Reflexão sobre a questão do voto no Brasil.
Quando o assunto é a questão da obrigatoriedade ou facultatividade do sufrágio, a discussão se torna deveras polêmica. Vários argumentos se levantam a favor e contra a instituição desse ou daquele tipo de sufrágio, com suas respectivas justificações. Mas o que resta saber é se, no contexto sócio-econômico-cultural brasileiro, um tipo de sufrágio seria superior ao outro. A esse respeito, cabe-nos aqui levantar alguns questionamentos. Mas antes, façamos um breve histórico do sistema de sufrágio no nosso país.
A questão do sufrágio, em sua versão brasileira, sofreu várias mudanças, no período da história que abarca desde o nosso primeiro código eleitoral até as últimas eleições. O primeiro Código Eleitoral aplicado pelo Brasil foram as chamadas “Ordenações do Reino”, elaboradas em Portugal no fim da Idade Média. Em 1532, esse código foi utilizado para se eleger o Conselho Municipal da Vila de São Vicente, em São Paulo; posteriormente, e até 1828, o Brasil utilizou esse Código em todas as eleições municipais, naquelas regiões que estavam sob o domínio português.
Nos primeiros processos eleitorais, o voto era livre e toda a comunidade votava. Com o tempo, o poder aquisitivo do eleitor passou a ser considerado, e o voto se tornou direito exclusivo daqueles homens que possuíam determinada renda anual. As mulheres, índios e escravos não participavam do processo eleitoral. Além disso, durante o Império, alterações feitas na legislação às vésperas das eleições propiciavam uma grande quantidade de fraudes. Na época, o sufrágio era facultativo, e assim continuou a ser até a Revolução de 1930. Após essa Revolução, o sufrágio se tornou obrigatório para homens e mulheres alfabetizados e maiores de 18 anos. Em 1935, os analfabetos conquistaram o direito de votar nas eleições e, em 1988, esse direito estendido, de modo facultativo, àqueles jovens que tinham entre 16 e 18 anos de idade.
Tendo levantado um sucinto perfil histórico do nosso sufrágio, e considerando o projeto de Emenda Constitucional nº 39, que tramita no Senado (que institui a facultatividade do sufrágio), podemos abordar algumas questões que aqui surgem com notável relevância.
Em primeiro lugar, é interessante considerar a justificativa dada pelo senador Sérgio Cabral ao propor o projeto de Emenda nº 39. Ele se coloca a favor da facultatividade do foto, defendendo-a com argumentos como: “... o ato de votar deve ser espontâneo”; “... a regra constitucional da obrigatoriedade... em nada colabora com a democracia”; “... em países considerados desenvolvidos, o voto é considerado um direito e não uma obrigação”; e “... somente se tratarmos o voto como direito possibilitaremos o cidadão de votar com liberdade... aperfeiçoando, assim, o Estado Democrático de Direito”. São argumentos, sem dúvida, dignos de serem colocados em debate.
Quando o senador Cabral defende que a obrigatoriedade não colabora com a democracia e que em países desenvolvidos o voto não é uma obrigação, é inevitável que nos perguntemos se essa justificação comparativa teria efeitos práticos no caso brasileiro. Será que o aperfeiçoamento do sistema democrático e o fato de prevalecer o sufrágio facultativo em países desenvolvidos seria suficiente para justificar uma mudança dessa magnitude no nosso sistema? Afinal, conseguiria o nosso país dar um passo significativo rumo ao nível democrático de países do primeiro mundo simplesmente adotando a facultatividade desse sufrágio?
Com base nesses questionamentos, é quase que tendencioso que neguemos tais questões. Pois, se esperamos resultados semelhantes, teríamos de considerar objetos de análise e atuação semelhantes. E aqui se torna óbvio que os países em questão não são tão semelhantes nem em termos culturais e nem históricos. Se a história influencia na formação cultural de um povo, já se cria um embate entre estes pólos de comparação.
De um lado temos o Brasil que, como foi brevemente elucidado acima, “atrasou” quatro séculos desde seu descobrimento para instituir um processo eleitoral abrangente (pela própria inexistência de uma consciência de luta política enraizada na população, derivada de uma história de conquistas realizadas pelas oligarquias politizadas); e que, ainda nos dias de hoje, enfrenta problemas de natureza política como:
1) a falta de consciência política da população (confirmada por fatos como a constante compra de votos que ocorre nas eleições, através da crença do eleitor em “promessas inviáveis” de serem cumpridas, feitas durante o período eleitoral; e do próprio “messianismo” criado em torno da figura dos presidentes e governadores, na esperança de que estes, sozinhos, resolvam todos os problemas do país);
2) a descrença no sistema político (cujo espírito se torna cada vez mais difundido pelo bordão “os políticos são todos iguais”), somadas aos de natureza social como
3) um sistema educacional deficiente; e sociais como 1) o analfabetismo (que contribui com a ausência do debate político no âmbito familiar da população), e o descaso que muitas vezes é percebido nas atitudes das autoridades, quando confrontadas com estes problemas (precariedade de políticas públicas efetivas que visem sanar ou ao menos abrandar os mesmos).
Do outro lado, temos países como os EUA, Japão e Alemanha que, pela própria história de lutas e conquistas no campo dos direitos sociais e políticos, que envolveram inclusive setores mais humildes da população, atingiram tal consciência política que os permitiu optar pela facultatividade. Nesses últimos, o debate político é mais freqüente, estimulado pelo grau superior de alfabetização e menores carências nos campos sociais da saúde e educação, por parte da população.
Um último ponto sobre essa questão é relevante: é ingênuo dizer que o desenvolvimento ou subdesenvolvimento de um Estado esteja relacionado com o seu sistema de sufrágio, uma vez que Estados considerados bastante desenvolvidos como Itália, Bélgica, Austrália e França ainda adotam o sistema obrigatório de sufrágio, enquanto países com alto grau de subdesenvolvimento e problemas sociais, tais como Argélia, Haiti e Cabo Verde já optaram pela facultatividade do mesmo.
Quanto à posição do senador de que somente o voto tratado como direito possibilitará a liberdade de escolha do cidadão e o aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito, esta é, sem dúvida, louvável; mas talvez somente viável quando a sociedade brasileira se encontrar de tal modo evoluída que o ato de votar possa ser calmamente analisado e refletido pelos cidadãos antes que estes optem por comparecer ou não às urnas no dia da eleição.
Afinal, se o voto facultativo for realmente instituído, aquela parte da população que realmente precise de mudanças pode não exercer sua cidadania (no dia da eleição) não por falta de vontade, mas sim por ter que dar maior atenção a muitos problemas que os afligem diariamente.
Assim, esses cidadãos carentes podem se preocupar ainda menos com o debate político ocorrido nas vésperas do pleito (causando, assim, uma “atrofiação”, que resultará numa posterior “paralisia” de suas consciências políticas), e o dia da eleição pode se tornar apenas “mais um dia comum”; quando esses cidadãos de poucos recursos irão fazer um período “extrajornada” de trabalho para conseguir um “bônus” no fim do mês para ajudá-los a suprir aquilo que o nosso Estado Democrático de Direito não cumpre em garanti-los.
O resultado de tudo isso será um vício com uma tendência agravante no decorrer dos anos, eleição após eleição:
As camadas superiores da sociedade, providas de maior disponibilidade de tempo e facilidade de acesso aos locais de votação, localizados em zonas nobres dos centros urbanos (e livres das inconvenientes filas de espera), e com seu claro interesse em manter o “status quo” (por não necessitarem de mudanças radicais na política do país), irão comparecer às urnas em massa; as camadas inferiores, carentes e sem recursos (seja de locomoção, tempo, dinheiro para o passe de ônibus, dificuldade de acesso, etc) e, portanto, aquelas que mais necessitam de mudanças radicais nas políticas sociais vigentes certamente irão deixar de atuar no único processo que pode gerar alguma esperança de mudança em suas condições de vida.
O reflexo imediato desse contexto será um distanciamento do debate político por parte dos socialmente desfavorecidos e um enraizamento cada vez maior da política desejada pelas classes economicamente dominantes.
Podemos, ainda, abordar alguns pontos sobre a questão do sufrágio em nosso país. Aqui, cabe-nos levantar um aspecto cultural que é imanente em nossa sociedade. Perguntamo-nos se a supressão do voto obrigatório não deturparia o elemento “vontade popular” do resultado eleitoral.
E respondemos: uma vez que nossa sociedade é culturalmente “comodista” (pesquisas mostram que 21,5% do eleitorado brasileiro não compareceria às urnas se não houvesse a obrigatoriedade), o sufrágio facultativo geraria uma situação em que muitos eleitores, que poderiam de fato influenciar na escolha de um bom representante, deixariam de comparecer às urnas para “aproveitar” o feriado eleitoral.
Isso feriria o princípio da vontade popular, uma vez que elementos alheios à questão política influenciariam no resultado que elegeria um representante, por cujas políticas a sociedade responderia como um todo.
Ademais, não podemos nos esquecer do papel da mídia no processo eleitoral. Sabemos que nossa sociedade, também por questões culturais, é fortemente influenciada pelas idéias propagadas pelos grandes meios de comunicação, especialmente a televisão.
A instituição da facultatividade do sufrágio não seria um indício de espontaneidade e nem de liberdade de escolha advindos da população. Resultados eleitorais como o da eleição de 1989, em que Fernando Collor de Mello surgiu com um partido pequeno e novo (PRN) e ainda assim conseguiu ser eleito, provam que a grande mídia, quando atua (de maneira tendenciosa ou não) em favor deste ou daquele candidato, consegue exercer uma influência quase que decisiva na opinião nacional.
Afinal, são os meios de comunicação que “controlam” a informação que chega para aquele que comparecerá às urnas. Sendo assim, retira-se a base sobre a qual o senador Sérgio Cabral se apóia para fundamentar que o voto tratado como direito (leia-se sufrágio facultativo) irá ampliar nossa liberdade, resultando num aperfeiçoamento da democracia, que é fundamento do nosso Estado.
Portanto, de nada adianta pensar que o sistema de sufrágio é relevante na cultura política da nossa sociedade: a mídia tem um papel maior, e pode incluir ou excluir partidos do conhecimento do eleitor com uma simples distribuição desigual do espaço cedido a estes partidos para que estes levem suas propostas à grande massa eleitora.
Por fim, fazendo um balanço de toda a discussão, podemos afirmar que não há um “denominador comum” que possa servir de base comparativa na opção por determinado sistema de sufrágio. A questão sobre se o sistema de sufrágio, enquanto meio de expressão da vontade popular, deve permanecer como está ou ser alterado, envolve aspectos que estão fora de controle político.
É uma questão cultural complexa, que sofre perda qualitativa quando passível de simplificação. Se tentarmos, no entanto, extrair uma essência dessa análise, abordando inclusive o modelo comparativo do nosso sistema de sufrágio com o de outros países (desenvolvidos ou não), talvez essa essência seja o elemento da educação. Somente uma sociedade conscientizada de seu papel na luta pela melhoria do todo; uma sociedade que se encontre num estado de maturidade da consciência política e que dê, portanto, prioridade ao bem comum (em detrimento dos impulsos e interesses individuais) pode contribuir para o aperfeiçoamento daquilo que é chamado democracia.
É a discussão desses problemas junto aos grupos sociais (família, escolas, universidades, e a sociedade organizada) que gera e aperfeiçoa a consciência política. Se diferentes países possuem diferentes histórias e culturas, um aspecto é inquestionável: Em países considerados mais “avançados” (seja política, tecnológica ou democraticamente), a educação é um elemento sempre presente, e a população tem maior interesse na condução daqueles negócios que dizem respeito a todos.
Na falta ou carência desse elemento, no entanto, notamos um presente desinteresse pelos problemas sociais por parte da sociedade, o que favorece a perduração de sistemas que atendem a poucos e aprofundam as desigualdades; a tentativa constante de se atribuir a um único elemento a responsabilidade pela globalidade dos problemas (aqui entra a questão do sufrágio) e uma constante negativa de se enxergar a complexidade dos mesmos, atuando em suas “bases”, para que sejam, de vez, resolvidos ou encaminhados para uma resolução.
O tipo de sufrágio a ser seguido não é, dessa forma, uma solução para todas as questões aqui levantadas; mas sim, e somente, um dos elementos a ser analisado e colocado em discussão para que a sociedade brasileira caminhe rumo à sua total independência política.
por: Rodrigo Eustáquio Ferreira rodef@ig.com.br
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