADE RELIGIOSA E A LAICIDADE

O processo sedimentar do direito à liberdade religiosa e da separação entre Igreja e o Estado no Brasil se deu e se dá, teoricamente, de forma paulatina, conforme se compreende diante das primeiras legislações e das Constituições Federais que daí se seguiram.

A CONSTITUIÇÃO IMPERIAL DE 1824

Partindo-se do momento histórico da independência do Estado brasileiro, o Brasil, por sua vez, tinha em seu ordenamento jurídico a Constituição Imperial de 1824, outorgada em nome da “Santíssima Trindade”, que trazia a Religião Católica Apostólica Romana como a oficial de nosso país.

Lá era legitimada dispositivos que continham características do Direito Canônico, mas permitia aos seguidores de outras religiões realizar cultos domésticos, ou particular em casas destinadas para isto, sem estrutura de templos. Assim, permitia-se a liberdade de crença, em que pese as limitações de culto.

Nas palavras de Celso Ribeiro Bastos: “na época só se reconhecia como livre o culto católico. Outras religiões deveriam contentar-se com celebrar um culto doméstico, vedada qualquer forma exterior de templo”.

Nesse mesmo sentido, também ensina Milton Ribeiro que:

"A Constituição do Império buscou cuidar da questão religiosa de forma clara, adotando um certo tom liberal no tratamento da individualidade, na medida em que seu foro íntimo encontrar-se-ia livre para a escolha religiosa, o que não se verifica no espaço público, na medida em que a manifestação exterior ainda é proibida e o próprio Estado, por sua vez, encontrava-se atrelado a uma religião oficial, a católica."

Observa-se, portanto, que a nossa primeira Constituição Federal possui um tom liberal quanto a liberalidade pessoal, em que pese o Estado ter aproximação com o catolicismo.

O DECRETO 119-A

Após a Proclamação da República em 1889, o marechal Manoel Deodoro da Fonseca, Chefe do Governo Provisório da Republica dos Estados Unidos do Brasil, em nome da nação, baixou o Decreto n.º 119-A, que já em seu primeiro artigo proibia a autoridade federal, assim como a dos estados federados, expedir leis, regulamentos, ou atos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e criar diferenças entre os habitantes do país, ou nos serviços sustentados á custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões filosóficas ou religiosas.

Já no segundo artigo se ressalta o avanço da liberdade de culto.

Desta maneira, permanece a liberalidade dos cidadãos brasileiros em seguir o culto que desejar.

A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1891

Com o advento da República se firmou as disposições da liberdade religiosa no Brasil, especialmente por meio do § 3º, do artigo 72, da Constituição Federal de 1891, que reza:

Art.72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes:

(...)

§ Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito commum.

Daí, por meio da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1891 foi consolidada a separação entre a Igreja e o Estado, fazendo do Brasil um estado laico. No entanto, surgiram as primeiras tentativas da aplicabilidade da laicidade no Estado Brasileiro.

Aldir Guedes Soriano assevera que “a constitucionalização do novo regime republicano consolidou, através da Constituição de 1891, a separação entre a Igreja e o Estado, fazendo do Brasil um estado laico”.

Ainda, conforme José Scampini, a carta republicana “Declarou a separação da igreja e do Estado, sobretudo através da instituição do casamento civil, a introdução do ensino leigo, a secularização dos cemitérios e a abolição de qualquer subvenção ao culto religioso”.

No mesmo viés, segue Fábio Dantas de Oliveira que defende que “a Constituição Federal de 1891 representou um marco no que tange à laicidade do Estado, pois todas as Constituições que lhe sucederam mantiveram a neutralidade inerente a um Estado Laico, ainda que teoricamente”.

Este passo foi importantíssimo para assegurar a laicidade das demais Constituições Federais.

A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1934

A Constituição de 1934 manteve a disposição sobre a liberdade religiosa e a separação entre igreja e Estado, porém com algumas possíveis limitações. Desta forma, expõe Maria Emília Corrêa Costa que “ainda assim, a liberdade religiosa poderia ser limitada em função da ordem pública e dos bons costumes. Tais conceitos se prestaram a interpretação várias e só foram abandonados no texto constitucional de 1988”.

O texto de 1934 foi rapidamente substituído pelo de 1937, diante do Governo de Getúlio Vargas. Tal Carta Magna continuou a estipular o Estado Laico Brasileiro.

A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1937

A Constituição Federal de 1937, outorgada durante um golpe de Estado, dispunha sobre a vedação de auxílio estatal a cultos religiosos e previa, em seu § 4º, do artigo 122:

Art. 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

§ todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum, as exigências da ordem pública e dos bons costumes;

Há nessa Constituição, de maneira limitada, a autorização de liberdade de culto, mas não há menção à liberdade de consciência e de crença.

A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1946

Voltou a dissertar sobre liberdade religiosa no rol de direitos e garantias individuais a Constituição Federal de 1946[19], que disciplinava em seu § 7º, do artigo 141:

Art 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

§ - É inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem pública ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica na forma da lei civil.

Após a abertura política se chega ao Regime Militar com a Constituição Federal de 1967 já restritiva de direitos que em 1969 foi mais ainda restrita.

A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1967 E A EMENDA DE 1969

A Constituição Federal de 1967, em vigor durante a ditadura militar, dispôs sobre a liberdade religiosa, em seu § 5º, do artigo 153:

Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos têrmos seguintes:

(...)

§ É plena a liberdade de consciência e fica assegurado aos crentes o exercício dos cultos religiosos, que não contrariem a ordem pública e os bons costumes.

Contudo, é perceptível que, na prática, assim como no período de vigência da Constituição de 1937, a liberdade religiosa poderia ser restringida nos casos em que fosse caracterizada como manifestação de caráter ideologicamente contrária ao poder vigente.

A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A Constituição Federal de 1988, após todas essas transformações ocorridas no Estado contemporâneo, dispõe sobre a liberdade religiosa no rol de direitos e garantias fundamentais em seus incisos VI e VII, do artigo 5°:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

(...)

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

Desta forma, na literatura, nota-se a liberdade religiosa que consiste na não proibição e, consequentemente, interferência do Estados nas relações individuais de crença, fazendo valer-se assim a Democracia para o âmbito religioso e as características de um Estado Laico.

Ademais, o texto constitucional vigente também traz algumas vedações aos entes federativos em seu inciso I, do artigo 19, prevê:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

Dispositivo este que reafirma o princípio da laicidade do Estado Brasileiro que trata da separação entre o Estado e a Igreja.

Todavia, decorridos mais de 100 (cem) anos, desde a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1891, momento inicial da contemporaneidade das Constituições Federais Brasileiras, a qual estabeleceu a laicidade do Estado brasileiro.

Após será tratado o importante princípio da laicidade e a democracia.


PRINCÍPIO DA LAICIDADE E A DEMOCRACIA


As liberdades laicas, enquanto garantias fundamentais dos cidadãos, consistem na limitação à atuação administrativa, legislativa e judicial do Estado. O princípio da laicidade previsto pela junção do inciso VI, do artigo 5° e do inciso I, do artigo 19, da Constituição Federal vigente estabelece a separação e independência entre as instituições religiosas e o Estado, bem assim assegura a inviolabilidade de consciência de crença.

No que diz respeito a independência do Estado em relação a religião, discorre José Joaquim Gomes Canotilho: “A laicidade do Estado reconhece que o ente estatal deve ser independente e autônomo em relação a qualquer religião, crença ou igreja”.

Essa independência autônoma do Estado está ligada intrinsicamente com a relação profunda entre a laicidade e a democracia, uma vez que para esta prevalecer, depende impreterivelmente daquela, e vice-versa, para assim ser valorado os direitos e as liberdades, inclusive a religiosa.

Acerca disso, já trata Aldir Guedes Soriano que a laicidade do Estado está vinculada diretamente à democracia, pois “não há direitos civis e políticos sem democracia, nem tampouco liberdade religiosa. A democracia é o substrato que permite o exercício da liberdade religiosa e, também, dos demais direitos fundamentais da pessoa humana”.

Vale ressaltar que as liberdades religiosas, de crença, de culto e a sua tolerância são garantidas e aceitas graças a laicidade do Estado e não a sua oposição. Portanto, o Estado Laico é o que garante a liberdade de expressão em sentido amplo e abrangente envolvendo opiniões sobre religiões, sexualidade e reprodução, comportamentos, convivência social, ideologias de gênero, aborto, dentre outras.

É esta liberdade garantida pela laicidade do Estado que deve estar presente nas representações políticas levando em consideração que estas existem devido ao Estado Laico Democrático de Direito em que vivemos hoje, teoricamente, ou que deveríamos viver na prática.


A LAICIDADE E A DEMOCRACIA BRASILEIRA EM XEQUE


O Brasil, atualmente, é um Estado Laico em crise que possui suas liberdades à margem do risco, uma vez que há representantes políticos impondo suas convicções fundamentalistas, religiosas e doutrinárias por meio de projetos que, em sua elaboração, a ética e os valores das instituições religiosas orientam o posicionamento na atividade parlamentar, ferindo, assim, a laicidade do Estado Democrático de Direito.

Sobre o assunto, diz Roberto Blancarte: “Os legisladores e funcionários públicos, mesmo que tenham suas crenças pessoais (religiosas ou de outro tipo), não devem nem podem impô-las à população. Legisladores e funcionários devem responder essencialmente ao interesse público, que pode ser distinto de suas crenças pessoais”.

A título de exemplo, o que muito se vê são debates políticos a respeito da reprodução e da sexualidade, da ciência e das novas tecnologias, aborto, ideologias de gênero, dentre outras no sentido de conjugá-las com os valores morais e religiosos o que impossibilita a separação lógica entre a religião e o Estado, ferindo assim a democracia do Estado brasileiro.

Atualmente se tem percebido o quão é falha a aplicabilidade da prática representativa laica pelos representantes políticos. O que muito se vê são representantes do Poder Legislativo apresentando Projetos de Lei no Congresso Nacional com base nas doutrinas e princípios religiosos que lhes são convenientes em relação a sua crença pessoal e a crença da fonte religiosa que o apoia na clara motivação eleitoreira de classes, impossibilitando a separação lógica entre a religião e o Estado, a fim de manter sua “legitimidade” pondo em risco a Democracia Moderna Brasileira.

Explica Roberto Blancarte que:

Os principais riscos que preocupam a Democracia Moderna e, em consequência, o Estado Laico, consistem em buscar a legitimidade do poder político em uma fonte que não é aquela que formalmente origina a autoridade do Estado (a vontade do povo) e socorrer-se de uma instituição religiosa para buscar a legitimidade onde não existe, debilitando, assim, a própria autoridade política, consequentemente ofendendo o poder dos cidadãos.

A obrigação do Estado é garantir os direitos de todos, incluindo das minorias, especialmente de serem livres e praticarem ações de acordo com suas crenças e preferências. A imposição doutrinária feita por qualquer representante político tira daqueles que não são de acordo a liberdade de praticarem suas ações.

Em suma, os legisladores não estão em seu cargo a título pessoal e devem, mesmo diante de seu direito de ter suas convicções, priorizar o interesse público no geral em suas funções e responsabilidades.




PROSELITISMO RELIGIOSO POR MEIO DE PROJETOS DE LEI


Diante de tudo o que foi explanado nos vem uma questão. Sob a análise da Carta Magna de 1988 e do atual comportamento do Congresso Nacional, especialmente por meio dos últimos Projetos de Lei apresentados nos últimos anos, o que legitima a existência de uma “bancada religiosa cristã” que impõe suas ideologias religiosas específicas a grandes grupos de religiões diversas e a grandes grupos não religiosos do Brasil? É coerente e cabível tais imposições diante da laicidade do Estado Brasileiro defendida pela Constituição Federal de 1988?

Para a população brasileira, o atual comportamento do Congresso Nacional relacionado às decisões das normas jurídicas, causa medo e insegurança uma vez que Projetos de Lei estão sendo apresentados com bases em religiões específicas, havendo uma complexa relação entre a igreja e o Estado, excluindo-se o caráter democrático, desconsiderando classes sociais diversas como aqueles que seguem outras religiões, ateus e agnósticos. Nesta linha de raciocínio também segue Maria das Dores Campos Machado:

Do ponto de vista da sociedade civil, a presença de atores religiosos nas casas legislativas preocupa uma vez que é um espaço de deliberação das normas que vão reger as relações de atores sociais ateus, agnósticos ou das mais diferentes religiões em esferas tão distintas como o mundo do trabalho, da família, da política e etc.

Na mesma linha de raciocínio, também segue Edlaine de Campos Gomes:

A participação política e a efetiva atuação de sujeitos e grupos religiosos nas instâncias decisórias do país exemplificam a complexidade das relações entre religião e Estado na contemporaneidade. Nesse cenário cultural, o espaço público constitui-se como lócus no qual ocorrem enfrentamentos entre distintos atores sociais, movidos por interesses e valores conflitantes, que expressam disputas e relações de poder cujos impactos se fazem sentir sobre a tramitação de projetos de lei (PL).

É necessário citar alguns projetos dentro de uma arena cada vez mais conservadora frente às temáticas da política, da criminalização da homofobia, sobre o aborto etc.

Baseado em doutrinas religiosas que vão de encontro às concepções da maioria dos cidadãos brasileiros, podemos destacar o Projeto de Lei n.º 6.314/2005 de autoria do deputado Hidekazu Takayama:

Trata de um projeto de lei na Câmara dos Deputados que quer dar imunidade aos crimes de injúria e difamação para as opiniões de líderes religiosos e de professores no exercício de suas atividades. Ou seja, uma vez aprovado esse projeto, pastores poderão falar o que quiserem no exercício do ministério, sem serem responsabilizados por crime de difamação ou de injúria.

O que mais se percebe neste projeto é a tentativa de dar liberdade à agressão moral que configura injúria e difamação, que, por sua vez, ferirá a dignidade daqueles que não são de acordo com as convicções de determinado grupo religioso específico. Religiosos, no geral, sejam eles de direita ou de esquerda, devem ser cidadãos. E como cidadãos eles têm seus direitos e seus deveres, assim como qualquer outro grupo social.

Outro exemplo é o Projeto de Lei n.º 6.583/2013, de autoria do deputado Anderson Ferreira:

O texto deste Projeto relacionado ao Estatuto da Família, reconhece família como “a entidade familiar formada a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou de união estável, e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos”.

Este projeto surgiu da bancada evangélica de uma análise própria de seus conceitos bíblicos. 

Nos dizeres, o Deputado Glauber Braga: “o substitutivo é discriminatório e preconceituoso e retira direitos de milhões de brasileiros que não se enquadram no conceito de família aprovado”.

Aqueles que não se enquadram no texto/conceito de família aprovado, ou seja, as minorias, são vítimas da atuação política doutrinária e religiosa contrária a demandas dos movimentos sociais legítimos perante a laicidade em conjunto com direitos. Edlaine de Campos Gomes, destaca:

A inserção na esfera pública através da participação política representa uma transformação marcante no quadro político nacional, com uma participação cada vez maior de evangélicos, compondo uma bancada influente na definição de certas votações. Apesar disso, a presença de sujeitos de identidade católica, nessas mesmas instâncias, assinala a existência de linhas de força que podem ser confluentes na atuação política contrária a demandas de reconhecimentos de determinados movimentos sociais, principalmente, aqueles dedicados à defesa das minorias sexuais.

O Deputado Glauber Braga destacou o projeto de lei e pediu votação em separado de uma emenda do deputado Bacelar (PTN-BA) que define entidade familiar como sendo o “núcleo social formado por duas ou mais pessoas unidas por laços sanguíneos ou afetivos, originados pelo casamento, união estável ou afinidade”.

Acredita-se esta ser a redação mais viável, uma vez que afasta qualquer tipo de discriminação e inclui no Estatuto diferentes entidades familiares, priorizando a liberdade de escolha para constituir a família de acordo com a vontade de cada um. Porém, a medida foi rejeitada, inclusive, pela bancada evangélica, por ter sido levado em conta princípios religiosos.

Ainda seguindo nestas mesmas linhas sobre direitos sexuais. Acima destes direitos está a bíblia? É justo num Estado Laico Democrático de Direito?

O Projeto de Lei da Câmara nº. 122/2006, arquivado em 2015, de autoria da Deputada Iara Bernardi, visava criminalizar a discriminação motivada unicamente na orientação sexual ou na identidade de gênero da pessoa discriminada. Se fosse aprovado, iria alterar a Lei de Racismo para incluir tais discriminações no conceito legal de racismo, que abrange, atualmente, a discriminação por cor de pele, etnia, origem nacional ou religião. Em termo técnico, segundo a explicação do tema dado pelo Senado Federal,

Altera a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal) e o Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 (Consolidação das Leis do Trabalho – CLT) para definir os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero. Estabelece as tipificações e delimita as responsabilidades do ato e dos agentes.

O motivo da não aprovação do Projeto em discussão está ligada intrinsecamente à resistência intensa da bancada religiosa evangélica do Congresso Nacional que, diante de seus posicionamentos morais religiosos distintos, atropelam a democracia do Estado Brasileiro que, além de outros direitos, assegura também a qualquer cidadão o Direito de não ser discriminado por motivos que não interfiram no direito dos outros. Acerca do assunto e em relação àqueles que propagam o proselitismo religioso, discorre Marcelo Natividade:

A atuação desses sujeitos no espaço público está submetida aos interesses na reprodução da moral, neste caso sexual, defendida na esfera religiosa. Esta é a motivação para a mobilização contrária à aprovação da criminalização da homofobia no pais, ora invocando argumentos laicos, ora visões de mundo religiosas.

Desta maneira, na época da tramitação do Projeto, disse Paulo Roberto Iotti Vecchiatti

O PLC n.º 122/06 terá, inicialmente, um importante efeito simbólico: declarar à sociedade que o Estado Brasileiro não tolera a discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero, concretizando legislativamente a promessa constitucional de uma sociedade livre, justa e solidária que condena discriminações preconceituosas de qualquer espécie (art. 3º, inc. IV, da CF/88).

Inúmeras foram as tentativas de incluir o termo “orientação sexual” no texto da Constituição Federal afim de solidificar aos homossexuais o direito de ser cidadão, mas posicionamentos conservadores prevaleceram. Assim, Marcelo Natividade expõe mais uma vez que:

Entre os anos de 1995 e 2007, são apresentados inúmeros PLs que buscam incluir a palavra orientação sexual no texto da Constituição, alterando a Lei 7.716/1989. O objetivo é situar a discriminação por orientação sexual ao lado de crimes de raça, etnia, sexo e gênero. Observa-se que, através de distintas iniciativas, a questão se coloca em termos da garantia da cidadania às minorias sexuais. Desde o início da sua trajetória, a demanda enfrenta oposição religiosa, envolvendo a reprodução de estigmas e a desqualificação dos homossexuais por setores conservadores.

Diante de tamanha resistência e desrespeito à laicidade do Estado Brasileiro, este Projeto de Lei foi arquivado no ano de 2015. Em torno da criminalização da homofobia, estão presentes, como visto, argumentos morais que desqualificam a homossexualidade e fundamentam o proselitismo religioso que busca conter a aceitação social do comportamento homoafetivo. Mas é sabido que o Estado brasileiro não pode se omitir perante violências praticadas contra os homossexuais. Neste sentido, espera-se que seja levado em consideração a discriminação em razão da orientação sexual e identidade de gênero no Projeto de Lei do novo Código Penal nº 236/2012.

Mais um projeto de lei inerente ao tema é o Projeto de Lei n.º 5.069/2013, de autoria do Deputado Eduardo Cunha, que diz:

É um projeto que cria uma série de empecilhos para o direito constitucional das mulheres vítimas de violência sexual realizarem aborto na rede pública de saúde. Dificulta ainda mais o acesso das mulheres aos procedimentos abortivos, inclusive aos que já estão legalizados.

É intensa a influência do discurso religioso proselitista nos debates públicos sobre questões sociais críticas, como é o caso o aborto. Nestas mesmas linhas discorre Edlaine de Campos Gomes que:

A “vida é um dom de Deus” é a premissa na qual se funda o discurso parlamentar-religioso contrário à descriminalização do aborto. Essa convicção une a chamada “bancada evangélica” e o grupo de parlamentares católicos – especialmente identificados com a vertente carismática.

Vale ressaltar que neste projeto considerações bíblicas foram consideradas como o seguinte: “Antes de te formar no ventre materno, Eu te escolhi; antes que saísses do seio da tua mãe, Eu te consagrei”. (Jeremias 1:5).

Em momento algum foi levado em consideração posicionamentos da medicina acerca do assunto ou foi feita qualquer consulta pública às mulheres.

Em entrevista ao site da Globo para a revista Galileu, a respeito das controvérsias em relação à vida, a ativista, advogada e militante feminista, Isadora Penna, disse que: “O conceito de quando começa a vida é muito polêmico. Para a religião, para a ciência. Mas a vida da mulher não é nada controversa, não é nada polêmica. A vida da mulher está lá”.

Além desses Projetos de Lei apresentados pela bancada extremista do Congresso Nacional que, por meio da legitimidade que lhes foi dada, vão de encontro à laicidade do Estado pondo em risco a democracia, também foram apresentados textos intitulados como “Cura Gay”, a dita Proposta de Emenda Constitucional n.º 171/1993, que usa passagens bíblicas para justificar a redução da maioridade penal, e, ainda, barraram o trecho que trata do ensino da ideologia de gênero nas escolas no Plano Nacional de Educação.

Destacamos que estes Projetos de Leis apresentados são simplesmente exemplos das temáticas que estão sendo confrontadas em que se figuram de um lado uma banca extremista que tenta legitimar seu extremismo por meio de leis e de outra banda os demais cidadãos brasileiros.



Este estudo tratou da laicidade do Estado brasileiro que se encontra diariamente ameaçada perante o proselitismo religioso praticado por representações políticas no Congresso Nacional.

Ancorado em retrospectos históricos, discorremos acerca da relação da Igreja com o Estado, a qual já vigorou no Brasil e, posteriormente, por meio das Constituições Federais Brasileiras que tiveram como a pioneira em tratar da separação entre a Igreja e o Estado a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1891, fazendo do Brasil um estado laico.

No entanto, é perceptível o quanto que o ordenamento Jurídico brasileiro está distante da laicidade também consolidada pela própria Constituição Federal de 1988, uma vez que representantes do Poder Legislativo têm apresentado projetos de lei baseados em princípios religiosos específicos que se sobrepõem aos princípios democráticos.

Vimos que os impactos do poder religioso na tramitação de Projetos de Lei são sentidos por meio da forte atuação de sujeitos portadores de valores religiosos que, por meio de suas ações, objetivam procrastinar as discussões e a tramitação de propostas contra suas visões religiosas de mundo.

A Exemplos deste proselitismo, tratamos do Projeto de Lei n.º 6.314/2005 que visa dar imunidade aos líderes religiosos acerca dos crimes de injúria e difamação; o Projeto de Lei n.º 6.583/2013 que trata do “Estatuto da Família” que traz um novo conceito de família que defende que sua formação deva ser considerada apenas diante da união de um homem e uma mulher, conceito discriminatório que exclui outras modalidades de família que não são de acordo com os princípios morais e religiosos cristão os quais seguem os legisladores; o Projeto de Lei da Câmara nº. 122/2006, arquivado em 2015, que visava criminalizar a discriminação motivada pela orientação sexual ou na identidade de gênero da pessoa discriminada, ou seja, a homofobia; e, por fim, tratamos também do Projeto de Lei n.º 5.069/2013 que visa dificultar o aborto para mulheres vítimas de violência sexual e até mesmo aquelas situações já regulamentadas por lei.

Como vimos, todos estes projetos sofrem uma grande influência de parlamentares religiosos que utilizam de seus conceitos morais para impor obrigações ou negar direitos àqueles de religiões diversas ou não religiosos. E diante deste proselitismo, constatamos que as classes mais prejudicadas são as que já se encontram diante da vulnerabilidade social, ou seja, as minorias.

Na mesma sequência, constatamos que os legisladores por mais que tenham suas crenças religiosas individuais, não devem e, diante da laicidade, muito menos impô-las à população, uma vez que esta não é formada apenas por pessoas que compactuam ou tem afinidade com a religião tida como base para o Projeto de Lei, mas sim por pessoas de outras religiões e pessoas não religiosas também.

Assim, percebemos que os embates focados neste estudo mostram que as tensões ocorrem não apenas nas apresentações de Projetos ou oposições a outros, mas nas ações e reações que ultrapassam os limites do legislativo.

Constatamos que valores religiosos fundamentalistas no poder público com a utilização de passagens bíblicas, princípios e doutrinas religiosas, estão em oposição à construção de um Estado Democrático de fato. A consolidação da laicidade, além de contemplar liberdades religiosas, devem se sustentar na desvinculação entre a Igreja e o Estado.

A partir daí, percebemos que, apesar da relação que já existiu entre o Estado e a religião, a conservação e o aperfeiçoamento da democracia moderna necessita da laicidade.

Foi demonstrado que a democracia depende da separação entre o Estado e a Igreja, e para haver a liberdade religiosa, a democracia e a laicidade devem andar juntas. Viver em laicidade consiste num regime de convivências em que as instituições políticas estejam legitimadas pela soberania de um povo e não por elementos religiosos, incluindo nestes, princípios e doutrinas.

E, por fim, vale salientar que a responsabilidade de tudo que ocorre hoje no Brasil acerca deste proselitismo religioso do Congresso Nacional cumulado com assédio religioso de grande proporção é responsabilidade nossa.

Se o próprio legislador não é capaz de visualizar a agressão feita à laicidade do Estado brasileiro, são os operadores do direito que necessita agir com urgência. Afinal, quando ingressamos na faculdade de Direito queremos um mundo melhor, principalmente no tocante à liberdade e igualdade de todos, em suma, uma sociedade mais justa.

Cabe a nós dilacerar o preconceito e pôr empoderamento social em seu lugar nas pessoas. É necessário nos atentarmos que vivemos num Estado laico e na hora de julgar, administrar e, principalmente, legislar é necessário priorizar o afastamento dos dogmas religiosos que cada um segue.

 Precisamos atuar para assegurar direitos e garantias iguais para todos. Esta é a única forma para se fazer justiça de fato, com ênfase às minorias prejudicadas, pois, acredita-se que o Estado laico protege melhor as minorias democraticamente.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Limites da transformação social no Brasil


Por: Luis Felipe Miguel / Mar. 2013 

No primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006), o cientista político e jornalista André Singer ocupou a função de porta-voz da presidência da República. 

No segundo mandato, de volta ao mundo acadêmico, colocou-se na posição de intérprete do "lulismo", buscando entender algo que, para ele, é mais do que a simples adesão a um líder carismático: é um projeto político complexo, baseado no apoio da massa de excluídos e voltado para a superação da miséria sem o enfrentamento dos privilégios. Apresentado em artigos que causaram razoável polêmica, o argumento está agora consolidado no livro Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador, que reúne os três textos antes publicados e acrescenta a eles uma introdução e um capítulo inéditos. Como posfácio, o autor inclui uma versão modificada do memorial que apresentou ao concurso para livre-docência na Universidade de São Paulo, mas que - à parte desvelar sua relação afetiva com o ideário original do Partido dos Trabalhadores - pouco soma ao livro.

Essa vinculação, no entanto, não é irrelevante. No início do livro, Singer faz o elogio ritual da "objetividade científica", garantindo que o trabalho não é contaminado por suas preferências e afetos políticos. Evidentemente, não é assim - e não há nenhum demérito nisso. 

Os sentidos do lulismo tem a ambição de mostrar que, no PT de hoje, que abraça Paulo Maluf e se entrega gostosamente às práticas da política tradicional brasileira, ainda sobrevive o compromisso popular e mesmo socialista dos primeiros anos. 

Não se trata de negar as mudanças sofridas pelo partido, nem o caráter conservador delas, mas de enquadrá-las numa narrativa em que aquilo que, à primeira vista, parecia ser oportunismo ou capitulação se torna peça de um projeto, muito moderado, é verdade, mas orientado decididamente na direção da mudança do país.

A tese principal do livro é que o "reformismo fraco" do lulismo não é o abandono, muito menos a traição, e sim a "diluição" do "reformismo forte" do petismo de antes. O reformismo diluído lulista evita a todo custo o confronto com a burguesia, optando por políticas que, na aparência, não afetam quaisquer interesses estabelecidos. Tal opção não se deve, ou não se deve principalmente, ao jeito matreiro e ao pendor acomodatício do ex-presidente, como a imprensa gosta de afirmar. É fruto, por um lado, da chantagem que os proprietários fizeram nas campanhas presidenciais do pt, desde a ameaça aberta de desinvestimento em 1989 até a elevação exagerada do câmbio em 2002. Lula aprendeu que não deve mexer com o capital. 

Por outro lado, a diluição do reformismo reflete a compreensão de que o maior contingente do eleitorado brasileiro - o "subproletariado", segundo o conceito que o livro busca na obra de Paul Singer - deseja um Estado ativo no combate à pobreza, mas que não ponha em risco a manutenção da "ordem".

O subproletariado reúne aqueles que não conseguem vender sua força de trabalho pelo valor necessário para sua própria reprodução e que formariam cerca de metade da população economicamente ativa do Brasil. Singer discute, com algum cuidado, a opção pelo conceito, em vez de falar em "excluídos" ou mesmo na "ralé" dos livros de Jessé Souza. 

É o gancho para sua defesa de uma análise das disputas políticas focada nas classes sociais, que parte da observação - correta - de que, ao deixar esse eixo de lado, a ciência política se torna insensível a elementos centrais do conflito de interesses na sociedade. A ambição é mostrar que as decisões eleitorais acompanham as clivagens de classes. No entanto, o argumento é enfraquecido pelo fato de que, em boa parte da análise, voto classista é tratado como equivalente de voto econômico.

O ponto é intrincado porque, na percepção de Singer, o subproletariado tem como único projeto deixar de existir, isto é, transformar-se em proletariado. Ele deseja ser incorporado ao mercado formal de trabalho, receber salários que garantam um padrão mínimo de consumo e gozar das garantias que o Estado concede a esses trabalhadores. O livro observa, com razão, que a "nova classe média", tão badalada, é na verdade formada por neoproletários, sejam eles operários tradicionais da indústria ou empregados dos escalões inferiores do crescente setor de serviços. São setores intermediários, sim, porque abaixo deles permanece o subproletariado, mas estão longe de possuir as características associadas às classes médias propriamente ditas.

No meio disso tudo, as classes, protagonistas da narrativa do livro, não se caracterizam por quaisquer antagonismos - que é o que permite a mágica do lulismo, de dar aos pobres sem tirar dos ricos. Como se fosse o avesso da percepção de E. P. Thompson, de que as classes sociais se formam como efeito das lutas que ocorrem no interior da sociedade, aqui a classe surge pela identificação que algum outro agente político faz dos desejos e necessidades de um aglomerado de pessoas. 

Essa visão explica porque Singer problematiza tão pouco o apego à "ordem" por parte do subproletariado. A ojeriza à desordem, que significa na verdade qualquer política de enfrentamento do capital, explica por que o subproletariado foi historicamente a base eleitoral da direita, por que ele se converteu ao lulismo ao longo do primeiro mandato de Lula e por que tentativas de mobilizá-lo de outra forma, como a buscada pelo MST, não obtiveram êxito mais do que parcial. Mas permanece, ela mesma, inexplicada.

Seja como for, foi a sensibilidade de Lula para o programa dessa camada (um Estado atuando em favor dos mais pobres, sem confrontar a ordem) que permitiu o realinhamento eleitoral de 2006, quando o presidente trocou parte do eleitorado petista tradicional, baseado nas classes médias urbanas mais escolarizadas, pela massa de subproletários. A tese do realinhamento é polêmica, como Singer mesmo indica no livro, mas os dados são eloquentes quando mostram a mudança na base eleitoral dos candidatos presidenciais do PT em 2006 e 2010, em comparação com as disputas anteriores.

A necessidade de manter a ação governamental dentro dos limites da "ordem" tem consequências quanto ao ajuste do foco das políticas. Singer observa, com razão, que o reformismo fraco tem como meta a superação da pobreza, ao passo que o reformismo forte buscava a superação da desigualdade - e que as duas coisas não confluem necessariamente. É essa observação que permite colocar em suspeita a tese, central ao livro, da continuidade do programa petista, apesar da diluição de seu componente reformista. A diluição implicou a substituição do horizonte almejado, que deixa de ser um país sem desigualdade para ser um país sem pobreza, como diz o slogan do governo Dilma Rousseff.

Muito mais do que a convivência e o amálgama entre as duas "almas" do pt, como diz Singer, a socialista aguerrida dos primórdios e a moderada de agora, é possível ver a consolidação de uma hegemonia interna, com a marginalização dos setores mais principistas do partido - por mais que, como aponta o livro, muitas de suas teses permaneçam brilhando nas resoluções dos congressos petistas. É uma mudança que se refere ao abandono do projeto não só de transformação socialista das relações de produção, mas também de renovação das práticas políticas, com o aprofundamento da democracia e a revalorização da experiência popular. Quanto a esse quesito, o autor evoca a realização das conferências nacionais de políticas públicas, embora se veja constrangido a reconhecer que seus resultados práticos são "discutíveis"1. Mas é indiscutível a adesão do PT ao "toma lá, dá cá" que caracteriza o jogo político brasileiro.

O questionamento da tese da continuidade entre o petismo inicial e o lulismo não significa que a obra de Singer não faça uma análise competente da gestão do Estado brasileiro desde 2002. A redução da miséria e da pobreza, fruto de uma ação política que a priorizou, por meio de medidas como Bolsa Família, aumentos reais do salário mínimo e ampliação do crédito consignado, além de programas que evitaram ativamente o desaquecimento da economia, como o Minha Casa, Minha Vida, é um fato de enorme relevância política e social, valioso por si só. Mas Os sentidos do lulismo não avança na investigação sobre o impacto da diminuição da pobreza nos padrões de distribuição da riqueza.

De fato, os dados têm mostrado uma redução significativa da desigualdade de renda no Brasil desde o início do governo Lula. Mas os números dizem respeito apenas aos rendimentos do trabalho; dito de outra forma, as disparidades salariais estão diminuindo, sobretudo pela redução do contingente dos que são severamente sub-remunerados - o que já é uma vitória em si, já que a discrepância entre maiores e menores salários, no Brasil, sempre foi obscena. Para críticos das administrações petistas, entre os quais Francisco de Oliveira, o dado esconde o fato de que, ao mesmo tempo, a parcela abocanhada pelo capital, na riqueza nacional, estaria crescendo. Ou seja, os mais pobres seriam beneficiados por políticas compensatórias, ao mesmo tempo que a burguesia auferiria lucros recordes. 

Singer cita brevemente dados que contradizem essa interpretação e mostram que, na verdade, a participação do trabalho na renda nacional estaria aumentando. Em nota de rodapé, admite que os dados são controversos e que é possível que esteja ocorrendo o contrário. Uma interpretação razoável, baseada nas contas nacionais, parece ficar no meio termo: a repartição da renda entre capital e trabalho tem ficado estável desde o início do século XXI, com o rendimento do capital correspondendo a cerca de três quintos do total.

Se é mesmo assim, os limites da política lulista são bem mais claros do que a narrativa de Singer acaba por indicar. Fato que ecoa uma das ausências importantes do livro, que é a plataforma política do capital. O subproletariado é, evidentemente, personagem importante, tendo encontrado quem realize por ele seu programa. O proletariado seria beneficiado objetivamente com a redução do exército industrial de reserva, o que lhe colocaria em condições mais vantajosas nas disputas salariais. 

E as classes médias aparecem como as antagonistas, perdendo tanto o sentimento subjetivo de distinção social, que a distância em relação aos mais pobres concedia, quanto as vantagens objetivas advindas do acesso a uma multidão de pessoas dispostas ao subemprego, uma realidade apreendida pela infeliz boutade do ex-ministro Delfim Netto sobre a empregada doméstica como "animal em extinção". Pouco se fala, porém, de como os interesses da burguesia se expressam. Seguramente porque, no jogo político brasileiro de hoje, que o lulismo não questiona, os interesses do capital são intocáveis.


As vantagens do operariado sob o lulismo também merecem uma atenção maior. André Singer concentra toda a interpretação no efeito que a redução do subemprego tem na correlação de forças dos embates por melhores salários e condições de trabalho. Cita, como sustentação, a elevada proporção de greves que têm obtido reajustes reais para suas categorias profissionais. Mas não leva em conta o fato de que o perfil das categorias paradas mudou, com uma concentração no setor público, bem como o alcance de suas reivindicações. Embora a mudança do perfil da economia brasileira seja apontada, com o peso crescente das commodities e decrescente da produção industrial, o reflexo desse fato na ação política da classe operária não é discutido.

Ao tratar dos governos anteriores, é lembrado o esforço de Fernando Henrique Cardoso para quebrar a espinha do sindicalismo, com sua atuação na greve dos petroleiros de 1995, que seguiu a melhor cartilha thatcherista. Mas o PT também trabalhou na direção do esvaziamento do movimento sindical - e dos movimentos sociais em geral - com políticas de cooptação de suas lideranças, engessamento de suas agendas e sufocamento de suas demandas. Conforme o célebre conselho de François Andrieux a Napoleão, "on ne s'appuie que sur ce qui résiste": só nos apoiamos sobre o que resiste. Ao dobrar a resistência dos movimentos sociais no Brasil, o PT enfraqueceu sua própria base de apoio. Sua atual incapacidade de mobilização ficou patente no recente julgamento do chamado "mensalão". 

Mas não se trata de um efeito colateral ou inesperado. O enfraquecimento dos movimentos sociais que alimentaram a experiência do PT em sua fase heroica representou a garantia dada ao capital de que a inflexão moderada, pragmática ou conservadora, expressa em documentos como a "Carta aos brasileiros" da campanha de Lula em 2002, não seria letra morta. Minando a possibilidade de ação efetiva dos setores que sustentariam um projeto de transformação mais radical, garantiu-se a credibilidade das promessas feitas de manutenção das linhas gerais do modelo de acumulação vigente. Por isso, a afirmação de que o lulismo é vantajoso para a classe operária precisa ser matizada com outros elementos.

Da mesma forma, o entendimento de que os programas de inclusão social do período lulista se tornaram um componente inarredável do consenso político no Brasil parece ter muito de wishful thinking. É verdade que o lulismo avançou sobre as bases eleitorais tradicionais dos partidos de direita e os obriga a uma reorganização do próprio discurso. Nem por isso é preciso aceitar ao pé da letra as afirmações - anódinas e inconvincentes - dos candidatos do psdb, de que vão ampliar os benefícios do Programa Bolsa Família. 

A verdade efetiva por trás delas só será verificada quando retornarem ao poder. É mais significativa sua guinada para um discurso moralista, que, quando voltado para as classes médias urbanas, ganha um matiz udenista e foco na probidade administrativa, e, quando voltado para os mais pobres, assume a forma do fundamentalismo cristão, voltando-se contra os direitos das mulheres e dos homossexuais. As campanhas de José Serra em 2010 e 2012 são exemplos eloquentes.

A mobilização eleitoral desse tipo de discurso ainda não rendeu os frutos esperados e restam dúvidas sobre o êxito da "americanização" da disputa política no Brasil. Mas é um elemento importante para entender os processos em curso, na redefinição das posições dos principais partidos. Da forma que Singer coloca, o lulismo também teria promovido uma elevação do patamar do consenso político, incluindo o compromisso com a superação da pobreza, o que de alguma maneira até poderia compensar a perda da promessa de uma nova forma de fazer política, que o PT representava. Levando em conta a guinada reacionária no discurso do psdb, os termos da equação se alteram. E nada disso é incompatível com uma proposta de fazer a análise dando centralidade à clivagem de classes: a disputa ideológica faz parte da luta de classes, que não se resume ao aspecto econômico.

Ao final do livro, o leitor não fica inteiramente convencido de que o lulismo é um projeto, realmente, e não a expressão apenas de sensibilidade política e senso de oportunidade. A noção de cesarismo ou bonapartismo, que Singer mobiliza mais de uma vez ao longo da obra, encontra dificuldades para se adaptar a uma democracia eleitoral moderna, mas apresenta vias de interpretação interessantes, sobretudo se lembramos que são soluções conservadoras para impasses na reprodução da dominação.

Escrito com clareza - e justamente por isso se abrindo de maneira franca ao debate -, Os sentidos do lulismo é uma contribuição valiosa para o entendimento da política atual no Brasil. Trata-se de um processo complexo, eivado de ambiguidades e ainda em curso. André Singer ajuda a pensá-lo para além das oposições esquemáticas e dicotomias grosseiras que se apresentam em muitas das análises mais correntes. Entre ganhos sociais que não podem ser negados e o abandono, também inegável, de ideais mais exigentes de sociedade, permanece em aberto o saldo do experimento lulista.

LUIS FELIPE MIGUEL é professor titular de ciência política na Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê)