"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sexta-feira, 1 de julho de 2011

O povo no poder



Graças à mobilização da sociedade civil na década de 1980, o Brasil se tornou um dos poucos países no mundo onde a população pode legislar diretamente


“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”  


-Parágrafo único do artigo 1o da Constituição de 1988

“A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: 



I – plebiscito; 
II – referendo; 
III – iniciativa popular.” – Artigo 14 da Constituição de 1988

A Constituição brasileira de 1988 é uma das poucas no mundo que garantem aos cidadãos a possibilidade de exercer o poder político por conta própria, criando leis em benefício da coletividade sem depender da ação de deputados e senadores. 



No entanto, quase 23 anos após a promulgação da carta constitucional, o país ainda está longe de praticar a democracia direta. 


O que prevaleceu até hoje foi a democracia representativa, na qual os eleitores se limitam a eleger seus representantes – presidente, governador, senadores, deputados federais e estaduais e vereadores –,delegando-lhes o enorme poder de legislar e governá-los, abrindo mão de participar ativamente dos grandes debates políticos do país.

Toda regra, porém, tem sua exceção. A aprovação, em 2010, da Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010), que proíbe a candidatura de políticos com problemas na Justiça, se tornou um dos raros exemplos de legislação nascida da iniciativa popular que vingou. 



O outro caso de sucesso é o da Lei 9.840, aprovada em 1999, que pune com a cassação do mandato os políticos acusados de compra de votos. 

As duas leis de iniciativa popular com caráter de depuração da política nacional têm produzido várias mudanças para melhor na vida institucional do país: nas eleições do ano passado, a Lei da Ficha Limpa impediu a candidatura de personagens de peso, como o ex-ministro Jáder Barbalho (PMDB-PA) e o ex-governador do Distrito Federal Joaquim Roriz (PSC-DF), entre muitos outros, acusados de malversação de recursos públicos. 



E, desde que foi aprovada, a Lei 9.840 já levou à cassação de mais de mil administradores públicos, entre os quais governadores e prefeitos. “As leis de iniciativa popular são um dos poucos momentos nos quais o Congresso, que se concede aumentos de salários e legisla em causa própria, é obrigado a ouvir a sociedade”, explica o cientista político Rubens Figueiredo. 

Existem ainda outras duas normas legais que tiveram origem na mobilização da sociedade – a lei que cria o Sistema Nacional de Habitação Popular (Lei 11.124/05) e uma legislação que pune mais severamente os crimes hediondos (Lei 8.930/94) –, mas os processos de aprovação dessas medidas não representaram casos genuínos de democracia direta. 



A primeira levou 17 anos para tramitar no Congresso, até a sua promulgação, totalmente desfigurada, em 2005. A segunda foi adotada pelo governo, que enviou uma proposta de legislação sobre o assunto ao Legislativo diante da comoção nacional gerada pelo assassinato da atriz Daniella Perez, filha da autora de telenovelas Glória Perez, em 1992.



Anos de luta

O pouco uso que a população faz hoje do direito de legislar em causa própria contrasta com a intensa mobilização política que marcou a luta pela aprovação da legislação que criava as leis de iniciativa popular em meados da década de 1980. 



Nos idos de 1983, quando se começava a discutir a nova Constituição, a sociedade teve de fazer uma enorme pressão sobre os parlamentares para conseguir a inclusão do dispositivo no ordenamento jurídico do país.


“Era um tempo de grande efervescência política nos estertores da ditadura. 



Havíamos tido os movimentos pelas eleições diretas para presidente pouco antes, e se via uma grande ânsia por mudanças no ânimo popular”, relembra Chico Whitaker, ativista político e um dos principais líderes do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), rede de 50 organizações não governamentais que criou a Lei 9.840 e a Ficha Limpa. 


A luta em prol da participação popular na Constituição foi lançada por dois grupos de ativistas, um em São Paulo e outro no Rio de Janeiro, que se mobilizaram, no início do governo do então presidente José Sarney (PMDB), para conseguir a eleição de uma Assembleia Nacional Constituinte com o objetivo de aprovar a Constituição em lugar do Congresso. 



Os movimentos eram formados por grande parte dos militantes que haviam lutado pelas Diretas-Já, em 1984, e pela aprovação da Lei da Anistia em 1979, e constituídos por intelectuais, gente ligada à Igreja Católica, sindicalistas e estudantes.

Em São Paulo, o grupo autobatizado de Plenário Pró-Participação Popular na Constituinte era integrado por Whitaker, pelo jurista Fábio Konder Comparato e pelo senador Eduardo Suplicy, entre outros. O grupo do Rio era liderado pelo então bispo de Duque de Caxias, Dom Mauro Morelli, e pelo sociólogo Hebert de Souza, o Betinho, irmão do cartunista Henfil e diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e-Econômicas (Ibase)



Logo, os dois núcleos se fundiram em uma frente única de luta pela participação popular na política do país. 

A ideia da Constituinte exclusiva para a nova carta acabou não vingando, mas o movimento conseguiu a aprovação de uma emenda ao regimento interno da Constituinte, assinada pelos então deputados Mário Covas, Plínio de Arruda Sampaio e Brandão Monteiro, que permitia a apresentação de emendas populares, desde que elas fossem subscritas por 30 mil eleitores. 



Na luta em prol da constituinte exclusiva, as ONGs haviam conseguido o apoio do deputado peemedebista Flávio Bierrenbach, indicado relator da proposta de Constituição, que acabou sendo derrotado na votação. 


Pouco antes, Sarney havia criado uma comissão de 50 notáveis para redigir um projeto de Constituição. Indicado como um dos integrantes, Comparato se negou, solenemente, a integrar a comissão, em protesto contra a proposta.


Os grupos organizados lançaram, então, a frase de efeito criada por publicitários paulistas: “Constituinte sem povo não cria nada de novo”, para indicar a necessidade imperiosa da participação popular na elaboração da Constituição. “Queríamos a Constituinte exclusiva, mas, já que havíamos sido derrotados, nos restou pressionar os deputados, para fazer com que eles deixassem a porta aberta para a efetiva participação popular”, afirma Whitaker. E foi isso que as entidades fizeram. Em pouco tempo, todo o país fervilhava com a criação de entidades locais voltadas para a redação de emendas.











A pressão sobre o Congresso começava a dar resultados. Henfil e outros cartunistas publicavam charges nos jornais e revistas mostrando a população organizada na Praça dos Três Poderes entregando emendas. 


Um desenho feito especialmente para a campanha pró-participação popular na Constituinte mostrava três pessoas empunhando uma caneta como se fosse um aríete para derrubar as portas do Congresso, simbolizando a luta pela participação da sociedade. “Cada entrega de emenda era uma grande festa, com milhares de pessoas no Congresso. 


A ideia era criar um clima de pressão sobre o Legislativo e demonstrar que a nação inteira vigiava os deputados para ver o que sairia da Constituição”, conta Whitaker.

Na data marcada para a entrega das emendas, para a surpresa dos parlamentares, foram apresentadas 122 propostas, com mais de 12 milhões de assinaturas. As emendas versavam sobre os temas mais variados possíveis. A que previa a participação popular chegou com 400 mil assinaturas.

A apresentação, no entanto, ainda não garantia nada. Em 5 de outubro de 1988, seria aprovada a nova carta, que foi chamada pelo presidente da Assembleia, Ulysses Guimarães, de “Constituição Cidadã”. A regulamentação da participação popular, no entanto, ainda demoraria dez anos para sair e só viria em 1998, com a aprovação da Lei 9.709, que foi relatada pelo então deputado Almino Affonso. 



O parlamentar, ex-ministro do governo João Goulart, ainda se lembra do dia em que o projeto foi referendado pelo Congresso. “Este foi, sem dúvida, o mais importante momento da minha vida parlamentar, nos quatro mandatos que exerci. O projeto foi aprovado de forma unânime, com aplausos de todos os parlamentares.”

A lei que regulamentou a iniciativa popular na política criou três instrumentos para a população participar diretamente dos debates legislativos do país: o plebiscito, no qual a sociedade é ouvida em consulta pública sobre determinado assunto que, se aprovado, vira lei; o referendo, no qual os cidadãos são chamados a se posicionar sobre uma lei já aprovada pelos parlamentares; e as leis de iniciativa popular. 



As duas primeiras medidas precisam ser autorizadas pelo Congresso. A terceira, não. Até hoje, o Brasil usou o referendo para discutir a questão da proibição ou não da venda de armas de fogo, em 2005 – com a vitória do não –, e o plebiscito para decidir qual deveria ser o regime político adotado, com a vitória da república presidencialista sobre a monarquia parlamentar, em 1993.

Vigilância permanente

A regulamentação, no entanto, estabeleceu algumas normas difíceis de ser cumpridas para a aprovação de uma lei de iniciativa popular, como a exigência da assinatura de 1% do eleitorado em cinco estados. 



Por isso, o processo de elaboração, tramitação e aprovação de uma norma do gênero exige grande mobilização do grupo interessado, para evitar que a iniciativa seja desvirtuada ou acabe esquecida em alguma gaveta obscura em Brasília.


A pressão sobre o Congresso começava a dar resultados. Henfil e outros cartunistas publicavam charges nos jornais e revistas mostrando a população organizada na Praça dos Três Poderes entregando emendas. 


Um desenho feito especialmente para a campanha pró-participação popular na Constituinte mostrava três pessoas empunhando uma caneta como se fosse um aríete para derrubar as portas do Congresso, simbolizando a luta pela participação da sociedade. 


“Cada entrega de emenda era uma grande festa, com milhares de pessoas no Congresso. A ideia era criar um clima de pressão sobre o Legislativo e demonstrar que a nação inteira vigiava os deputados para ver o que sairia da Constituição”, conta Whitaker.

Na data marcada para a entrega das emendas, para a surpresa dos parlamentares, foram apresentadas 122 propostas, com mais de 12 milhões de assinaturas. As emendas versavam sobre os temas mais variados possíveis. A que previa a participação popular chegou com 400 mil assinaturas.

A apresentação, no entanto, ainda não garantia nada. Em 5 de outubro de 1988, seria aprovada a nova carta, que foi chamada pelo presidente da Assembleia, Ulysses Guimarães, de “Constituição Cidadã”. A regulamentação da participação popular, no entanto, ainda demoraria dez anos para sair e só viria em 1998, com a aprovação da Lei 9.709, que foi relatada pelo então deputado Almino Affonso. 



O parlamentar, ex-ministro do governo João Goulart, ainda se lembra do dia em que o projeto foi referendado pelo Congresso. “Este foi, sem dúvida, o mais importante momento da minha vida parlamentar, nos quatro mandatos que exerci. 


O projeto foi aprovado de forma unânime, com aplausos de todos os parlamentares.”

A lei que regulamentou a iniciativa popular na política criou três instrumentos para a população participar diretamente dos debates legislativos do país: o plebiscito, no qual a sociedade é ouvida em consulta pública sobre determinado assunto que, se aprovado, vira lei; o referendo, no qual os cidadãos são chamados a se posicionar sobre uma lei já aprovada pelos parlamentares; e as leis de iniciativa popular. 



As duas primeiras medidas precisam ser autorizadas pelo Congresso. A terceira, não. Até hoje, o Brasil usou o referendo para discutir a questão da proibição ou não da venda de armas de fogo, em 2005 – com a vitória do não –, e o plebiscito para decidir qual deveria ser o regime político adotado, com a vitória da república presidencialista sobre a monarquia parlamentar, em 1993.

Vigilância permanente
A regulamentação, no entanto, estabeleceu algumas normas difíceis de ser cumpridas para a aprovação de uma lei de iniciativa popular, como a exigência da assinatura de 1% do eleitorado em cinco estados. 



Por isso, o processo de elaboração, tramitação e aprovação de uma norma do gênero exige grande mobilização do grupo interessado, para evitar que a iniciativa seja desvirtuada ou acabe esquecida em alguma gaveta obscura em Brasília.


O que são leis de iniciativa popular

Definidas no artigo 14 da Constituição e explicadas em detalhes no 61, as leis de iniciativa popular são propostas de legislação feitas pela população organizada ou por entidades de classe que, se estiverem dentro dos parâmetros da legislação, devem ser acatadas pelo Congresso. 



Para propor uma lei de iniciativa popular, os interessados devem coletar assinaturas de 1% do total do eleitorado brasileiro (hoje por volta de 1,6 milhão) residente em pelo menos cinco estados, com porcentuais de 0,3% dos eleitores de cada região. Além das assinaturas, os abaixo-assinados devem ter o número do título de eleitor da pessoa que os firmou.

Depois de apresentadas as primeiras leis desse tipo, o Congresso se deu conta de que não tem condições de verificar as assinaturas dos abaixo-assinados. Assim, algumas das primeiras leis foram “adotadas” por parlamentares, como forma de garantir sua tramitação, de iniciativa parlamentar. 



Em 2001, a Câmara criou a Comissão de Legislação Participativa (CLP), órgão do próprio Legislativo que permite que eleitores e entidades apresentem propostas de projetos de lei que, se aprovados pela maioria dos seus 18 membros, são levados adiante pela Câmara. 

Em 1999, a deputada federal Luíza Erundina, apresentou a PEC 2/99, que facilita o exercício da iniciativa popular ao autorizar que as propostas possam ser apresentadas por meio de texto subscrito por 0,5% do eleitorado nacional, por confederação sindical, entidade de classe ou associação. Assim, a assinatura dos trabalhadores em uma assembleia, por exemplo, valeria como prova de apoio a uma proposta de iniciativa popular. 



“O nível de exigência para apresentar proposta atualmente é muito grande, o que desestimula a participação”, afirma a parlamentar. Na opinião da socialista, a Câmara é resistente ao exercício direto da democracia. “Muitos deputados encaram a democracia direta como uma ameaça”, acrescenta. Apesar de apresentada há mais de 11 anos, até hoje a PEC não foi discutida porque os partidos não indicaram seus representantes.

Como é em outros países

As leis de iniciativa popular já integram a rotina institucional de países como Suíça, França e Estados Unidos. Na Suíça, dois cantões (o equivalente a estados no Brasil) praticam o que se convencionou chamar de democracia semidireta, em que a população discute nas praças os seus problemas. 



Na Alemanha, a participação popular também é uma realidade.



Na América Latina, além do Brasil, vários outros países como Colômbia, Argentina, Bolívia, Costa Rica, Equador, Nicarágua, Peru, Uruguai e Venezuela têm em suas constituições mecanismos de democracia direta, como plebiscitos, referendos e leis de iniciativa popular.


Moacir Assunção é jornalista, pós-graduado em ciências sociais e especializado em história militar. É autor de Os homens que mataram o facínora, a história dos inimigos de Lampião, Record.

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