Têm ganhado muita repercussão na mídia, há algum tempo, notícias acerca do confronto institucional entre o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional.
Apenas para citar caso recente que ainda repercute nos meios de comunicação e nos corredores do Poder, podemos falar da decisão proferida pelo ministro Luiz Fux (cassada pelo Plenário do STF em julgamento ocorrido no último dia 27 de fevereiro) de impedir que o Congresso Nacional delibere acerca do veto parcial da presidente da República ao Projeto de Lei 2.565/2011 (que trata das novas regras de partilha de royalties e participações especiais devidos em virtude da exploração de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos) antes que aprecie, em ordem cronológica da respectiva comunicação ao Congresso Nacional, todos os vetos pendentes com prazo constitucional já expirado.
Um olhar mais atento pode perceber, no entanto, que o Supremo Tribunal Federal enfrenta hoje outros embates, mais silenciosos, mas não menos delicados e importantes. Refiro-me, aqui, à relação entre o STF e os demais órgãos do Poder Judiciário, no exercício da jurisdição.
Essa relação, que às vezes assume forma de contenda, pode ser percebida em diferentes contextos. Aquele que talvez seja o mais visível é o das reclamações constitucionais, nas quais se afirma haver desrespeito (ou risco de desrespeito) à autoridade das determinações emanadas da nossa Suprema Corte. Antes do advento da repercussão geral do recurso extraordinário, esse fenômeno era também verificado pelo expressivo número de recursos providos pelo STF para fazer prevalecer a jurisprudência consolidada da Corte.
Para dar contornos mais concretos a esse fenômeno, poderiam ser citados vários casos. Cabe mencionar, por exemplo, a discussão a respeito da responsabilidade subsidiária da Administração Pública pelo adimplemento das obrigações trabalhistas dos prestadores de serviços terceirizados contratados por licitação. Em novembro de 2010, o STF, no julgamento da ADC 16, declarou a constitucionalidade do artigo 71, § 1º, da Lei nº 8.666, de 1993, segundo o qual “a inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento”.
Em vista desse julgamento, o Tribunal Superior do Trabalho, modificando a redação de sua Súmula nº 331, passou a adotar o entendimento de que “os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora”.
Ficou ainda esclarecido, nessa nova redação, que “a aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada”. Mesmo após esse ajuste, o STF tem considerado, em decisões monocráticas, que a Justiça do Trabalho tem incidido em desrespeito à decisão proferida na ADC 16. O fim desse embate, provavelmente, só virá no julgamento do RE 603.397 (Rel. Min. Rosa Weber), com repercussão geral reconhecida.
É também representativo dessa realidade caso no qual o STF determinou que o STJ se abstivesse de julgar recursos especiais que versassem sobre a legitimidade do Ministério Público para propor determinada espécie de ação civil pública. Nos autos do RE 576.155, recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida que discutia a legitimidade processual do Ministério Público para ajuizar ação civil pública por lesão ao patrimônio público, o STF decidiu, em junho de 2008, determinar o sobrestamento das causas relativas ao Termo de Acordo de Regime Especial (TARE) que estivessem em curso no Superior Tribunal de Justiça (e também no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios) até o deslinde da matéria pela Corte.
Nesse tema, merece ser destacado que o Superior Tribunal de Justiça, que examinava a questão apenas no plano infraconstitucional (estando, em princípio, imune aos efeitos da decisão do STF), tinha entendimento de que o Ministério Público seria parte ilegítima para impugnar o referido TARE.
Muitos outros casos, envolvendo juízes, tribunais ordinários e outros tribunais superiores poderiam ser citados para ilustrar uma guerra surda que se trava nos corredores da Justiça. De um lado, o STF, que, no exercício de sua jurisdição constitucional, tem tomado com frequência decisões sobre questões políticas, morais e jurídicas controvertidas, com eficácia erga omnes e efeito vinculante para o Poder Judiciário (e para a Administração Pública), esvaziando o poder decisório da jurisdição ordinária. De outro, juízes e tribunais ordinários que, premidos por fazer a justiça do caso concreto e buscando atuar no espaço de seu livre convencimento, contrapõem-se a essas decisões da Suprema Corte criando distinções de natureza factual ou jurídica para afastar a sua incidência.
Em vista da força com que o Supremo Tribunal Federal tem exercido sua jurisdição constitucional, é de esperar-se que essa tensão só aumente. Mirando a situação espanhola, Francisco Fernandes Segado observa que a existência de um Tribunal Constitucional cria um problema de articulação entre a jurisdição praticada pela Corte Constitucional e pelos outros Tribunais e juízes, cuja solução não passa por uma lógica cartesiana, que ofereça respostas inequívocas sobre a delimitação da competência das jurisdições. É o que ocorre em sistemas jurídicos em que ambas as jurisdições convirjam na tutela dos direitos constitucionais, como ocorre na Espanha e no Brasil.
Essa tensão entre o STF e os juízes e tribunais, desse modo, precisa ser encarada com certa naturalidade, mas enfrentada com comedimento. Nesse cenário, cumpre ao STF a grandeza de viabilizar uma relação mais harmônica com os juízes e Tribunais, como condição para fortalecer o seu papel institucional. De fato, é importante que o STF perceba que a sua autoridade e o respeito às suas decisões não podem se pautar apenas no poder de revisão das decisões judiciais que estejam em desconformidade com seus precedentes. Até porque nenhum poder tem condições de sustentar sua autoridade apenas pelo uso da força, sendo imprescindível que haja alguma adesão voluntária às suas decisões.
Em função disso, entende-se que a criação de uma melhor sinergia entre a Corte e os demais órgãos do Poder Judiciário passa necessariamente pelo reconhecimento e valorização de certas capacidades da jurisdição ordinária pelo STF.
Nessa medida, defende-se que o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar questões de índole não constitucional (que muitas vezes são ancilares na apreciação de questões constitucionais) leve em consideração as construções já consolidadas no âmbito da jurisdição ordinária, prestando homenagem aos juízes e Tribunais (sobretudo ao entendimento firmado pelos Tribunais Superiores).
A proposição pode ser singelamente posta nos seguintes termos: na apreciação de uma questão constitucional, havendo a necessidade de o Tribunal Constitucional definir o correto sentido da moldura fático-jurídica do que lhe é submetido, o Tribunal Constitucional não deve desprezar o entendimento já firmado pelos juízes e tribunais ordinários.
Essa forma de ver e lidar com as tensões entre jurisdição constitucional (exercida pela Suprema Corte) e a jurisdição ordinária (exercida pelos demais Tribunais e juízes) encontra, na Itália, um exemplo relevante para a jurisdição pátria.
Lá, como aqui, não se olvida a função do Tribunal Constitucional na guarda da Constituição. Igualmente lá, na Itália, como aqui, no Brasil, há a aguda compreensão sobre a importância do princípio do livre convencimento dos juízes ordinários como expressão da imparcialidade do Poder Judiciário. Por isso mesmo, é inevitável que haja situações em que a decisão do Tribunal Constitucional desafie problemas de interpretação em face da jurisprudência e das práticas de aplicação que já se firmaram sobre o texto legal (e vice-versa).
Para lidar com essas tensões, o direito constitucional italiano desenvolveu, como princípio de interpretação constitucional, doutrina que se consagrou denominar como “direito vivente”, hoje incorporada por aquele Tribunal Constitucional, segundo a qual o Tribunal Constitucional deve considerar como um dado do problema constitucional a ser resolvido o significado judicial (sobretudo a fixada pelos Tribunais Superiores) de determinada matéria.
Prestigiar essa forma de ver o direito conduziria o STF — ao abordar temas que exijam definição a respeito do conteúdo de termos como “família”, “prestação de serviços”, “faturamento”, “relação de trabalho”, “evasão de divisas” — a prestar mais atenção ao entendimento sedimentado perante os tribunais de jurisdição ordinária (sobretudo os Superiores), que certamente podem oferecer um bom ponto de partida para a decisão que será tomada no âmbito da jurisdição constitucional, em vista do acúmulo de conhecimento que podem oferecer a respeito do direito civil, processual civil, tributário, penal, do trabalho etc.
Sem que haja qualquer desprestígio à competência do STF no exercício de sua função de garantir a supremacia da Constituição, é importante que a Corte se engaje no esforço de apreender os sentidos e os conceitos desenvolvidos pela jurisdição ordinária na construção de suas decisões, até para que seja reforçada a unidade e a organicidade do sistema jurídico.
Fábio Lima Quintas
Apenas para citar caso recente que ainda repercute nos meios de comunicação e nos corredores do Poder, podemos falar da decisão proferida pelo ministro Luiz Fux (cassada pelo Plenário do STF em julgamento ocorrido no último dia 27 de fevereiro) de impedir que o Congresso Nacional delibere acerca do veto parcial da presidente da República ao Projeto de Lei 2.565/2011 (que trata das novas regras de partilha de royalties e participações especiais devidos em virtude da exploração de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos) antes que aprecie, em ordem cronológica da respectiva comunicação ao Congresso Nacional, todos os vetos pendentes com prazo constitucional já expirado.
Um olhar mais atento pode perceber, no entanto, que o Supremo Tribunal Federal enfrenta hoje outros embates, mais silenciosos, mas não menos delicados e importantes. Refiro-me, aqui, à relação entre o STF e os demais órgãos do Poder Judiciário, no exercício da jurisdição.
Essa relação, que às vezes assume forma de contenda, pode ser percebida em diferentes contextos. Aquele que talvez seja o mais visível é o das reclamações constitucionais, nas quais se afirma haver desrespeito (ou risco de desrespeito) à autoridade das determinações emanadas da nossa Suprema Corte. Antes do advento da repercussão geral do recurso extraordinário, esse fenômeno era também verificado pelo expressivo número de recursos providos pelo STF para fazer prevalecer a jurisprudência consolidada da Corte.
Para dar contornos mais concretos a esse fenômeno, poderiam ser citados vários casos. Cabe mencionar, por exemplo, a discussão a respeito da responsabilidade subsidiária da Administração Pública pelo adimplemento das obrigações trabalhistas dos prestadores de serviços terceirizados contratados por licitação. Em novembro de 2010, o STF, no julgamento da ADC 16, declarou a constitucionalidade do artigo 71, § 1º, da Lei nº 8.666, de 1993, segundo o qual “a inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento”.
Em vista desse julgamento, o Tribunal Superior do Trabalho, modificando a redação de sua Súmula nº 331, passou a adotar o entendimento de que “os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora”.
Ficou ainda esclarecido, nessa nova redação, que “a aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada”. Mesmo após esse ajuste, o STF tem considerado, em decisões monocráticas, que a Justiça do Trabalho tem incidido em desrespeito à decisão proferida na ADC 16. O fim desse embate, provavelmente, só virá no julgamento do RE 603.397 (Rel. Min. Rosa Weber), com repercussão geral reconhecida.
É também representativo dessa realidade caso no qual o STF determinou que o STJ se abstivesse de julgar recursos especiais que versassem sobre a legitimidade do Ministério Público para propor determinada espécie de ação civil pública. Nos autos do RE 576.155, recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida que discutia a legitimidade processual do Ministério Público para ajuizar ação civil pública por lesão ao patrimônio público, o STF decidiu, em junho de 2008, determinar o sobrestamento das causas relativas ao Termo de Acordo de Regime Especial (TARE) que estivessem em curso no Superior Tribunal de Justiça (e também no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios) até o deslinde da matéria pela Corte.
Nesse tema, merece ser destacado que o Superior Tribunal de Justiça, que examinava a questão apenas no plano infraconstitucional (estando, em princípio, imune aos efeitos da decisão do STF), tinha entendimento de que o Ministério Público seria parte ilegítima para impugnar o referido TARE.
Muitos outros casos, envolvendo juízes, tribunais ordinários e outros tribunais superiores poderiam ser citados para ilustrar uma guerra surda que se trava nos corredores da Justiça. De um lado, o STF, que, no exercício de sua jurisdição constitucional, tem tomado com frequência decisões sobre questões políticas, morais e jurídicas controvertidas, com eficácia erga omnes e efeito vinculante para o Poder Judiciário (e para a Administração Pública), esvaziando o poder decisório da jurisdição ordinária. De outro, juízes e tribunais ordinários que, premidos por fazer a justiça do caso concreto e buscando atuar no espaço de seu livre convencimento, contrapõem-se a essas decisões da Suprema Corte criando distinções de natureza factual ou jurídica para afastar a sua incidência.
Em vista da força com que o Supremo Tribunal Federal tem exercido sua jurisdição constitucional, é de esperar-se que essa tensão só aumente. Mirando a situação espanhola, Francisco Fernandes Segado observa que a existência de um Tribunal Constitucional cria um problema de articulação entre a jurisdição praticada pela Corte Constitucional e pelos outros Tribunais e juízes, cuja solução não passa por uma lógica cartesiana, que ofereça respostas inequívocas sobre a delimitação da competência das jurisdições. É o que ocorre em sistemas jurídicos em que ambas as jurisdições convirjam na tutela dos direitos constitucionais, como ocorre na Espanha e no Brasil.
Essa tensão entre o STF e os juízes e tribunais, desse modo, precisa ser encarada com certa naturalidade, mas enfrentada com comedimento. Nesse cenário, cumpre ao STF a grandeza de viabilizar uma relação mais harmônica com os juízes e Tribunais, como condição para fortalecer o seu papel institucional. De fato, é importante que o STF perceba que a sua autoridade e o respeito às suas decisões não podem se pautar apenas no poder de revisão das decisões judiciais que estejam em desconformidade com seus precedentes. Até porque nenhum poder tem condições de sustentar sua autoridade apenas pelo uso da força, sendo imprescindível que haja alguma adesão voluntária às suas decisões.
Em função disso, entende-se que a criação de uma melhor sinergia entre a Corte e os demais órgãos do Poder Judiciário passa necessariamente pelo reconhecimento e valorização de certas capacidades da jurisdição ordinária pelo STF.
Nessa medida, defende-se que o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar questões de índole não constitucional (que muitas vezes são ancilares na apreciação de questões constitucionais) leve em consideração as construções já consolidadas no âmbito da jurisdição ordinária, prestando homenagem aos juízes e Tribunais (sobretudo ao entendimento firmado pelos Tribunais Superiores).
A proposição pode ser singelamente posta nos seguintes termos: na apreciação de uma questão constitucional, havendo a necessidade de o Tribunal Constitucional definir o correto sentido da moldura fático-jurídica do que lhe é submetido, o Tribunal Constitucional não deve desprezar o entendimento já firmado pelos juízes e tribunais ordinários.
Essa forma de ver e lidar com as tensões entre jurisdição constitucional (exercida pela Suprema Corte) e a jurisdição ordinária (exercida pelos demais Tribunais e juízes) encontra, na Itália, um exemplo relevante para a jurisdição pátria.
Lá, como aqui, não se olvida a função do Tribunal Constitucional na guarda da Constituição. Igualmente lá, na Itália, como aqui, no Brasil, há a aguda compreensão sobre a importância do princípio do livre convencimento dos juízes ordinários como expressão da imparcialidade do Poder Judiciário. Por isso mesmo, é inevitável que haja situações em que a decisão do Tribunal Constitucional desafie problemas de interpretação em face da jurisprudência e das práticas de aplicação que já se firmaram sobre o texto legal (e vice-versa).
Para lidar com essas tensões, o direito constitucional italiano desenvolveu, como princípio de interpretação constitucional, doutrina que se consagrou denominar como “direito vivente”, hoje incorporada por aquele Tribunal Constitucional, segundo a qual o Tribunal Constitucional deve considerar como um dado do problema constitucional a ser resolvido o significado judicial (sobretudo a fixada pelos Tribunais Superiores) de determinada matéria.
Prestigiar essa forma de ver o direito conduziria o STF — ao abordar temas que exijam definição a respeito do conteúdo de termos como “família”, “prestação de serviços”, “faturamento”, “relação de trabalho”, “evasão de divisas” — a prestar mais atenção ao entendimento sedimentado perante os tribunais de jurisdição ordinária (sobretudo os Superiores), que certamente podem oferecer um bom ponto de partida para a decisão que será tomada no âmbito da jurisdição constitucional, em vista do acúmulo de conhecimento que podem oferecer a respeito do direito civil, processual civil, tributário, penal, do trabalho etc.
Sem que haja qualquer desprestígio à competência do STF no exercício de sua função de garantir a supremacia da Constituição, é importante que a Corte se engaje no esforço de apreender os sentidos e os conceitos desenvolvidos pela jurisdição ordinária na construção de suas decisões, até para que seja reforçada a unidade e a organicidade do sistema jurídico.
Fábio Lima Quintas
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