Numa democracia constitucional, a exemplo do que ocorre no Brasil, cabe ao legislador, em primeiro lugar, a tarefa de concretizar a Constituição. Com a edição de normas infraconstitucionais, o Poder Legislativo é instado, em muitas situações, tanto a conformar como a restringir o âmbito de proteção das normas de direito fundamental. E, de fato, todas as vezes que o Poder Constituinte, mediante reserva de lei, autoriza a intervenção de algum órgão ou poder estatal para conformar ou mesmo limitar um direito fundamental, em primeiro lugar e precipuamente, o que se faz é atribuir essa tarefa ao Poder Legislativo. Vejamos mais de perto essa específica função do legislador.
Não obstante ninguém mais ouse, seriamente, negar o fato de que todas as normas constitucionais possuem eficácia, nem todas as normas com hierarquia constitucional, especialmente os direitos fundamentais, apresentam — de pronto e por si mesmas — os elementos normativos essenciais à sua completa eficácia e imediata aplicação. Por outro lado, da natureza mesma de muitas normas constitucionais — quando veiculadas na forma de princípios — resulta o fato de que, não raramente, essas normas entram em colisão umas com as outras e, por isso mesmo, demandam alguma forma de limitação e restrição ao seu âmbito de proteção. Assim, enquanto algumas normas constitucionais carecem — para a sua perfeita aplicação — de normas conformadoras, outras exigem — para a solução de colisão com outras normas também constitucionais — a edição de normas de restrição.
Ao estudarem-se as normas de direitos fundamentais, como bem adverte Gomes Canotilho, pode-se chegar à errônea conclusão de que todas as normas de direito ordinário referidas aos direitos fundamentais têm como escopo restringi-los. A realidade, contudo, conclui Canotilho, é completamente diferente: “muitas normas legais pretendem completar, complementar, densificar, concretizar, o conteúdo fragmentário, vago aberto, abstrato ou incompleto, dos preceitos constitucionais garantidores de direitos fundamentais”, cumprindo, pois, verdadeira função conformadora. Assim, segundo a precisa lição do ilustrado professor de Coimbra, são “normas legais restritivas aquelas que limitam ou restringem posições que, prima facie, se incluem no domínio de protecção dos direitos fundamentais. As normas legais conformadoras completam, precisam, concretizam ou definem o conteúdo de protecção de um direito fundamental”.
Apenas para ficar em exemplos bastante conhecidos, o conjunto de normas de trânsito, prescritas na Lei 9.503/97, que conformam o Código de Trânsito Brasileiro, nada mais são do que restrições impostas à liberdade fundamental de locomoção, com a finalidade de proteger um sem-número de outros direitos fundamentais — como a vida, a integridade física e mesmo a liberdade de locomoção de outras pessoas — que, entretanto, no dia a dia da vida em sociedade, entram inevitavelmente em colisão a liberdade de locomoção. Por sua vez, boa parte das normas do Código Civil que disciplinam o direito de propriedade nada mais são do que normas conformadoras desse direito fundamental.
Portanto, como se percebe, diversamente do que ocorre no caso das normas restritivas, na conformação, não se pretende afetar, reduzir, condicionar, diminuir ou limitar um direito fundamental, pois, no caso de conformação, o seu âmbito de proteção (Schutzbereich) permanece intacto. Ao conformar um direito fundamental, não se busca coibir a conduta, ou condutas, que são abrangidas por seu âmbito de proteção. Pelo contrário, o que se visa é tornar diretamente explícita, com exata delimitação, a possibilidade e a abrangência de seu exercício.
Não é difícil de perceber que alguns direitos fundamentais, para o seu mais completo e adequado exercício e concretização (pense-se nos direitos de greve ou de propriedade, ou ainda na educação e na saúde), fazem pressupor a intervenção conformadora do Estado, razão pela qual se pode dizer que, nesses casos, faria parte desses direitos também uma garantia de organização ou de instituição conformadora (Einrichtungsgarantie). Em termos mais incisivos, já advertira K. Hesse que, “para se tornarem eficazes, a maioria dos direitos fundamentais necessita da conformação jurídica das relações e âmbitos da vida que eles devem garantir”. Naturalmente, essa organização é, em primeiro plano, tarefa do legislador.
Que o legislador possa conformar o âmbito normativo de um direito fundamental não significa, obviamente, que ele possa dispor desse direito de hierarquia constitucional. Aqui se percebe, pois, um grave problema da conformação dos direitos fundamentais: de um lado, ninguém o discute, os direitos fundamentais existem independentemente de sua conformação jurídica pelo legislador ordinário e, mais do que isso, na verdade, os direitos fundamentais vinculam e obrigam toda a ordem jurídica estatal, assim como todos os atores que participam de sua conformação; entretanto, de outro lado, o completo ou, pelo menos, o mais adequado exercício de um direito fundamental pelos indivíduos pode pressupor a intervenção institucionalizadora ou organizadora do Estado e, mais especificamente, do Poder Legislativo.
Em muitos casos, percebe-se facilmente, esse problema agrava-se quando a Constituição não distingue entre conformação e limitação de direitos fundamentais. Deve-se, pois, quando se estuda a relação do direito ordinário com os direitos fundamentais, buscar evitar indesejáveis confusões e para tanto, valendo-se do auxílio da teoria constitucional, destacar as normas legais restritivas das normas legais conformadoras.
Como nem sempre será tarefa fácil destacar uma de outra realidade normativa, é recomendável que mesmo normas legais meramente conformadoras possam, sobretudo quando duvidoso seu enquadramento, demonstrar que se submetem às assim chamadas restrições de restrições (Schranken-Schranken), que são os limites impostos às normas legais restritivas de direitos fundamentais, entre os quais encontra posição destacada o princípio da proporcionalidade, bem como as suas três partes constitutivas (adequação, necessidade e proporcionalidade em estrito sentido).
Néviton Guedes
Não obstante ninguém mais ouse, seriamente, negar o fato de que todas as normas constitucionais possuem eficácia, nem todas as normas com hierarquia constitucional, especialmente os direitos fundamentais, apresentam — de pronto e por si mesmas — os elementos normativos essenciais à sua completa eficácia e imediata aplicação. Por outro lado, da natureza mesma de muitas normas constitucionais — quando veiculadas na forma de princípios — resulta o fato de que, não raramente, essas normas entram em colisão umas com as outras e, por isso mesmo, demandam alguma forma de limitação e restrição ao seu âmbito de proteção. Assim, enquanto algumas normas constitucionais carecem — para a sua perfeita aplicação — de normas conformadoras, outras exigem — para a solução de colisão com outras normas também constitucionais — a edição de normas de restrição.
Ao estudarem-se as normas de direitos fundamentais, como bem adverte Gomes Canotilho, pode-se chegar à errônea conclusão de que todas as normas de direito ordinário referidas aos direitos fundamentais têm como escopo restringi-los. A realidade, contudo, conclui Canotilho, é completamente diferente: “muitas normas legais pretendem completar, complementar, densificar, concretizar, o conteúdo fragmentário, vago aberto, abstrato ou incompleto, dos preceitos constitucionais garantidores de direitos fundamentais”, cumprindo, pois, verdadeira função conformadora. Assim, segundo a precisa lição do ilustrado professor de Coimbra, são “normas legais restritivas aquelas que limitam ou restringem posições que, prima facie, se incluem no domínio de protecção dos direitos fundamentais. As normas legais conformadoras completam, precisam, concretizam ou definem o conteúdo de protecção de um direito fundamental”.
Apenas para ficar em exemplos bastante conhecidos, o conjunto de normas de trânsito, prescritas na Lei 9.503/97, que conformam o Código de Trânsito Brasileiro, nada mais são do que restrições impostas à liberdade fundamental de locomoção, com a finalidade de proteger um sem-número de outros direitos fundamentais — como a vida, a integridade física e mesmo a liberdade de locomoção de outras pessoas — que, entretanto, no dia a dia da vida em sociedade, entram inevitavelmente em colisão a liberdade de locomoção. Por sua vez, boa parte das normas do Código Civil que disciplinam o direito de propriedade nada mais são do que normas conformadoras desse direito fundamental.
Portanto, como se percebe, diversamente do que ocorre no caso das normas restritivas, na conformação, não se pretende afetar, reduzir, condicionar, diminuir ou limitar um direito fundamental, pois, no caso de conformação, o seu âmbito de proteção (Schutzbereich) permanece intacto. Ao conformar um direito fundamental, não se busca coibir a conduta, ou condutas, que são abrangidas por seu âmbito de proteção. Pelo contrário, o que se visa é tornar diretamente explícita, com exata delimitação, a possibilidade e a abrangência de seu exercício.
Não é difícil de perceber que alguns direitos fundamentais, para o seu mais completo e adequado exercício e concretização (pense-se nos direitos de greve ou de propriedade, ou ainda na educação e na saúde), fazem pressupor a intervenção conformadora do Estado, razão pela qual se pode dizer que, nesses casos, faria parte desses direitos também uma garantia de organização ou de instituição conformadora (Einrichtungsgarantie). Em termos mais incisivos, já advertira K. Hesse que, “para se tornarem eficazes, a maioria dos direitos fundamentais necessita da conformação jurídica das relações e âmbitos da vida que eles devem garantir”. Naturalmente, essa organização é, em primeiro plano, tarefa do legislador.
Que o legislador possa conformar o âmbito normativo de um direito fundamental não significa, obviamente, que ele possa dispor desse direito de hierarquia constitucional. Aqui se percebe, pois, um grave problema da conformação dos direitos fundamentais: de um lado, ninguém o discute, os direitos fundamentais existem independentemente de sua conformação jurídica pelo legislador ordinário e, mais do que isso, na verdade, os direitos fundamentais vinculam e obrigam toda a ordem jurídica estatal, assim como todos os atores que participam de sua conformação; entretanto, de outro lado, o completo ou, pelo menos, o mais adequado exercício de um direito fundamental pelos indivíduos pode pressupor a intervenção institucionalizadora ou organizadora do Estado e, mais especificamente, do Poder Legislativo.
Em muitos casos, percebe-se facilmente, esse problema agrava-se quando a Constituição não distingue entre conformação e limitação de direitos fundamentais. Deve-se, pois, quando se estuda a relação do direito ordinário com os direitos fundamentais, buscar evitar indesejáveis confusões e para tanto, valendo-se do auxílio da teoria constitucional, destacar as normas legais restritivas das normas legais conformadoras.
Como nem sempre será tarefa fácil destacar uma de outra realidade normativa, é recomendável que mesmo normas legais meramente conformadoras possam, sobretudo quando duvidoso seu enquadramento, demonstrar que se submetem às assim chamadas restrições de restrições (Schranken-Schranken), que são os limites impostos às normas legais restritivas de direitos fundamentais, entre os quais encontra posição destacada o princípio da proporcionalidade, bem como as suas três partes constitutivas (adequação, necessidade e proporcionalidade em estrito sentido).
Néviton Guedes
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