Aborda quais os parâmetros definidores do lapso temporal que compreende o evento vida, tendo este como eixo central de um sistema jurídico positivado baseado na idéia técnico jurídica.
I. INTRÓITO
Definir o que é vida não é tarefa fácil. Dizer quando começa parece banal, mas é uma questão espinhosa. Não foram poucos os filósofos que tentaram, por sua inquietude, equacionar o conceito de vida. Para entender a complexidade da tarefa, podemos citar como exemplo as mais de 18 tentativas de conceituação constantes no dicionário Aurélio, até mesmo porque, a definição varia de acordo com a convicção religiosa, científica, filosóficas, morais ou jurídico.
Em relação ao início e fim da vida, Hamlet – inesquecível personagem de Shakespeare- já questionava:
seremos uma obra de arte, a beleza do mundo, o paradigma dos animais, a quintessência do pó?
II. BOSQUEJO HISTÓRICO
Hipócrates filósofo grego acreditava que a vida começava no momento da concepção, por isso, defendia que, qualquer remédio que colocasse a vida do bebê em risco não poderia ser ministrado na mãe.
Platão, por exemplo, em seu livro República, acreditava que a alma juntava-se ao corpo apenas no momento do nascimento.
Já Aristóteles elaborou a “teoria da animação imediata” onde tenta explicar que a alma se juntará ao corpo, algumas semanas após a concepção, defendendo a tese que o feto tinha sim vida, arriscando que o inicio se daria com os primeiros movimentos do bebê no útero materno.
A teoria de Aristóteles foi difundida por São Tomás de Aquino e Santo Agostinho que acabou sendo recepcionada pelo catolicismo tendo seu ápice no papado de Sixto 5º que condenava a excomunhão á aquelas que praticassem o aborto. Referindo-se aos Concílios antigos, de Lerida e Constantinopla, o Papa Sixto 5º publicou a Bula Effraenatame que condenou qualquer tipo de aborto impondo severas penas a quem o praticasse, e estes só seriam absolvidas pela Santa Sé. Importante destacar que neste documento não se fez qualquer distinção entre feto com potencialidade de vida e o feto sem potencia de vida.
Entretanto, nessas idas e vindas, em relação ao aborto, a igreja católica teve sua opinião mudada pelo menos três vezes, quando em 1869, no papado de Pio 9º a igreja assumiu novamente a posição imposta pelo vaticano de condenação ao aborto, e que perdura até os tempos atuais.
III. AS PRINCIPAIS TEORIAS
1. Vida e Religião
Repise-se, que o catolicismo, considerada uma das grandes religiões do planeta, é entre as pouquíssimas que defendem a tese de que na fecundação é que se dá o início da vida, equiparando qualquer tipo de aborto ao homicídio. Nesse sentido, vejamos qual a posição de cada religião:
CATOLICISMO – A vida começa na concepção, quando o óvulo é fertilizado formando um ser humano pleno e não um ser humano em potencial. Por mais de uma vez o papa Bento 16 reafirmou a posição da igreja n contra o aborto e a manipulação de embriões. Segundo o papa o ato de negar o Don da vida, de suprimir ou de manipular a vida que nasce é contrario ao amor humano
JUDAÍSMO – “A vida começa apenas no 40º dia, quando acreditamos que o feto começa a adquirir forma humana”, diz o rabino Shamai, de São Paulo. “Antes disso, a interrupção da gravidez não é considerada homicídio.” Dessa forma o judaísmo permite a pesquisa com células-tronco e o aborto quando a gravidez envolve risco de vida para a mãe ou resulta de estupro.
ISLANISMO - O início da vida acontece quando a alma é soprada por Alá no feto, cerca de 120 dias após a fecundação. Os Muçulmanos condenam o aborto, mas muitos aceitam a prática principalmente quando há risco para a vida da mãe, e tendem a apoiar o estudo com células-tronco embrionárias
BUDISMO - A vida é um processo contínuo e ininterrupto. Não começa na união de óvulo e espermatozóide, mas está presente em tudo o que existe – nossos pai e avós, as plantas e os animais e até a água. No budismo os seres humanos são apenas uma forma de vida que dependem de várias outras. Entre as correntes budistas, não há consenso entre aborto e pesquisas com embriões.
HINDUÍSMO – Alma e matéria se encontram na fecundação e é aí que começa a vida. E como o embrião possui uma alma, deve ser tratado como humano. Na questão do aborto, os hindus escolhem a ação menos prejudicial a todos os envolvidos: a mãe, o pai, o feto e a sociedade. Assim em geral se opõem a interrupção da gravidez, menos em casos que colocam em risco a vida da mãe.
Bem se percebe, a busca pela resposta tem grande importância na seara jurídica, pois é através desta que se delimitará a atuação do estado em reposta à conduta humana, o qual deverá tipificar este ou aquele ato, e quando o ato é lícito ou ilícito.
2. Vida e Ciência
Inegável que a ciência deu e vem dando a sua parte de contribuição para a construção jurídica em torno do tema, e durante século XVII é que se constatou melhor entendimento a respeito do início da vida, e foi através do microscópio, invenção de Galileu Galilei – que passou a sua vida toda fugindo da igreja por causa dos seus estudos astronômicos- que a igreja fundamentou a tese de que a vida começa com a união do óvulo com o espermatozóide.
Com essa revolução promovida pela física a igreja enfraquece e promove-se neste período o estudo sobre a origem do homem, e, por René Descartes, surge então o proclamas: “Penso, Logo existo”. Que de forma revolucionaria a vida passou a ter uma ligação íntima com o raciocínio e a consciência.
Noutra esteira, em relação ao começo da vida, vejamos o que diz as correntes científicas:
VISÃO GENÉTICA – A vida começa na fertilização, quando o espermatozóide e óvulo se encontram e combinam seus gens para formar um individuo com um conjunto genético único. Assim é criado um novo indivíduo, um ser humano com direitos
VISÃO EMBRIOLÓGICA – A vida começa na 3º semana de gravidez, quando é estabelecida a individualidade humana. Isso porque até 12 dias após a fecundação o embrião ainda é capaz de se dividir e dar origem a duas ou mais pessoas. É essa idéia que justifica o uso da pílula do dia seguinte, e contraceptivos administrados nas duas primeiras semanas de gravidez.
VISÃO NEUROLÓGICA – O mesmo principio da morte vale para a vida. Ou seja, se a vida termina quando cessa a atividade elétrica no cérebro, ela começa quando o feto apresenta atividade cerebral igual á de uma pessoa O problema é que essa data não é consensual. Alguns cientistas dizem haver esses sinais cerebrais já na 1º semana e outros, na 20º semana.
VISÃO ECOLÓGICA – A capacidade de sobreviver fora do útero é que faz do feto um ser independente e determina o início da vida. Médicos consideram que um bebê prematuro só se mantém vivo se tiver pulmões prontos, o que acontece entre a 20º e 24º semana de gravidez. Este foi o critério adotado pela Suprema Corte dos EUA na decisão que autorizou o direito ao aborto.
VISÃO METABÓLICA – Os adeptos dessa corrente, afirmam que a discussão sobre o começo da vida humana é irrelevante, uma vez que não existe um momento único no qual a vida tem início. Para essa corrente espermatozóide e óvulo são tão vivos quanto qualquer pessoa. Além disso, o desenvolvimento de uma criança é um processo contínuo e não deve ter um marco inaugural iguais aos de qualquer outro.
IV. VIDA: REQUISITOS OBRIGATÓRIOS
A ciência com suas novas tecnologias de “manipulação genética” e “proveta” apresenta uma nova realidade indissociável de umas das questões mais profundas da filosofia que é a Gênese da vida, levando a cabo o entendimento pacífico que a fecundação apontada como momento do início da vida não se consubstancia num momento único, ou seja, o encontro do óvulo com o espermatozóide não é instantâneo e conclusivo.
Observa-se que num primeiro momento o espermatozóide após adentrar no óvulo deixa para fora a sua cauda o que somente estará totalmente dentro do óvulo algumas horas depois, ainda assim continuam como duas coisas independentes e distintas o que perdura por um período de 12 a 14 horas. Não obstante, para que haja o encontro dos cromossomos contidos no espermatozóide com os cromossomos contidos no óvulo são necessárias outras 24 horas, segundo afirma o biólogo americano Scott Gilbert no livro Biologia do Desenvolvimento.
Assim, durante o período até 14 ou 15 dias após a fertilização, ainda é possível que o embrião possa dar origem a dois ou mais embriões, e ainda assim, todo esse processo é estabelecido numa das trompas. Para tanto, é necessário que o embrião percorra o longo caminho até o útero buscando fixar-se nele, o que poderá acontecer na 3º semana de gravidez, sob pena de ser abortado espontaneamente e execrado pela menstruação. Por isso, não me parece robusto sustentar que a vida começa com a com a união do espermatozóide e o óvulo.
Um contraponto há que se pontuar. Se por um lado estabelecer o início da vida é adentrar um árido debate filosófico e moral, por outro lado não nos parece questionável o fim da vida, até porque, a Lei 9.434/1997 conhecida como Lei de Transplantes estabelece taxativamente o momento que a vida se encerra.
Países como Estados Unidos da America e evidentemente o Brasil, definem o fim da vida como ausência de ondas cerebrais. É a partir desse momento então, que se autoriza a retirada de órgãos para transplante. Nessa definição legal de morte cerebral por analogia, a vida há de ter reconhecido seu marco inicial com o aparecimento dos primeiros impulsos elétricos advindos da atividade cerebral, o que se dá na 8º semana de gravidez, donde o feto, já possui, mesmo que de forma primitiva, o sistema neural e o complexo sistema de órgãos do corpo humano.
Assim, após as primeiras conexões do sistema nervoso se estabelecer no córtex cerebral é que se considera que o feto é um ser humano, e para tal, dotado de “humanidade”.
Posto isso, fazendo referencia a Joseph Fletcher, teólogo cristão, pioneiro no campo da bioética no EUA, dispara João Batistiolle, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo:
Fletcher acreditava que para se falar em ser humano, é preciso se falar em critério de humanidade, como autoconsciência, comunicação, expressão da subjetividade e racionalidade.
Nossa Carta Magna, no seu artigo 5º define a inviolabilidade da vida humana, observa-se que se trata da vida humana e não de qualquer vida, assim, a definição de vida vai além das funções biológicas, incluindo a consciência, capacidade para raciocinar, escolher, decidir, ou seja, tudo aquilo que é inerente a pessoa humana para tornar-lhes vivo e único no universo, por outro lado, à aquilo que não tem consciência nem raciocina não poderia ser dotado de vida humana.
Por obvio, o embrião tem alguma vida, caso contrario não evoluiria, mas este em nenhum momento foi protegido pela constituição, pois quando a nossa carta magna fala de vida humana não atinge os embriões.
Outro aspecto ético que é fundamental, é o da relação entre os seres, entre um “eu” e um “tu”, e dentro dessa perspectiva é difícil visualizar o embrião como um “tu”, até porque, o embrião é apenas uma possibilidade de vida, com grandes possibilidades de não se tornar uma gravidez, assim como o homem vivo é um morto em potencial, mas ainda sem estar morto, o embrião é uma vida em potencial sem ainda ser considerado vida humana.
V. CONCLUSÃO
Por fim, como os avanços científicos criaram a morte encefálica, definida como o momento em que o cérebro para de funcionar, por dedução lógica, incontestável o entendimento de que a vida começa quando o cérebro forma as primeiras terminações nervosas promovendo os primeiros impulsos elétricos. Assim, bem delineada está o início da vida para o direito.
Repise-se, que o direito deverá estar sempre galgado em bases técnico-jurídicas e nunca em considerações morais ou religiosas. Deverá ser totalmente independente dos quesitos impostos pela ética religiosa dogmática, até mesmo porque os critérios deverão estar fundamentados na ciência e na ética secular da razão.
Em sede conclusiva, não há que olvidar que ao direito não cabe conceituar e estabelecer bases para os sentimentos. Indelegável é a sua obrigação de construir parâmetros conceituais para o evento vida e morte, logicamente bebendo nas fontes das ciências biomédicas.
O direito não declinou, adaptou-se aos novos parâmetros clínicos, rompendo todos os paradigmas e se adequando ao conceito de morte cerebral, estabelecendo novas bases e diretrizes que acabou por emergir as leis 9.434/97 (Lei de transplante) e 11.105/05 (lei de Biosegurança).
Antonio Vasconcelos Sampaio vasconceloss1@hotmail.com
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