Com a Proclamação da República nasceu a federação brasileira. Triunfante o movimento militar que depusera o Império, os republicanos de imediato editaram o Decreto 1, verdadeira “Constituição de bolso” — no dizer de Bonavides e Paes de Andrade — redigida por Rui Barbosa, que decretava em seu artigo 1º, como forma de governo da nação brasileira, a República Federativa.
O artigo 2º de tal decreto desde logo afirmava a constituição dos Estados Unidos do Brasil pelas antigas províncias do Império, agora “reunidas pelo laço da federação”; enquanto o artigo 3º determinava que “cada um desses Estados, no exercício de sua legítima soberania, decretará oportunamente a sua Constituição definitiva, elegendo os seus corpos deliberantes e os seus governos locais”.
Com esse “golpe de mão” constituinte, operado na madrugada do dia 15 para o dia 16 de novembro de 1889, a forma federativa de Estado era adotada no Brasil para não mais desaparecer ao longo dos mais de cem anos de vida institucional republicana. Todas as constituições que se seguiram à proclamação de Deodoro no Campo de Santana afirmaram a federação como a forma inafastável de organização do Estado brasileiro.
Entretanto, à aceitação inquestionável da forma federativa de Estado pelos textos constitucionais republicanos não correspondeu uma compreensão unívoca da federação no concerto de poderes que necessariamente exsurge de sua adoção. Sim, porque com a federação nascem diferentes órbitas de poder autônomo, as quais convivem numa constante disputa de poder que define, em concreto, a natureza do federalismo vigente.
É exatamente essa a percepção de Raul Machado Horta, para quem a administração da multiplicidade de ordens jurídicas inerente ao federalismo “é tarefa de laboriosa engenharia constitucional”.
Nesse quadro de natural tensão, têm sido comuns, ao longo dos quase 125 anos de República brasileira, as disputas de poder, de competências, evolvendo a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, aos quais — desde o artigo 68 da Constituição de 1891 — tem-se reconhecido autonomia, integrando-os, portanto, ao esquema federativo nacional.
Se há tensão e disputas, a estabilidade institucional do Estado federal passa a depender da definição dos procedimentos e do locus para a solução desses conflitos, reduzindo-se ao máximo a contradição entre coesão e particularismo, o que garante a permanência da união.
No Brasil — assim como nos Estados Unidos, matriz dos arranjos institucionais consagrados na República —, o locus de solução dessas controvérsias sempre foi a Suprema Corte. Se a Justiça Federal foi concebida, para utilizar a expressão de Campos Sales, como sendo um “guarda de fronteiras”, que impede a invasão do território normativo da União pelo legislador e pelo julgador locais, o Supremo Tribunal Federal, seu órgão de cúpula, desempenha o papel máximo nesse controle de limites de competência entre os diferentes níveis de poder na federação.
Coube ao Tribunal, ao longo dos anos republicanos, portanto, a definição concreta e real da forma do Estado brasileiro. À conformação estática prevista nos variados textos constitucionais conferiu o STF uma verdadeira dinâmica federativa, a qual, definindo em diversos momentos históricos o equilíbrio entre unidade e diversidade, caracterizou a essência do federalismo nacional.
Foi assim nos primeiros anos da República, quando as intervenções de fato e os estados de sítio inconstitucionais distorciam a nascente federação, provocando respostas indignadas do Supremo. E continua sendo assim sob a égide da Constituição de 1988, a cuja ordem federativa tem dado vida o Supremo Tribunal Federal por meio de seus diversos julgados sobre as relações de poder entre a União e as diversas autoridades locais; no que caracteriza uma especial ordem de jurisdição constitucional, a jurisdição federativa.
A presente análise tem como objetivo, pois, indicar, ainda que brevemente, uma tendência que se verifica nessa jurisdição federativa ao longo dos 25 anos de vigência da Constituição. Para tanto, foi selecionado — entre os vários temas relacionados com a federação — um especial aspecto enfrentado pelos ministros do Supremo na interpretação do federalismo de 1988, qual seja, o conceito de conflito federativo.
Inicialmente, a definição do conflito federativo é a chave para a determinação da abrangência da intervenção do Supremo Tribunal Federal nas disputas de poder entre os diferentes entes federados. É verdade que, sendo tais questões de índole constitucional, têm elas condições de ser apreciadas pelo STF independentemente de sua classificação, ou não, como conflito federativo, mas pelo simples fato de ser a Corte, nos termos do artigo 102 do texto constitucional federal, responsável pela guarda da Constituição.
Entretanto, sendo a controvérsia classificada como um conflito federativo, abre-se a competência originária do Supremo prevista na alínea f do inciso I do artigo 102 da Carta da República, impedindo que qualquer outro órgão do Poder Judiciário sobre ela se manifeste, em situação que reforça o papel do Tribunal como definidor do federalismo brasileiro e faz com que suas determinações nessa matéria sejam mais diretas e efetivas.
Portanto, quanto maior for a extensão do conceito de conflito federativo, maior o poder real do STF na fixação dos contornos da federação brasileira, atribuindo a cada ente federado seus verdadeiros poderes, suas competências próprias.
Tradicionalmente, a jurisprudência constitucional da Suprema Corte foi cautelosa no delineamento do conflito federativo, num entendimento que pode ser observado desde a Constituição de 1891. E, sob a égide do texto de 1988, o entendimento do STF acerca do conflito federativo manteve-se, de início, consideravelmente restritivo, limitando ao máximo o reconhecimento de sua existência e tornando sua apreciação pela Corte algo excepcional. As causas e os conflitos mencionados na referida alínea f do inciso I do artigo 102 da CF seriam somente aqueles com potencial desagregador da federação, aqueles nos quais seria necessário harmonizar as diversidades em nome da unidade.
Essa linha interpretativa é a que informa o decidido pela Suprema Corte no julgamento da Ação Cível Originária (ACO) 417 — Questão de Ordem (relator ministro Sepúlveda Pertence, Diário da Justiça (DJ) de 7 de dezembro de 1990). No caso, a lide entre autarquia previdenciária federal e um estado federado não foi classificada como conflito federativo. Isso porque, como afirmado no voto do relator, “a jurisprudência da Corte traduz uma audaciosa redução do alcance literal da alínea questionada da sua competência original: cuida-se, porém, de redução teleológica e sistematicamente bem fundamentada, tão manifesta, em causas como esta, se mostra a ausência dos fatores determinantes da excepcional competência originária do STF para o deslinde jurisdicional dos conflitos federativos”.
O substrato político de ordenação federal está na base, portanto, do conceito de conflito federativo para fins de caracterização da competência originária do Supremo. Disputas sem esse teor ficam fora da apreciação necessária e imediata do Tribunal da Federação, como indicam, entre vários outros precedentes, a ACO 447 (relator ministro Octavio Gallotti, DJ de 14 de maio de 1993); o Mandado de Segurança (MS) 23.482 – Questão de Ordem (relator ministro Ilmar Galvão, DJ de 5 de abril de 2002); e, mais recentemente, o Recurso Extraordinário (RE) 512.468 – Agravo Regimental, (relator ministro Eros Grau, DJ de 6 de junho de 2008).
Entretanto, esse critério contém um grau considerável de discricionariedade, com o qual administra a Corte a conveniência e a oportunidade de examinar algumas causas que, mesmo com questionável potencial desagregador da federação, apresentam conteúdo social, política ou economicamente relevante.
Tal movimento de relativização desse critério de risco à unidade federal, notado em reiterados julgados do STF, tem estendido o conceito de conflito federativo, acarretando — não raro — uma aplicação literal da alínea f do inciso I do artigo 102 da Constituição Federal.
Nessa linha de extensão, o Supremo passou a entender que a redução desenhada por sua jurisprudência na conceituação de conflito federativo opera-se, exclusivamente, em causas com mero conteúdo patrimonial. É o que se depreende, por exemplo, do voto proferido pelo relator da ACO 684 (DJ de 30 de setembro de 2005), ministro Sepúlveda Pertence: “Para temas como esses [da ACO 417], de cunho meramente patrimonial, é que entendo sustentável a ‘redução teleológica’ a que procedeu o Tribunal na dicção literal do artigo 102, I ‘f’, da Constituição”.
Esse entendimento, segundo o qual uma disputa entre um Tribunal de Justiça estadual e a seccional da Ordem dos Advogados do Brasil é um conflito federativo, foi rechaçado pelos ministros Marco Aurélio, Ayres Britto e Cezar Peluso, cujo voto expressa as diferentes possibilidades de delimitação do alcance dessa importante competência originária do STF: “A mim parece que o fato de reconhecermos que não se trata de entidade de direito privado [a OAB], mas de entidade especial, de âmbito federal, não significa, necessariamente, que ela represente ou encarne algum interesse específico da federação como tal e que, portanto, possa compor, no caso, um conflito federativo. A ordem dos Advogados não é ente federado!”.
Assim, se é verdade que se pode afirmar — concordando com o ministro Pertence na mesma ACO 684 — que os conflitos federativos não se resumem ao risco de iminente guerra civil ou similar, é igualmente verdade que a “controvérsia jurídica relevante sobre a demarcação dos âmbitos materiais de competência dos entes que compõem a federação” pode englobar um sem número de questões, as quais teriam no Supremo Tribunal Federal sua única instância jurisdicional.
Essa perspectiva de transformar-se a Suprema Corte em única instância de várias discussões tem-se concretizado em alguns julgados. Mesmo tendo definido que a redução teleológica da alínea f seria verificada somente em causas patrimoniais — conclusão expressa na ACO 684, julgada em 4 de agosto de 2005 —, o Tribunal, em 17 de novembro de 2005, vencido o ministro Marco Aurélio, entendeu ser competente para apreciar ação de repetição de indébito movida pelo estado de São Paulo contra a União e o INSS, tendo em vista sua natureza de conflito federativo. Trata-se da ACO 251 (relator ministro Marco Aurélio, DJ de 09 de junho de 2006), na qual uma causa evidentemente de caráter patrimonial foi considerada um conflito federativo.
Igualmente pode ser mencionada, como ilustração desse movimento jurisprudencial, a Reclamação 2.549 (relator ministro Joaquim Barbosa, DJ de 10 de agosto de 2006), por meio do qual o Supremo reconheceu como enquadrada da alínea f do inciso I do artigo 102 da Constituição de 1988 a lide estabelecida entre empresa pública estadual e a agência reguladora federal — de natureza autárquica — responsável por sua fiscalização. Para tanto, foram destacados, como traços caracterizadores do potencial conflito federativo, “o significativo impacto patrimonial a ser suportado pela União ou pelo estado de Pernambuco, conforme o desfecho da controvérsia” e “a relevância federativa da controvérsia, por opor-se à pretensão do estado-membro a atuação administrativa de autarquia federal em matéria compreendida em competência privativa da União”.
Todos esses precedentes indicam um evidente alargamento do conceito de conflito federativo, o que concentra no STF a discussão de diversas matérias, aumentando artificialmente o debate jurídico acerca do federalismo. Tal realidade tem beneficiado especialmente a União — a pessoa jurídica de direito público interno e não a unidade que caracteriza a forma federativa de Estado — em detrimento dos demais entes federados, reforçando processualmente uma centralização de poderes.
Dessa análise, pode-se afirmar que algumas conclusões exsurgem como necessárias, as quais devem ser brevemente indicadas para que se possa, de forma ordenada, efetuar algum tipo de reflexão sobre o federalismo brasileiro e a atuação do Supremo Tribunal Federal nos últimos 25 anos, em especial em sede de conflito federativo.
Em primeiro lugar, o estudo das decisões aqui referidas corrobora claramente o afirmado ao início: o STF desempenha um papel fundamental na definição dos reais contornos do Estado federal brasileiro, desenhando o real e efetivo pacto federativo nacional. Tal conclusão, aparentemente acaciana, tem o intuito de indicar — mais uma vez — que a compreensão do sistema federal brasileiro passa, sim, pelas normas escritas há 25 anos na Constituição Federal, mas passa, igual e principalmente, pelos acórdãos proferidos ao longo desses mesmos 25 anos — e nos futuros anos — pelo Supremo Tribunal Federal.
Assentada essa posição nuclear da Suprema Corte na matéria, deve-se reconhecer que tem ela atuado menos como um Tribunal da Federação — de sua unidade na diversidade — e mais como um Tribunal da União — tal qual nos casos em que se transforma num foro privilegiadíssimo no qual a União litiga com os Estados em controvérsias que muitas vezes passam ao largo do verdadeiro conflito federativo.
Atuando como Tribunal da União, o STF concentra decisões jurídicas e políticas que transcendem as relacionadas à função de árbitro do jogo federativo, tolhendo as particularidades locais e padronizando em demasia questões que deveriam ficar abertas à pluralidade típica do federalismo.
Auxilia, assim, no fortalecimento da União, na centralização do poder, enfim, na construção de um Estado unitário de fato ou de uma federação semântica, na qual a União se projeta dominadora sobre as searas de autonomia dos demais entes federados.
Essa constatação torna-se ainda mais alarmante quando — acrescentando o elemento político — é reconhecido “que a Federação é necessária para a governabilidade de um país como o Brasil, bem como para a sorte da própria democracia. Um acréscimo de centralização sufocaria o país e certamente ameaçaria a democracia”, impondo-se, assim, a reformulação da versão brasileira do federalismo e, em especial, de alguns entendimentos do STF sobre a questão.
Carlos Bastide Horbach é advogado e professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).
O artigo 2º de tal decreto desde logo afirmava a constituição dos Estados Unidos do Brasil pelas antigas províncias do Império, agora “reunidas pelo laço da federação”; enquanto o artigo 3º determinava que “cada um desses Estados, no exercício de sua legítima soberania, decretará oportunamente a sua Constituição definitiva, elegendo os seus corpos deliberantes e os seus governos locais”.
Com esse “golpe de mão” constituinte, operado na madrugada do dia 15 para o dia 16 de novembro de 1889, a forma federativa de Estado era adotada no Brasil para não mais desaparecer ao longo dos mais de cem anos de vida institucional republicana. Todas as constituições que se seguiram à proclamação de Deodoro no Campo de Santana afirmaram a federação como a forma inafastável de organização do Estado brasileiro.
Entretanto, à aceitação inquestionável da forma federativa de Estado pelos textos constitucionais republicanos não correspondeu uma compreensão unívoca da federação no concerto de poderes que necessariamente exsurge de sua adoção. Sim, porque com a federação nascem diferentes órbitas de poder autônomo, as quais convivem numa constante disputa de poder que define, em concreto, a natureza do federalismo vigente.
É exatamente essa a percepção de Raul Machado Horta, para quem a administração da multiplicidade de ordens jurídicas inerente ao federalismo “é tarefa de laboriosa engenharia constitucional”.
Nesse quadro de natural tensão, têm sido comuns, ao longo dos quase 125 anos de República brasileira, as disputas de poder, de competências, evolvendo a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, aos quais — desde o artigo 68 da Constituição de 1891 — tem-se reconhecido autonomia, integrando-os, portanto, ao esquema federativo nacional.
Se há tensão e disputas, a estabilidade institucional do Estado federal passa a depender da definição dos procedimentos e do locus para a solução desses conflitos, reduzindo-se ao máximo a contradição entre coesão e particularismo, o que garante a permanência da união.
No Brasil — assim como nos Estados Unidos, matriz dos arranjos institucionais consagrados na República —, o locus de solução dessas controvérsias sempre foi a Suprema Corte. Se a Justiça Federal foi concebida, para utilizar a expressão de Campos Sales, como sendo um “guarda de fronteiras”, que impede a invasão do território normativo da União pelo legislador e pelo julgador locais, o Supremo Tribunal Federal, seu órgão de cúpula, desempenha o papel máximo nesse controle de limites de competência entre os diferentes níveis de poder na federação.
Coube ao Tribunal, ao longo dos anos republicanos, portanto, a definição concreta e real da forma do Estado brasileiro. À conformação estática prevista nos variados textos constitucionais conferiu o STF uma verdadeira dinâmica federativa, a qual, definindo em diversos momentos históricos o equilíbrio entre unidade e diversidade, caracterizou a essência do federalismo nacional.
Foi assim nos primeiros anos da República, quando as intervenções de fato e os estados de sítio inconstitucionais distorciam a nascente federação, provocando respostas indignadas do Supremo. E continua sendo assim sob a égide da Constituição de 1988, a cuja ordem federativa tem dado vida o Supremo Tribunal Federal por meio de seus diversos julgados sobre as relações de poder entre a União e as diversas autoridades locais; no que caracteriza uma especial ordem de jurisdição constitucional, a jurisdição federativa.
A presente análise tem como objetivo, pois, indicar, ainda que brevemente, uma tendência que se verifica nessa jurisdição federativa ao longo dos 25 anos de vigência da Constituição. Para tanto, foi selecionado — entre os vários temas relacionados com a federação — um especial aspecto enfrentado pelos ministros do Supremo na interpretação do federalismo de 1988, qual seja, o conceito de conflito federativo.
Inicialmente, a definição do conflito federativo é a chave para a determinação da abrangência da intervenção do Supremo Tribunal Federal nas disputas de poder entre os diferentes entes federados. É verdade que, sendo tais questões de índole constitucional, têm elas condições de ser apreciadas pelo STF independentemente de sua classificação, ou não, como conflito federativo, mas pelo simples fato de ser a Corte, nos termos do artigo 102 do texto constitucional federal, responsável pela guarda da Constituição.
Entretanto, sendo a controvérsia classificada como um conflito federativo, abre-se a competência originária do Supremo prevista na alínea f do inciso I do artigo 102 da Carta da República, impedindo que qualquer outro órgão do Poder Judiciário sobre ela se manifeste, em situação que reforça o papel do Tribunal como definidor do federalismo brasileiro e faz com que suas determinações nessa matéria sejam mais diretas e efetivas.
Portanto, quanto maior for a extensão do conceito de conflito federativo, maior o poder real do STF na fixação dos contornos da federação brasileira, atribuindo a cada ente federado seus verdadeiros poderes, suas competências próprias.
Tradicionalmente, a jurisprudência constitucional da Suprema Corte foi cautelosa no delineamento do conflito federativo, num entendimento que pode ser observado desde a Constituição de 1891. E, sob a égide do texto de 1988, o entendimento do STF acerca do conflito federativo manteve-se, de início, consideravelmente restritivo, limitando ao máximo o reconhecimento de sua existência e tornando sua apreciação pela Corte algo excepcional. As causas e os conflitos mencionados na referida alínea f do inciso I do artigo 102 da CF seriam somente aqueles com potencial desagregador da federação, aqueles nos quais seria necessário harmonizar as diversidades em nome da unidade.
Essa linha interpretativa é a que informa o decidido pela Suprema Corte no julgamento da Ação Cível Originária (ACO) 417 — Questão de Ordem (relator ministro Sepúlveda Pertence, Diário da Justiça (DJ) de 7 de dezembro de 1990). No caso, a lide entre autarquia previdenciária federal e um estado federado não foi classificada como conflito federativo. Isso porque, como afirmado no voto do relator, “a jurisprudência da Corte traduz uma audaciosa redução do alcance literal da alínea questionada da sua competência original: cuida-se, porém, de redução teleológica e sistematicamente bem fundamentada, tão manifesta, em causas como esta, se mostra a ausência dos fatores determinantes da excepcional competência originária do STF para o deslinde jurisdicional dos conflitos federativos”.
O substrato político de ordenação federal está na base, portanto, do conceito de conflito federativo para fins de caracterização da competência originária do Supremo. Disputas sem esse teor ficam fora da apreciação necessária e imediata do Tribunal da Federação, como indicam, entre vários outros precedentes, a ACO 447 (relator ministro Octavio Gallotti, DJ de 14 de maio de 1993); o Mandado de Segurança (MS) 23.482 – Questão de Ordem (relator ministro Ilmar Galvão, DJ de 5 de abril de 2002); e, mais recentemente, o Recurso Extraordinário (RE) 512.468 – Agravo Regimental, (relator ministro Eros Grau, DJ de 6 de junho de 2008).
Entretanto, esse critério contém um grau considerável de discricionariedade, com o qual administra a Corte a conveniência e a oportunidade de examinar algumas causas que, mesmo com questionável potencial desagregador da federação, apresentam conteúdo social, política ou economicamente relevante.
Tal movimento de relativização desse critério de risco à unidade federal, notado em reiterados julgados do STF, tem estendido o conceito de conflito federativo, acarretando — não raro — uma aplicação literal da alínea f do inciso I do artigo 102 da Constituição Federal.
Nessa linha de extensão, o Supremo passou a entender que a redução desenhada por sua jurisprudência na conceituação de conflito federativo opera-se, exclusivamente, em causas com mero conteúdo patrimonial. É o que se depreende, por exemplo, do voto proferido pelo relator da ACO 684 (DJ de 30 de setembro de 2005), ministro Sepúlveda Pertence: “Para temas como esses [da ACO 417], de cunho meramente patrimonial, é que entendo sustentável a ‘redução teleológica’ a que procedeu o Tribunal na dicção literal do artigo 102, I ‘f’, da Constituição”.
Esse entendimento, segundo o qual uma disputa entre um Tribunal de Justiça estadual e a seccional da Ordem dos Advogados do Brasil é um conflito federativo, foi rechaçado pelos ministros Marco Aurélio, Ayres Britto e Cezar Peluso, cujo voto expressa as diferentes possibilidades de delimitação do alcance dessa importante competência originária do STF: “A mim parece que o fato de reconhecermos que não se trata de entidade de direito privado [a OAB], mas de entidade especial, de âmbito federal, não significa, necessariamente, que ela represente ou encarne algum interesse específico da federação como tal e que, portanto, possa compor, no caso, um conflito federativo. A ordem dos Advogados não é ente federado!”.
Assim, se é verdade que se pode afirmar — concordando com o ministro Pertence na mesma ACO 684 — que os conflitos federativos não se resumem ao risco de iminente guerra civil ou similar, é igualmente verdade que a “controvérsia jurídica relevante sobre a demarcação dos âmbitos materiais de competência dos entes que compõem a federação” pode englobar um sem número de questões, as quais teriam no Supremo Tribunal Federal sua única instância jurisdicional.
Essa perspectiva de transformar-se a Suprema Corte em única instância de várias discussões tem-se concretizado em alguns julgados. Mesmo tendo definido que a redução teleológica da alínea f seria verificada somente em causas patrimoniais — conclusão expressa na ACO 684, julgada em 4 de agosto de 2005 —, o Tribunal, em 17 de novembro de 2005, vencido o ministro Marco Aurélio, entendeu ser competente para apreciar ação de repetição de indébito movida pelo estado de São Paulo contra a União e o INSS, tendo em vista sua natureza de conflito federativo. Trata-se da ACO 251 (relator ministro Marco Aurélio, DJ de 09 de junho de 2006), na qual uma causa evidentemente de caráter patrimonial foi considerada um conflito federativo.
Igualmente pode ser mencionada, como ilustração desse movimento jurisprudencial, a Reclamação 2.549 (relator ministro Joaquim Barbosa, DJ de 10 de agosto de 2006), por meio do qual o Supremo reconheceu como enquadrada da alínea f do inciso I do artigo 102 da Constituição de 1988 a lide estabelecida entre empresa pública estadual e a agência reguladora federal — de natureza autárquica — responsável por sua fiscalização. Para tanto, foram destacados, como traços caracterizadores do potencial conflito federativo, “o significativo impacto patrimonial a ser suportado pela União ou pelo estado de Pernambuco, conforme o desfecho da controvérsia” e “a relevância federativa da controvérsia, por opor-se à pretensão do estado-membro a atuação administrativa de autarquia federal em matéria compreendida em competência privativa da União”.
Todos esses precedentes indicam um evidente alargamento do conceito de conflito federativo, o que concentra no STF a discussão de diversas matérias, aumentando artificialmente o debate jurídico acerca do federalismo. Tal realidade tem beneficiado especialmente a União — a pessoa jurídica de direito público interno e não a unidade que caracteriza a forma federativa de Estado — em detrimento dos demais entes federados, reforçando processualmente uma centralização de poderes.
Dessa análise, pode-se afirmar que algumas conclusões exsurgem como necessárias, as quais devem ser brevemente indicadas para que se possa, de forma ordenada, efetuar algum tipo de reflexão sobre o federalismo brasileiro e a atuação do Supremo Tribunal Federal nos últimos 25 anos, em especial em sede de conflito federativo.
Em primeiro lugar, o estudo das decisões aqui referidas corrobora claramente o afirmado ao início: o STF desempenha um papel fundamental na definição dos reais contornos do Estado federal brasileiro, desenhando o real e efetivo pacto federativo nacional. Tal conclusão, aparentemente acaciana, tem o intuito de indicar — mais uma vez — que a compreensão do sistema federal brasileiro passa, sim, pelas normas escritas há 25 anos na Constituição Federal, mas passa, igual e principalmente, pelos acórdãos proferidos ao longo desses mesmos 25 anos — e nos futuros anos — pelo Supremo Tribunal Federal.
Assentada essa posição nuclear da Suprema Corte na matéria, deve-se reconhecer que tem ela atuado menos como um Tribunal da Federação — de sua unidade na diversidade — e mais como um Tribunal da União — tal qual nos casos em que se transforma num foro privilegiadíssimo no qual a União litiga com os Estados em controvérsias que muitas vezes passam ao largo do verdadeiro conflito federativo.
Atuando como Tribunal da União, o STF concentra decisões jurídicas e políticas que transcendem as relacionadas à função de árbitro do jogo federativo, tolhendo as particularidades locais e padronizando em demasia questões que deveriam ficar abertas à pluralidade típica do federalismo.
Auxilia, assim, no fortalecimento da União, na centralização do poder, enfim, na construção de um Estado unitário de fato ou de uma federação semântica, na qual a União se projeta dominadora sobre as searas de autonomia dos demais entes federados.
Essa constatação torna-se ainda mais alarmante quando — acrescentando o elemento político — é reconhecido “que a Federação é necessária para a governabilidade de um país como o Brasil, bem como para a sorte da própria democracia. Um acréscimo de centralização sufocaria o país e certamente ameaçaria a democracia”, impondo-se, assim, a reformulação da versão brasileira do federalismo e, em especial, de alguns entendimentos do STF sobre a questão.
Carlos Bastide Horbach é advogado e professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).
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