Em entrevista ao Estadão, José Murilo de Carvalho observa que os oito anos de Lula ficarão marcados em nossa História pelo avanço na inclusão social, o que chama de democracia; mas não se destacará, continua, pelo que chama de República.
Como sou cidadão deste país e, por isso, devo respeito e acatamento aos julgamentos do Poder Judiciário, nada posso concluir senão que a res publica foi violada.
E de tal sorte que o dano não é compensado pelo avanço.
De mais a mais, sentido crítico bem atilado, esse avanço haveria de vir, em qualquer circunstância, como exigência do processo de legitimação do modo de produção social dominante. Podem dizer que os termos desta conclusão denunciam uma maneira antiga de raciocinar. Não importa que seja velha, se ainda explica o permanente discreto fascínio de quem domina e os interesses que continuam a prevalecer mesmo quando a inclusão social se amplia.
Mais importante é afirmarmos o quanto devemos de respeito e acatamento, enquanto cidadãos, ao Poder Judiciário, em especial, hoje e sempre, ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em especial porque o STF, de modo diverso do que andaram a dizer por aí, não surpreendeu por ser independente. Simplesmente foi o que haveria de ser.
Num tempo, como o nosso, em que o Estado ainda é outra face da sociedade civil, o STF nada mais permanece a ser senão uma porção dela. O Estado é uma totalidade indivisível. Não pode ser fissurado em facções, grupos ou poderes. Assim se prestará ao seu fim, que instrumenta ordem, segurança e paz, para o bem do mercado. A separação dos Poderes, enunciada como “lei eterna”, oculta o fato de que o Estado, para ser Estado, é e há de ser uma totalidade.
A organização estatal em funções viabiliza, aprimorando-o, seu funcionamento. Aqui e ali há interpenetração delas, mas o Legislativo produz as leis, o Executivo as aplica e o Judiciário nos julga (e a eles também). Todos deveriam vestir um manto de autoridade. Chamo-o assim, manto de autoridade, não porque detenham poderes. Autoridade é algo diferente do poder. É o saber-se o que se deve fazer, serenamente. Os romanos chamavam-na de auctoritas. Por isso – porque os magistrados, para o serem, são os que mais dela necessitam – os cidadãos a eles devem acatamento e respeito. A eles e a seus julgamentos.
Magistrados são para ser respeitados. Lembro episódios notáveis, do tempo em que a discrição era indissociável da pessoa do juiz e as transmissões das sessões de julgamento pela televisão não os havia banalizado. Um processo que viera às manchetes dos jornais, em São Paulo, subira ao Tribunal de Justiça, distribuído a um desembargador. Conta-me seu filho, hoje septuagenário, como eu, que uma sua irmã indagou à mesa do almoço de domingo: “Papai, o que você acha?”. O bom juiz respondeu: “Não sei, minha filha, ainda não li os autos”. Era assim. Nenhum membro de tribunal insistia no óbvio, justificando-se, pretendendo dar satisfações “ao público”, como se ouviu, pela TV Justiça um dia destes.
Juízes de tribunais superiores são indicados pelo Executivo e o Legislativo participa de sua escolha. O juiz prudente, independente, tem para si ter sido indicado para o cargo que ocupe não pelo Sarney, pelo Itamar, pelo FHC ou pelo Lula, com inusitável intimidade, porém, singelamente, pelo presidente da República. Ao tribunal deve chegar sem que a ele tenha sido candidato, sem que faça alarde da própria pureza. Quem a oferece, essa pureza que a palavra enuncia, já a perdeu. Notório saber e reputação ilibada, no caso do Supremo e onde sejam recomendáveis, são para ser conservados durante o exercício do cargo. De reputação ilibada é aquele que, ao caminhar pela rua, merece o olhar respeitoso dos que passam. Apenas. Juízes e ministros de tribunais não são para ser elogiados. Não fazem mais do que a obrigação quando aplicam o direito positivo e a Constituição.
Os juízes não estão lá, nos seus cargos, para produzir equidade. Nem para fazer justiça com as próprias mãos. São servos da Constituição e das leis, servos de um sistema de normas jurídicas que se presta a assegurar um mínimo de calculabilidade e previsibilidade na prática das relações sociais. Precisamente nesse sentido a História avançou, limitando o poder da monarquia patrimonial, para afirmar a instituição do poder legislativo dos Parlamentos. Eis aí uma das tarefas primordiais do Estado moderno: a produção de uma ordem jurídica que garanta certeza e segurança jurídicas. Sem elas não haverá como vivermos em liberdade.
Por isso causa espanto – mais do que espanto, causa temores, apreensão – qualquer reação de desacato, e seja lá de quem for, ao quanto já decidiu, e venha a decidir, o STF no julgamento do chamado “mensalão”. E assim seria em qualquer caso, ainda que a res publica não tivesse sido conspurcada, violada.
Nos tempos de menino, quando brincávamos de mocinho e bandido, era razoável que vez e outra mudássemos de torcida. Hoje, não. Se pretendermos viver honestamente, sem agredir os outros, contribuindo para o bem de todos, será indispensável acatarmos, com dignidade, as decisões, quando irrecorríveis, do Poder Judiciário. Não por que façam justiça. Pois é certo que, como dizia Kelsen, a justiça absoluta só pode emanar de uma autoridade transcendente, só pode emanar de Deus; temos de nos contentar, na Terra, com alguma justiça simplesmente relativa, que deve ser vislumbrada em cada ordem jurídica positiva e na situação de paz e segurança por esta mais ou menos assegurada.
Qualquer insurgência contra esta face do Estado que o STF é afronta à ordem e à paz social, prenuncia vocação de autoritarismo, questiona a democracia, desmente-a, pretende golpeá-la. Por isso é necessário afirmarmos, em alto e bom som, o quanto de respeito e acatamento devemos ao Poder Judiciário e em especial, hoje e sempre, ao Supremo Tribunal Federal. Sobretudo porque – repito-o – de modo diverso do que andaram a dizer por aí, o STF não surpreendeu por sua independência. Simplesmente foi o que e como haveria de ser.
EROS ROBERTO GRAU é professor titular aposentado da USP. Foi ministro do STF.
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