"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

domingo, 16 de junho de 2013

Estado laico, simbolismo e evocação religiosa


Estado laico: este é um problema que está em pauta na mídia nos últimos tempos. Mas qual é o conteúdo jurídico desse valor? Quais são os limites da laicidade de um Estado? São estas questões debatidas neste artigo

O Estado pós-moderno, cujo embrião surge nas revoluções do século XVIII, tem como característica, talvez principal, a laicidade. E o que vem a ser essa laicidade? Só podemos compreender esse conceito se olharmos para o Estado pré-moderno. E é característica desse último Estado, como também é dos reinos medievais, uma associação umbilical entre o poder político e o poder religioso. O Estado absolutista se funda nas raízes cristãs da Europa, e toma como pressuposto de legitimidade a verdade da fé.

E prosseguindo no percurso de compreensão, temos que analisar esse laço entre a religião e o Estado.

Na Idade Média, a religião era principal esfera da vida humana. O cristianismo comandava a formação da mentalidade e do imaginário, e pela Igreja passa a formação da civilização europeia. Por esta razão, o conceito de cristandade se mostra bastante adequada. A Europa era, a despeito das singularidades de cada povo, um Reino cristão.

E como a religião cristã era o motor da civilização medieval, ela atinge também a política. Essa relação entre cristianismo e política é, aliás, um dos pontos centrais do discurso filosófico da Idade Média. O confronto entre os poderes espiritual e temporal é marcante dos escritos de filósofos como Egídio Romano, Guilherme de Ockham, Marsílio de Pádua e outros. A questão essencial deste embate eram os limites da atuação política de Igreja.

A universalidade do discurso cristã atravessa o período medieval e chega até a modernidade. Mesmo rompendo com o a estrutura social medieval, o Estado moderno não consegue se afastar ainda dos mandamentos cristão. O Estado absolutista absorve essa ideia de totalidade cristã. Tanto que neste período, a legislação continua amparada na moralidade do cristianismo e ordem política mantém os privilégios da Igreja.

A definitiva disjunção só ocorre no século XIX, onde o constitucionalismo consagra ao ideal liberal de Estado de Direito. Esse novo espírito europeu só chega ao Brasil no século XX, porque até esse período, o país era um império, que tinha modelo de Estado parecido como o Reino de Portugal da Idade Média.

Assim a primeira constituição da Réplica já ensaia esse preceito da laicidade.

Na Constituição de 1891 estava assim escrito:

Art 11 - É vedado aos Estados, como à União:

2 º ) estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos;

E, portanto, o governo brasileiro não pode subvencionar cultos religiosos, sejam eles de qualquer espécie. A impossibilidade do custeio da religião pelo Estado é indicativa dessa separação entre crença e governo, que nos leva diretamente para a existência de um estado laico.

Instruções normativas semelhantes foram reproduzidas nas Constituições subsequentes (1934,1946,1967). Até mesmo na Constituição de 1988 o texto contém poucas alterações. Diz o artigo 19:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público

Vê-se ainda que não há no texto constitucional norma explícita dizendo que o Brasil é um estado laico. Esse princípio decorre da exegese do artigo 19 cominado com o espírito liberal da Constituição.

Quanto à laicidade do estado brasileiro, gostaria de comentar a, talvez, mais famosa expressão sobre esse tema. Esta diz: “O Brasil é um Estado laico, mas não ateu”.

Esse é um argumento recorrente, e de tão popular não sabemos precisar qual a origem dessa premissa. O famoso jurista Ives Gandra tece assim seus comentários a respeito deste tema:

Tem-se confundo Estado laico com Estado ateu. Estado laico é aquele em que as instituições religiosas estão separadas, mas não é um Estado em que só que não tem religião tem o direito de se manifestar. Não é um Estado em que qualquer manifestação religiosa deva ser combatida, para não ferir suscetibilidades de que não acredita em Deus.

A primeira coisa que gostaria de comentar é essa expressão: “Estado ateu”. Eu realmente não consigo captar a essência dessa frase. Como um estado pode ser ou deixar de ser ateu? O Estado não tem crença. Um Estado não pode crer porque só o homem pode crer. Crer é uma atividade essencialmente humana. Este ato não pode ser pratica por um Estado.

Note que dizer que o Estado é ateu não é o mesmo que dizer que a sociedade é ateia. A sociedade como reunião de homens, pode ser ateia, porque quando se diz uma frase como esta (a sociedade é ateia) está se querendo dizer que a maioria das pessoas que compõe aquele Estado não crê em Deus. Logo, a expressão “Estado ateu” carece de sentido.

Mas o que foi posto pelo renomado jurista carece mais atenção. Ele não contrapõe o Estado laico com um Estado ateu, ele contrapõe um Estado laico com um Estado anti-religioso. Este último termo empregado não sentido que não contém uma religião, mas de um Estado que não tolera a manifestação religiosa das pessoas. A existência de um Estado que combate, através de mecanismos jurídicos e institucionais, qualquer forma de manifestação religiosa. E este não é o caso do Estado brasileiro, nem deveria ser.

Mas as imbricações do problema do Estado laico vão além dessa oposição. Gostaria, portanto de relatar dois casos, conhecidos do público, que em a questão da laicidade do Estado era o ponto central.

O primeiro desses casos aconteceu em 2012 no Estado do Rio Grande do Sul. O Conselho de Magistratura desse estado resolveu atender pedido de uma ONG e decidiu retirar de todo os fóruns das comarcas gaúchas os crucifixos que há tempos ornavam as paredes das salas de Justiça. O desembargador Cláudio Baldino Maciel que levou o caso ao conselho argumenta que “o estado não pode ter suas dependências tomadas por símbolos religiosos”, pois isso feriria sua laicidade.

O segundo caso, ainda mais recente, aconteceu na justiça federal paulista. Lá o Procurador de Justiça Jefferson Dias argumenta na petição inicial que:

A manutenção da expressão “Deus seja louvado” na cédula monetária brasileira  não  se  coaduna  com  mencionada  condição  de  coexistência  entre  convicções religiosas, característica da laicidade estatal, uma vez que configura uma predileção pelas religiões  adoradoras  de Deus como  divindade  suprema,  fato que, sem dúvida, impede  a coexistência em condições igualitárias de todas as religiões cultuadas em solo brasileiro.

Esse processo foi direcionado a sétima vara de justiça, na qual a juiz titular indeferiu o pedido dizendo: "não parece ser um direcionamento estatal na vido do indivíduo que o abrigue a adotar determinada crença”.

Os dois casos são distintos, mas em ambos a questão controversa é a ligação (ou aproximação) entre a religião cristã e o Estado.

No primeiro caso a questão controvertida é o uso de um símbolo. Mas o que é um símbolo. Na sua etimologia grega, símbolo significa “jogar junto”, isto é, criar uma associação entre o referente e o que está sendo referenciado. Na importância do símbolo para a linguagem pode ser entendida a partir dos ensinamentos do filósofo francês, Paul Ricoeur(1960). Segundo ele, o símbolo é aquilo que dá a pensar, é aquilo que provoca um entendimento, uma associação.

É certo que o símbolo tem esse poder de criar um laço, um elo. É verdade ainda que os símbolos possuem longa vida na cultura, pois são os símbolos elementos central da formação de uma cultura, de um imaginário social (Hilário Franco Jr, 2001). Mas essa capacidade não é eterna. Um símbolo também pode morrer, pode ter significação vazia, da mesma maneira que uma metáfora. Como lembra Ricoeur (2000) há metáforas vivas e mortas. As últimas são aqueles que perderam o caráter de evocação. Como exemplo de metáfora morta temos, por exemplo: pé da mesa, pé da cadeira.

Mas ainda que haja que se considerar outro fator. Acreditamos que seja possível a existência de símbolos mortos. Aqui morrer não significa perder o caráter simbólico, mas mudar o conteúdo da simbolização. Mas quais símbolos podem perder a vida? É necessário aqui enfrentar o problema do simbolismo religioso.

Segundo Mircea Eliade (1991) a manifestação do sagrado se liga a ideia do símbolo, de tal forma que o símbolo é o instrumento próprio da realização deste sagrado. Segundo o mitologista, símbolo é religião são contrafacetas interdependentes.

Sendo assim, a manifestação religiosa é também uma manifestação simbólica. Mas se assim o é, o fim do símbolo religioso acontece somente o fim da religião? Respondemos essa pergunta de forma negativa, pois o símbolo é o instrumento necessário da religião. Mas o símbolo enquanto elemento, não enquanto conteúdo. Então é possível que uma religião adquira novos símbolos com o passar do tempo, e alguns deles percam seu valor.

Quando isso acontece o símbolo sai da esfera do sagrado e vai ao mundo profano. O símbolo é profanado. Temos muitos exemplos disso, como o uso da balança da deusa grega Themis como símbolo do Direito. Da estrela de Davi como símbolo do povo judeu e não do judaísmo e assim por diante.

Portanto, os símbolos podem ser profanados, podem ganhar nova significação com o passar do tempo, com efeito do uso. Acreditamos que o mesmo acontece com a cruz cristã, que hoje não evoca o catolicismo, mas a sociedade cristã. A cruz parece ser hoje, dependendo do uso, muito mais um símbolo da civilidade cristã, do que da religião. Claro que o uso da cruz como símbolo religioso católico também é possível, mas em somente em locais de cultos, como as igrejas. O símbolo só funciona com o contexto. Se retirarmos um símbolo de seu contexto ele é resignificado. Este é o caso da cruz nos tribunais.

No segundo caso a questão controvertida é uma mensagem: “Deus seja louvado” Mas o que isso quer dizer? Qual seu significado?

A juíza ao julgar o caso seguiu por um caminho: a vinculação entre a mensagem e a prática. Diz ele que se a mensagem não provocar diretamente a prática, não se pode conferir a ele uma amplitude religiosa.

O raciocínio da juíza nos convoca a pensar uma ideia, que foi muito cara aos filósofos medievais, mas que hoje não está colocado. Qual a força de uma mensagem religiosa? No Simbolismo cristão, contaminado de judaísmo, se encontra a premissa mais básica do primeiro livro de Gênesis: “o Verbo que se fez carne”.

Esse Verbo como Vox Dei, foi o princípio da formação do mundo. A voz de Deus instaura o mundo. Mas a partir da Queda, o sentido da comunicação se inverteu. Deus não fala diretamente com o Homem. Quando fala é por subterfúgios (um animal, um sonho, um sinal, etc). A partir de então o homem fala com Deus a partir da oração.

A Oratio que ao mesmo tempo é privada(quando se ora, fala sozinho com Deus) e pública (o culto) é a nova comunicação entre Deus e Homem. Mas esse diálogo não se faz pelo nada, se faz por meio da Palavra, que é a Bíblia. A Bíblia é a palavra de Deus, a base da comunicação com o Sagrado. Mas qual o valor da palavra? Esse valor da palavra que insere o problema: o que é uma devoção religiosa.

A devoção não deixa de ser a sagração da palavra e por isso, a palavra religiosa tem tanto valor. Mas a palavra por ter por si própria um valor? Nós, modernos, acreditamos que não. Aprendemos que o contexto da mensagem que permite a sua significação. É isso que pensa a juíza ao dizer que a mensagem ‘Deus seja louvado’ posta nas notas de dinheiro não tem valor religioso. Pensa ela que por a mensagem estar desvinculada do seu contexto sagrado, essa mensagem não tem o apelo devocional.

E com a vênia feita aos que pensa ao contrário, creio que ela tem razão. Em temos da liquidez do mundo (Zigmund Bauman) todo referente depende de um contexto. Não é possível mais achar um signo universalmente significante. O mundo relativizado também tem seus signos relativizados. Uma Invocação a Deus não tem mais conotação religiosa, sem não estiver inserido em um contexto próprio. Esse é o destino da pós-modernidade. Nem o universalismo cristão resistiu às marteladas dos novos tempos.

Concluindo, hoje, a ligação que se dá entre a religião e o Estado não acontece mais a partir da um contexto geral. Não há a Religião interferindo no Estado e vice-versa. Essas instituições gerais estão (ou já estão) desmoronando. Resta-se os conflitos em microescala, os conflitos derivados, como são os dois casos recentemente ocorridos, que dizem respeito à amplitude do simbolismo e da mensagem cristão.

Um Estado laico é aquele que se coloca em rota de colisão com todas as religiões? Não o é. Como também não é aquele que pretende minar qualquer simbolismo, aquele que procura significados onde só resta o pó.

Pedro Henrique Correa Guimaraes

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