É absolutamente normal aos seres humanos, pelos mais variados fatos e circunstâncias da vida, elegerem alguns bens ou valores aos quais passam a devotar a defesa mais intransigente e absoluta, não raramente, com sacrifício da razão e, nos casos mais graves, até mesmo da própria vida.
O radicalismo político, ou religioso, que não tem pudor de eliminar a vida de pessoas inocentes, é só o sintoma mais destacado deste fenômeno. Entretanto, compondo a mesma ordem de problemas, no caso do Direito, não é incomum que os juristas passem a buscar na Constituição uma hierarquia de valores que possa justificar uma preferência absoluta — não condicionada — em favor de algum bem ou direito que, ao julgamento de cada interessado, devem prevalecer (sempre) sobre outros direitos também estabelecidos constitucionalmente.
Por exemplo, não é incomum que o indivíduo que é contrário ao aborto busque na Constituição uma hierarquia em favor do direito à vida no que tange à liberdade e à privacidade da mulher, de ordem a justificar a sua preferência por uma direito fundamental (o direito à vida) em detrimento de outros direitos também fundamentais (a liberdade e a privacidade da mulher). Por sua vez, aqueles que são favoráveis ao aborto buscaram na Constituição uma preferência absoluta dos direitos fundamentais da mulher em relação à vida do nascituro.
Em outro exemplo, os que não creem ou rejeitam a religião estarão inclinados a submeter a liberdade religiosa à hierarquia de outros valores constitucionais. Pelo contrário, os adeptos mais firmes de alguma religião estarão, por óbvio, inclinados a ver prevalecer a liberdade religiosa diante de outras garantias constitucionais.
Como se vê, pode-se citar um sem-número de exemplos nos quais, a depender de nossas preferências morais, políticas, ou ideológicas, estamos (pre)dispostos a ver num direito fundamental, ou numa liberdade constitucional, maior ou menor valor do que noutros bens e direitos também protegidos constitucionalmente.
Vejamos um exemplo.
Tivemos a notícia de decisão proferida por um tribunal da região de Colônia, na Alemanha, que, de forma inteiramente criticável, fez submeter em termos absolutos a liberdade religiosa à incolumidade física, ambos os bens protegidos na Constituição daquele país. De fato, “por considerar que a circuncisão realizada por motivos religiosos é equivalente à lesão corporal, mesmo com o consentimento dos pais, (...) decidiu que o ato deve ser proibido”.
O argumento do tribunal foi o de que o direito à integridade física da criança supera de forma incondicional a liberdade de religião de seus pais e de sua família. De acordo ainda com a notícia, “o sangramento nestes tipos de operações é normal e, no caso, foi rapidamente controlado. No entanto, os promotores locais entraram com ação contra o médico. O juiz da primeira instância garantiu aos pais o direito de decidir.
Depois que a promotoria apelou, um tribunal superior garantiu o direito da criança de ser protegida contra danos corporais. Mesmo assim, o médico acabou absolvido e os promotores disseram que não vão recorrer novamente.” O único efeito positivo da decisão parece ter sido o de promover, naquele país, a união da comunidade judaica e da comunidade muçulmana, que se colocaram, segundo os jornais, em pé de guerra contra o referido tribunal.
Muito bem! Como pretendo demonstrar, as constituições democráticas tendem a não consentir com qualquer ordem ou hierarquia de valores entre os bens que veiculam e protegem como direitos fundamentais.
De outro lado, no âmbito pragmático de um Direito Constitucional que queira realizar-se como governo de normas preestabelecidas e racionalmente aplicadas, consentir com a produção de uma hierarquia entre normas constitucionais por quem tenha apenas o poder de aplicá-las acaba por subverter completamente as formas básicas de diferenciação, que são essenciais ao processo de (auto)reconhecimento do Direito, especialmente no caso do Direito Constitucional.
Caso alguém pudesse, rompendo com os pressupostos e limites impostos pelo próprio Direito, impor de fora uma inexistente hierarquia entre bens e valores constitucionais, tornar-se-ia impossível, por assim dizer, saber o que é próprio do Direito Constitucional e o que lhe foi imposto de fora. Em linguagem luhmanniana, dir-se-ia que o Direito Constitucional, sem o respeito a essas formas de diferenciação, perde sua autorreferência.
Uma vez que as Constituições não costumam estabelecer — certamente, não o faz a Constituição brasileira — diferenciação hierárquica entre as suas normas, sobretudo, entre as normas que veiculam direitos fundamentais, a busca de critérios supostamente implícitos no próprio texto, alegadamente sacados do próprio sistema de normas constitucionais, com os quais se pudesse legitimar a referida diferenciação hierárquica, permitirá desde sempre àquele que se confere o poder de revelar o-que-não-estava-revelado a possibilidade de introduzir no sistema constitucional critérios de diferenciação seus e, portanto, externos, como se fossem do próprio sistema, o que é, obviamente, inadmissível. No âmbito racional de aplicação de normas jurídicas, restaria esmaecida a diferenciação entre premissas de decisão e as decisões mesmas. Mas não é só isso e nem é isso o principal.
A aceitação de uma hierarquia de valores obscurece ainda a distinção juridicamente essencial entre criação e aplicação de normas jurídicas — no caso, constitucionais — e corrompe qualquer relevância que, histórica e politicamente, se vem retirando da distinção entre poder constituinte e poderes constituídos.
De fato, a tentativa de estabelecer uma hierarquia entre normas constitucionais, sobretudo das normas que tiveram origem no próprio poder constituinte originário, as quais não foram ali hierarquizadas, pressupõe três elementos inadmissíveis a uma ordem constitucional democrática que se predisponha a realizar-se racionalmente, isto é, uma hierarquização de normas constitucionais supõe,
(1) a existência de alguém, indivíduo ou instituição, com poderes para estabelecer uma ordem entre normas constitucionais mais e menos importantes;
(2) pressupõe também um conjunto de normas constitucionais que passarão a ter uma diferenciação funcional e normativa e, por assim dizer, uma fundamentalidade destacada, isto é, superior, independentemente e em detrimento do conjunto das demais normas, as quais, com a ordenação hierárquica, passarão a ser consideradas subalternas e serão alocadas num segundo nível, ou em quantos níveis se estabeleçam na referida ordem hierárquica;
(3) por fim,qualquer ordem hierarquizada pressupõe critério ou critérios, que só poderão estar fora do próprio texto, pois destinado(s), precisamente, a valorar as normas constitucionais e a submetê-las a uma relação de subordinação que se desenvolve num processo em que essas normas deixam de ser premissas máximas da ordem constitucional e passam elas mesmas a serem objeto de decisão e ordenação por intermédio de outras premissas de enquadramento diferenciador — novamente, o problema de número dois.
Valendo-se também de uma inspiração luhmanniana, poder-se-ia dizer que, admitindo-se tal critério, ou critérios de ordenação hierárquica, as normas constitucionais deixariam automaticamente de ser premissas de decisão, uma vez que premissa, em termos lógicos, só o é aquilo que já não se põe à avaliação ou julgamento por outro critério ou norma.
Pode-se conclusivamente apresentar, portanto, pelo menos três objeções à concepção de uma Constituição como ordem hierarquizada de valores.
Em primeiro lugar, é inadmissível a uma ordem constitucional de perfil democrático, que se quer realizar como governo racional de normas predispostas, e não como uma consolidação arbitrária de desígnios da vontade de poderosos, consentir com a presença de alguém — pessoa ou instituição — que tenha poderes para coercitivamente estabelecer tal ordem hierárquica, com o que se aceitaria a presença de um indivíduo ou instituição que se sobreporia à própria Constituição, pois, do ponto de vista lógico, aquele que pudesse dizer, de forma absoluta e abstrata, o que, dentro da Constituição, tem mais ou menos valor normativo estaria sendo posto ou se pondo acima da própria Constituição.
Em segundo lugar, em homenagem ao princípio da unidade da Constituição, diante de normas que a própria Constituição ergueu em unidade e em uma conexão global, impondo ao intérprete que as observe em conjunto, e não isoladamente, seria também inadmissível o estabelecimento, dentro do próprio texto constitucional, daquilo que poderia ser, isoladamente e em absoluto, considerado mais digno de observância e proteção.
Por fim, já agora com o auxílio de Robert Alexy, ainda que a comunidade nacional, em legítimo exercício do poder constituinte, entendesse de estabelecer uma Constituição como ordem de valores hierarquizada, um obstáculo de natureza invencível se apresentaria a qualquer sociedade contemporânea que tem que lidar com problemas do presente e do futuro com normas de regulação produzidas no passado. É que não se vislumbra, com a fixação de uma ordem hierárquica em termos abstratos e absolutos, como pressupõe a ideia de uma ordem hierárquica de valores, a possibilidade de eleição de qualquer critério (ordinal, ou cardinal) — em tais condições, verdadeiramente mágico — apto a, sobrepondo-se a todas as normas da própria Constituição, e por isso posto e imposto de fora do texto constitucional, estabelecer uma ordem abstrata e absoluta entre as normas constitucionais.
Como adverte Alexy, é verdadeiramente incompatível com uma Constituição democrática uma ordem hierárquica, abstrata e previamente disposta, que tivesse o condão de conferir solução adequada e específica para todos os multiformes e graves problemas que possam ter lugar, como de fato têm, na vida de qualquer sociedade tão complexa quanto às contemporâneas.
De fato, ainda conforme R. Alexy, mais difícil do que a identificação das normas que, em caráter abstrato e absoluto, deveriam ser ordenadas numa hierarquia de valores é, sem dúvida, o próprio problema da ordenação como tal. Essa ordenação poderia ser tanto cardinal (quando se conferisse um número que traduzisse a importância do valor, por exemplo, de um a dez), ou ordinal (em que se estabelecesse apenas uma relação de preferência entre os valores existentes).
Para demonstrar que uma tal ordenação, seja cardinal, seja na forma ordinal, é inadmissível, R. Alexy sugere o exemplo do caso Lebach, em que dois valores (ou melhor, em termos deontológicos, princípios constitucionais) se mostram relevantes, isto é, a proteção da personalidade e a proteção da liberdade de informação ou de jornalismo através da radiodifusão.
Há aqui, lembra R. Alexy, duas formas de se solucionar o problema. Uma é a de se conferir igual valor (cardinal ou ordinal) a ambas as liberdades; a outra é a de imputar-lhes valores diferenciados.
Logicamente, com a primeira fórmula, ou seja, conferindo-se igual valores a ambos os princípios, mesmo com o recurso da ordem hierárquica, o problema permaneceria não-resolvido.
Imagine-se agora que, para chegar a uma solução do problema, se valha, por exemplo, de uma ordenação hierárquica do tipo cardinal, conferindo-se números diversos a ambas as liberdades, ainda como exemplo, oito para a proteção da personalidade e quatro para a liberdade de informação. Como conclui R. Alexy, uma tal atribuição de valores numéricos, em termos absolutos, confere, como se vê, à proteção da personalidade o dobro do valor que se atribuiu à liberdade de informação. Em consequência disso, em todas as situações em que, para solucionar qualquer problema em que se controvertam essas garantias constitucionais, se recorra tão somente a essa específica ordem hierárquica abstrata, então, obviamente, isso significará que, nesses casos, sempre a proteção da personalidade precederá à liberdade de informação.
Isso, além de contrariar a jurisprudência da constitucional, tanto no caso da experiência de Alexy como no caso brasileiro, teria como indesejada consequência o fato de que, se a proteção da personalidade, por conta de uma tal hierarquia, precede em abstrato a liberdade de informação através da radiodifusão, então, essa primazia tem validade em todos os casos. Por conta disso, completa o autor, mesmo “a menor exigência de proteção da personalidade justificaria a mais intensa intervenção na liberdade de informação”. Obviamente, a alteração ou mesmo a inversão de valores conferidos aos respectivos bens constitucionais, se mantidos em caráter abstrato e absoluto, não suprimiria o problema.
No Direito norte-americano, também a jurisprudência e doutrina têm observado as graves consequências de se adotar uma hierarquia em termos absolutos entre os bens constitucionalmente protegidos. Vários autores têm denunciado os nefastos efeitos que resultam do comportamento e de posições teóricas e jurisprudenciais que insistem em elevar à categoria de direitos absolutos alguns direitos fundamentais de sua preferência.
Vejamos o exemplo da liberdade de expressão (free speech) — referido por John E. Nowak e Ronald D. Rotunda, dois grandes constitucionalista norte-americanos. Ao buscarem determinar a conformação constitucionalmente mais adequada dessa liberdade fundamental, tendo em consideração o confronto entre os defensores da ponderação como meio adequado à sua correta delimitação e aqueles que a enxergam como direito fundamental absoluto — ou quase absoluto, ou seja, que de regra não deve se predispor a qualquer ponderação com outros bens ou interesses, ainda que também esses direitos estejam constitucionalmente protegidos (o célebre confronto da doutrina e jurisprudência norte-americanas entre Balancing vs. Absolutism), concluíam John E. Nowak e Ronald D. Rotunda que, “se a liberdade de expressão é um direito absoluto, certamente, está (contudo) em uma posição de preferência comparada à maioria dos direitos na Constituição, que à semelhança da Quarta Emenda, não são expressados em termos absolutos”.
Em Konigsberg vs. State Bar, 366 US 36 (1961), o Justice Harlan, sempre identificado com uma representante dos defensores da ponderação como procedimento adequado à solução de colisão de direitos e princípios constitucionais (balancing view), votando com a maioria, rejeitou a posição de um direito absoluto de liberdade de expressão e de associação, deixando claro que a Corte Suprema historicamente teria se inclinado no sentido de que a liberdade de expressão é mais restrita do que uma ilimitada licença para falar (license to talk).
Portanto, a elevação (hierárquica) da liberdade de expressão a uma posição absoluta em relação a qualquer outro bem disposto constitucionalmente também aqui conduziria a consequências absolutamente nefastas no que tange tanto à defesa da ordem constitucional como à proteção de outros direitos fundamentais ou interesses públicos e coletivos constitucionalmente assegurados, cuja proteção, em situações e circunstâncias determinadas, tem, ou pode ter — para a sociedade e para a Constituição — o mesmo ou valor mais elevado.
Por isso, concluía Harlan em seu voto, de um lado, têm-se considerado certos modos de expressão, ou forma de expressar-se em certos contextos, fora da garantia constitucional. De outro lado, têm-se admitido estatutos regulatórios que, não podendo controlar o conteúdo da expressão, mas limitando incidentalmente seu exercício quando necessário para equilibrar a liberdade de expressão com outros interesses públicos (também protegidos constitucionalmente).
Como se espera ter demonstrado, pois, o estabelecimento incondicional e absoluto de qualquer ordem hierárquica de valores na Constituição é absolutamente incompatível com uma argumentação racional, exigida e imposta ao Direito a partir da Modernidade. De fato, é inconcebível que, a partir de uma lógica dos valores, possa impor-se a ideia de que, para o mais alto valor, o mais alto preço não é tão alto e (que por isso mesmo, não importando as circunstâncias) deva (sempre) ser pago. Semelhante conclusão corresponderia a impor à sociedade - que através da Constituição tem o legítimo interesse de se organizar racionalmente — uma arbitrária e irracional tirania dos valores (Tyrannei der Werte), que se suporta, sobretudo, em verdades absolutas, excluídas do jogo racional da argumentação e da contra-argumentação.
Por fim, não é por outra razão que a jurisprudência constitucional tem, como regra, optado pela técnica da ponderação de bens, nos quais os tribunais, atentos às circunstâncias do caso litigioso e vinculados a um acentuado dever de fundamentação, devem desenvolver uma argumentação democrática fundada, além dos princípios lógicos de qualquer argumentação racional, no respeito à participação discursiva de todos os interessados, de ordem a não preterir, de forma prévia e absoluta, qualquer dos bens e liberdades eventualmente envolvidos na situação jurídica submetida ao seu julgamento.
Néviton Guedes
O radicalismo político, ou religioso, que não tem pudor de eliminar a vida de pessoas inocentes, é só o sintoma mais destacado deste fenômeno. Entretanto, compondo a mesma ordem de problemas, no caso do Direito, não é incomum que os juristas passem a buscar na Constituição uma hierarquia de valores que possa justificar uma preferência absoluta — não condicionada — em favor de algum bem ou direito que, ao julgamento de cada interessado, devem prevalecer (sempre) sobre outros direitos também estabelecidos constitucionalmente.
Por exemplo, não é incomum que o indivíduo que é contrário ao aborto busque na Constituição uma hierarquia em favor do direito à vida no que tange à liberdade e à privacidade da mulher, de ordem a justificar a sua preferência por uma direito fundamental (o direito à vida) em detrimento de outros direitos também fundamentais (a liberdade e a privacidade da mulher). Por sua vez, aqueles que são favoráveis ao aborto buscaram na Constituição uma preferência absoluta dos direitos fundamentais da mulher em relação à vida do nascituro.
Em outro exemplo, os que não creem ou rejeitam a religião estarão inclinados a submeter a liberdade religiosa à hierarquia de outros valores constitucionais. Pelo contrário, os adeptos mais firmes de alguma religião estarão, por óbvio, inclinados a ver prevalecer a liberdade religiosa diante de outras garantias constitucionais.
Como se vê, pode-se citar um sem-número de exemplos nos quais, a depender de nossas preferências morais, políticas, ou ideológicas, estamos (pre)dispostos a ver num direito fundamental, ou numa liberdade constitucional, maior ou menor valor do que noutros bens e direitos também protegidos constitucionalmente.
Vejamos um exemplo.
Tivemos a notícia de decisão proferida por um tribunal da região de Colônia, na Alemanha, que, de forma inteiramente criticável, fez submeter em termos absolutos a liberdade religiosa à incolumidade física, ambos os bens protegidos na Constituição daquele país. De fato, “por considerar que a circuncisão realizada por motivos religiosos é equivalente à lesão corporal, mesmo com o consentimento dos pais, (...) decidiu que o ato deve ser proibido”.
O argumento do tribunal foi o de que o direito à integridade física da criança supera de forma incondicional a liberdade de religião de seus pais e de sua família. De acordo ainda com a notícia, “o sangramento nestes tipos de operações é normal e, no caso, foi rapidamente controlado. No entanto, os promotores locais entraram com ação contra o médico. O juiz da primeira instância garantiu aos pais o direito de decidir.
Depois que a promotoria apelou, um tribunal superior garantiu o direito da criança de ser protegida contra danos corporais. Mesmo assim, o médico acabou absolvido e os promotores disseram que não vão recorrer novamente.” O único efeito positivo da decisão parece ter sido o de promover, naquele país, a união da comunidade judaica e da comunidade muçulmana, que se colocaram, segundo os jornais, em pé de guerra contra o referido tribunal.
Muito bem! Como pretendo demonstrar, as constituições democráticas tendem a não consentir com qualquer ordem ou hierarquia de valores entre os bens que veiculam e protegem como direitos fundamentais.
De outro lado, no âmbito pragmático de um Direito Constitucional que queira realizar-se como governo de normas preestabelecidas e racionalmente aplicadas, consentir com a produção de uma hierarquia entre normas constitucionais por quem tenha apenas o poder de aplicá-las acaba por subverter completamente as formas básicas de diferenciação, que são essenciais ao processo de (auto)reconhecimento do Direito, especialmente no caso do Direito Constitucional.
Caso alguém pudesse, rompendo com os pressupostos e limites impostos pelo próprio Direito, impor de fora uma inexistente hierarquia entre bens e valores constitucionais, tornar-se-ia impossível, por assim dizer, saber o que é próprio do Direito Constitucional e o que lhe foi imposto de fora. Em linguagem luhmanniana, dir-se-ia que o Direito Constitucional, sem o respeito a essas formas de diferenciação, perde sua autorreferência.
Uma vez que as Constituições não costumam estabelecer — certamente, não o faz a Constituição brasileira — diferenciação hierárquica entre as suas normas, sobretudo, entre as normas que veiculam direitos fundamentais, a busca de critérios supostamente implícitos no próprio texto, alegadamente sacados do próprio sistema de normas constitucionais, com os quais se pudesse legitimar a referida diferenciação hierárquica, permitirá desde sempre àquele que se confere o poder de revelar o-que-não-estava-revelado a possibilidade de introduzir no sistema constitucional critérios de diferenciação seus e, portanto, externos, como se fossem do próprio sistema, o que é, obviamente, inadmissível. No âmbito racional de aplicação de normas jurídicas, restaria esmaecida a diferenciação entre premissas de decisão e as decisões mesmas. Mas não é só isso e nem é isso o principal.
A aceitação de uma hierarquia de valores obscurece ainda a distinção juridicamente essencial entre criação e aplicação de normas jurídicas — no caso, constitucionais — e corrompe qualquer relevância que, histórica e politicamente, se vem retirando da distinção entre poder constituinte e poderes constituídos.
De fato, a tentativa de estabelecer uma hierarquia entre normas constitucionais, sobretudo das normas que tiveram origem no próprio poder constituinte originário, as quais não foram ali hierarquizadas, pressupõe três elementos inadmissíveis a uma ordem constitucional democrática que se predisponha a realizar-se racionalmente, isto é, uma hierarquização de normas constitucionais supõe,
(1) a existência de alguém, indivíduo ou instituição, com poderes para estabelecer uma ordem entre normas constitucionais mais e menos importantes;
(2) pressupõe também um conjunto de normas constitucionais que passarão a ter uma diferenciação funcional e normativa e, por assim dizer, uma fundamentalidade destacada, isto é, superior, independentemente e em detrimento do conjunto das demais normas, as quais, com a ordenação hierárquica, passarão a ser consideradas subalternas e serão alocadas num segundo nível, ou em quantos níveis se estabeleçam na referida ordem hierárquica;
(3) por fim,qualquer ordem hierarquizada pressupõe critério ou critérios, que só poderão estar fora do próprio texto, pois destinado(s), precisamente, a valorar as normas constitucionais e a submetê-las a uma relação de subordinação que se desenvolve num processo em que essas normas deixam de ser premissas máximas da ordem constitucional e passam elas mesmas a serem objeto de decisão e ordenação por intermédio de outras premissas de enquadramento diferenciador — novamente, o problema de número dois.
Valendo-se também de uma inspiração luhmanniana, poder-se-ia dizer que, admitindo-se tal critério, ou critérios de ordenação hierárquica, as normas constitucionais deixariam automaticamente de ser premissas de decisão, uma vez que premissa, em termos lógicos, só o é aquilo que já não se põe à avaliação ou julgamento por outro critério ou norma.
Pode-se conclusivamente apresentar, portanto, pelo menos três objeções à concepção de uma Constituição como ordem hierarquizada de valores.
Em primeiro lugar, é inadmissível a uma ordem constitucional de perfil democrático, que se quer realizar como governo racional de normas predispostas, e não como uma consolidação arbitrária de desígnios da vontade de poderosos, consentir com a presença de alguém — pessoa ou instituição — que tenha poderes para coercitivamente estabelecer tal ordem hierárquica, com o que se aceitaria a presença de um indivíduo ou instituição que se sobreporia à própria Constituição, pois, do ponto de vista lógico, aquele que pudesse dizer, de forma absoluta e abstrata, o que, dentro da Constituição, tem mais ou menos valor normativo estaria sendo posto ou se pondo acima da própria Constituição.
Em segundo lugar, em homenagem ao princípio da unidade da Constituição, diante de normas que a própria Constituição ergueu em unidade e em uma conexão global, impondo ao intérprete que as observe em conjunto, e não isoladamente, seria também inadmissível o estabelecimento, dentro do próprio texto constitucional, daquilo que poderia ser, isoladamente e em absoluto, considerado mais digno de observância e proteção.
Por fim, já agora com o auxílio de Robert Alexy, ainda que a comunidade nacional, em legítimo exercício do poder constituinte, entendesse de estabelecer uma Constituição como ordem de valores hierarquizada, um obstáculo de natureza invencível se apresentaria a qualquer sociedade contemporânea que tem que lidar com problemas do presente e do futuro com normas de regulação produzidas no passado. É que não se vislumbra, com a fixação de uma ordem hierárquica em termos abstratos e absolutos, como pressupõe a ideia de uma ordem hierárquica de valores, a possibilidade de eleição de qualquer critério (ordinal, ou cardinal) — em tais condições, verdadeiramente mágico — apto a, sobrepondo-se a todas as normas da própria Constituição, e por isso posto e imposto de fora do texto constitucional, estabelecer uma ordem abstrata e absoluta entre as normas constitucionais.
Como adverte Alexy, é verdadeiramente incompatível com uma Constituição democrática uma ordem hierárquica, abstrata e previamente disposta, que tivesse o condão de conferir solução adequada e específica para todos os multiformes e graves problemas que possam ter lugar, como de fato têm, na vida de qualquer sociedade tão complexa quanto às contemporâneas.
De fato, ainda conforme R. Alexy, mais difícil do que a identificação das normas que, em caráter abstrato e absoluto, deveriam ser ordenadas numa hierarquia de valores é, sem dúvida, o próprio problema da ordenação como tal. Essa ordenação poderia ser tanto cardinal (quando se conferisse um número que traduzisse a importância do valor, por exemplo, de um a dez), ou ordinal (em que se estabelecesse apenas uma relação de preferência entre os valores existentes).
Para demonstrar que uma tal ordenação, seja cardinal, seja na forma ordinal, é inadmissível, R. Alexy sugere o exemplo do caso Lebach, em que dois valores (ou melhor, em termos deontológicos, princípios constitucionais) se mostram relevantes, isto é, a proteção da personalidade e a proteção da liberdade de informação ou de jornalismo através da radiodifusão.
Há aqui, lembra R. Alexy, duas formas de se solucionar o problema. Uma é a de se conferir igual valor (cardinal ou ordinal) a ambas as liberdades; a outra é a de imputar-lhes valores diferenciados.
Logicamente, com a primeira fórmula, ou seja, conferindo-se igual valores a ambos os princípios, mesmo com o recurso da ordem hierárquica, o problema permaneceria não-resolvido.
Imagine-se agora que, para chegar a uma solução do problema, se valha, por exemplo, de uma ordenação hierárquica do tipo cardinal, conferindo-se números diversos a ambas as liberdades, ainda como exemplo, oito para a proteção da personalidade e quatro para a liberdade de informação. Como conclui R. Alexy, uma tal atribuição de valores numéricos, em termos absolutos, confere, como se vê, à proteção da personalidade o dobro do valor que se atribuiu à liberdade de informação. Em consequência disso, em todas as situações em que, para solucionar qualquer problema em que se controvertam essas garantias constitucionais, se recorra tão somente a essa específica ordem hierárquica abstrata, então, obviamente, isso significará que, nesses casos, sempre a proteção da personalidade precederá à liberdade de informação.
Isso, além de contrariar a jurisprudência da constitucional, tanto no caso da experiência de Alexy como no caso brasileiro, teria como indesejada consequência o fato de que, se a proteção da personalidade, por conta de uma tal hierarquia, precede em abstrato a liberdade de informação através da radiodifusão, então, essa primazia tem validade em todos os casos. Por conta disso, completa o autor, mesmo “a menor exigência de proteção da personalidade justificaria a mais intensa intervenção na liberdade de informação”. Obviamente, a alteração ou mesmo a inversão de valores conferidos aos respectivos bens constitucionais, se mantidos em caráter abstrato e absoluto, não suprimiria o problema.
No Direito norte-americano, também a jurisprudência e doutrina têm observado as graves consequências de se adotar uma hierarquia em termos absolutos entre os bens constitucionalmente protegidos. Vários autores têm denunciado os nefastos efeitos que resultam do comportamento e de posições teóricas e jurisprudenciais que insistem em elevar à categoria de direitos absolutos alguns direitos fundamentais de sua preferência.
Vejamos o exemplo da liberdade de expressão (free speech) — referido por John E. Nowak e Ronald D. Rotunda, dois grandes constitucionalista norte-americanos. Ao buscarem determinar a conformação constitucionalmente mais adequada dessa liberdade fundamental, tendo em consideração o confronto entre os defensores da ponderação como meio adequado à sua correta delimitação e aqueles que a enxergam como direito fundamental absoluto — ou quase absoluto, ou seja, que de regra não deve se predispor a qualquer ponderação com outros bens ou interesses, ainda que também esses direitos estejam constitucionalmente protegidos (o célebre confronto da doutrina e jurisprudência norte-americanas entre Balancing vs. Absolutism), concluíam John E. Nowak e Ronald D. Rotunda que, “se a liberdade de expressão é um direito absoluto, certamente, está (contudo) em uma posição de preferência comparada à maioria dos direitos na Constituição, que à semelhança da Quarta Emenda, não são expressados em termos absolutos”.
Em Konigsberg vs. State Bar, 366 US 36 (1961), o Justice Harlan, sempre identificado com uma representante dos defensores da ponderação como procedimento adequado à solução de colisão de direitos e princípios constitucionais (balancing view), votando com a maioria, rejeitou a posição de um direito absoluto de liberdade de expressão e de associação, deixando claro que a Corte Suprema historicamente teria se inclinado no sentido de que a liberdade de expressão é mais restrita do que uma ilimitada licença para falar (license to talk).
Portanto, a elevação (hierárquica) da liberdade de expressão a uma posição absoluta em relação a qualquer outro bem disposto constitucionalmente também aqui conduziria a consequências absolutamente nefastas no que tange tanto à defesa da ordem constitucional como à proteção de outros direitos fundamentais ou interesses públicos e coletivos constitucionalmente assegurados, cuja proteção, em situações e circunstâncias determinadas, tem, ou pode ter — para a sociedade e para a Constituição — o mesmo ou valor mais elevado.
Por isso, concluía Harlan em seu voto, de um lado, têm-se considerado certos modos de expressão, ou forma de expressar-se em certos contextos, fora da garantia constitucional. De outro lado, têm-se admitido estatutos regulatórios que, não podendo controlar o conteúdo da expressão, mas limitando incidentalmente seu exercício quando necessário para equilibrar a liberdade de expressão com outros interesses públicos (também protegidos constitucionalmente).
Como se espera ter demonstrado, pois, o estabelecimento incondicional e absoluto de qualquer ordem hierárquica de valores na Constituição é absolutamente incompatível com uma argumentação racional, exigida e imposta ao Direito a partir da Modernidade. De fato, é inconcebível que, a partir de uma lógica dos valores, possa impor-se a ideia de que, para o mais alto valor, o mais alto preço não é tão alto e (que por isso mesmo, não importando as circunstâncias) deva (sempre) ser pago. Semelhante conclusão corresponderia a impor à sociedade - que através da Constituição tem o legítimo interesse de se organizar racionalmente — uma arbitrária e irracional tirania dos valores (Tyrannei der Werte), que se suporta, sobretudo, em verdades absolutas, excluídas do jogo racional da argumentação e da contra-argumentação.
Por fim, não é por outra razão que a jurisprudência constitucional tem, como regra, optado pela técnica da ponderação de bens, nos quais os tribunais, atentos às circunstâncias do caso litigioso e vinculados a um acentuado dever de fundamentação, devem desenvolver uma argumentação democrática fundada, além dos princípios lógicos de qualquer argumentação racional, no respeito à participação discursiva de todos os interessados, de ordem a não preterir, de forma prévia e absoluta, qualquer dos bens e liberdades eventualmente envolvidos na situação jurídica submetida ao seu julgamento.
Néviton Guedes
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