Com a indicação de Luís Roberto Barroso para ocupar uma vaga no STF, a presidente da República leva para a nossa mais alta Corte uma geração de juristas progressistas que, rompendo com antigo hábito de nossa cultura jurídica, não se seduziram pelo poder e, guiados por um discurso de tolerância e qualificação intelectual, ousaram pensar um Direito Constitucional que colocava o ser humano no centro de suas preocupações.
Capitanearam essa belíssima história, inspirando a minha e outras gerações, tanto o professor Barroso como o professor Clèmerson Merlin Clève, para referir as suas maiores estrelas. De fato, uma geração que provou do brilho e da competência sem jamais perder a generosidade.
Se já não fora bastante, com um estilo insuperável, Luís Roberto Barroso transportará para o Judiciário um algo mais de elegância e sensibilidade. O dia é, portanto, da mais profunda alegria e das mais justificadas esperanças. Como o mote central deste artigo é precisamente a argumentação e a tolerância na ciência jurídica, presto com ele uma singela homenagem a esse grande jurista, que, enfim, teve a sua hora.
I. O Direito e a exigência de racionalidade
Os juristas têm acalentado a expectativa absolutamente humana de poderem deduzir racionalmente a Justiça do seu próprio ofício. Decidir racionalmente é, com efeito, um dos propósitos centrais da prática jurídica. Como acredita Martin Kriele, a necessidade de considerações jurídicas racionais domina o direito completamente.
Mesmo quando a sociedade se desencantou com a antiga promessa de uma Justiça alcançada diretamente de alguma fonte divina, ou se frustrou com a ideia de um “Direito justo” oferecido por alguma espécie de legislador sobre-humanamente racional, os juristas não se deram por vencidos.
Passaram, então, a propagar a ideia de que, já agora no universo do possível, uma medida de justiça tangível estaria à disposição dos homens por intermédio de uma ciência jurídica que, procedendo por meio de raciocínios estritamente lógico-indutivos, facultaria às autoridades encarregadas de aplicar o Direito a capacidade de concretizar, sem desvio de entendimento, os conteúdos abstratamente dispostos nos textos legais.
Para tanto, acreditou-se num paradigma de ciência jurídica que, por sua vez, teve como principal matriz uma concepção de ciência e de raciocínio, oriunda de René Descartes, que influenciou de maneira decisiva, como se sabe, a ciência e a filosofia ocidentais dos três últimos séculos. A ciência, através da lógica formal, tomou o lugar da divindade, pretendendo-se absoluta.
Não é difícil concluir que muitas das dificuldades que a ciência jurídica tem hoje que suportar encontram ali sua mais remota origem. Como demonstra Chaïm Perelman, foi Decartes que, no seu Discours de la Méthode, fazendo da evidência a marca da razão, não admitiu considerar como racionais senão as demonstrações que, a partir de ideias claras e bem definidas, graças a provas apodícticas, propagavam a evidência dos axiomasa todos os teoremas.
O raciocínio more geometrico foi o modelo que se apresentou aos pensadores desejosos de construir um sistema de pensamento que pudesse atingir a dignidade de uma ciência. Essa forma de conceber a ciência, depois transportada para o raciocínio jurídico, mostra-se, desde a origem, absolutamente tirânica, pois traz em seus próprios fundamentos a afirmação de uma absoluta impossibilidade de desacordos no âmbito do discurso científico e, por consequência, em sua versão mais extremada, nega a possibilidade de discussão ou argumentação retórica (destinada ao convencimento) entre sujeitos racionais.
Conforme o que então se acreditava, uma ciência racional não podia contentar-se com opiniões mais ou menos verossímeis, pelo contrário, era tarefa do teórico e do cientista alcançar um sistema de proposições necessárias que seria capaz de se impor a todos os seres racionais como acordo inevitável. Para um raciocínio assim concebido, não é difícil compreender que “o desacordo” seria mesmo um sinal de erro e um mal a ser evitado.
Assim, não era de se admirar que segundo Descartes, todas as vezes que dois homens formulam sobre a mesma coisa um juízo contrário, é certo (...) que um dos dois se engana. E se a conclusão já não fosse por si mesma bastante surpreendente, Descartes ainda fez questão de acrescentar: Mais do que isso, nenhum deles possui a verdade; pois se um deles tivesse da verdade uma visão clara e nítida, ele poderia expor a seu adversário de tal sorte que ela acabaria por forçar a sua convicção.
A intolerância com opiniões divergentes encontrava aí o seu suporte lógico. Para o Direito ou para a sociedade democrática, as consequências de tal raciocínio não poderiam ser mais deletérias. Se para os seguidores das ciências experimentais e indutivas, o que conta no seu ofício é alcançar a verdade, ou seja, a conformidade das proposições com os fatos, no Direito, ao lado da busca da verdade, pontificam princípios de tolerância, possibilidade de divergência e necessidade de convencimento.
Enquanto nas ciências naturais impõe-se a aceitação de conclusões lógicas inafastáveis, no Direito, para além de uma verdade sem contrastes, exige-se a prevalência do melhor argumento. Quem argumenta não impõe nem “se” impõe, convence.
O lógico, influenciado pelo ideal cartesiano, só aceitaria como idôneas as provas que Aristóteles qualificava como analíticas, raramente investigando os meios de prova utilizados nas ciências humanas. E essa tendência apenas iria, com o tempo, intensificar-se, quando há mais de um século, sob a influência dos lógicos-matemáticos, a lógica torna-se limitada à lógica formal, ou seja, ao estudo dos meios de prova utilizados nas ciências matemáticas.
Não obstante o que hoje reconhecemos como diferenças essenciais entre o pensamento jurídico e as ciências naturais, a conclusão que muitos acabariam por retirar da incrível influência do modo cartesiano de raciocinar foi a de que ou o pensador das ciências humanas — e do Direito em especial — se submetia ao paradigma prevalecente, ou, então, nada mais lhe restaria do que entregar-se às forças irracionais, ao sabor dos próprios instintos humanos, à mera sugestão, ou à violência.
Segundo esse modo de ver, não se podendo desconsiderar os formidáveis avanços promovidos pela lógica formal, fora desse modelo, nos domínios que escapam ao cálculo e onde nem a experiência nem a dedução lógica podem nos fornecer a solução de um problema, a razão torna-se totalmente incompetente.
II. Chaïm Perelman e a lógica dialética
Como se sabe, boa parte da produção teórica de Chaïm Perelman destinou-se precisamente a confrontar essa forma de pensar. Por isso, a idéia de desacordo converter-se-ia, então, em um dos temas prediletos e mais incômodos para Perelman. A recusa cartesiana do desacordo, fundada na crença de que a verdade, sempre certa e clara, não se abriria à possibilidade de qualquer desacordo entre seres racionais foi o que justificou, segundo o próprio Perelman, que ele se tornasse um anticartesiano. Portanto, com razão tem-se afirmado que o “desacordo sobre o desacordo” está na base fundamental da diferença entre Descartes e Perelman.
De fato, Perelman se propôs a tarefa de demonstrar através de uma teoria da argumentação que, ao lado da verificação empírica e da dedução lógica, existe uma série de outras possibilidades de argumentar e fundamentar racionalmente. Consoante suas próprias palavras: “Parece-nos ao contrário que esta é uma limitação indevida e perfeitamente injustificável do domínio onde intervém nossa faculdade de raciocinar e de provar”.
A diferença entre um pensamento voltado à teoria e um outro voltado à praxis, isto é, entre uma ciência dirigida ao conhecimento e uma reflexão voltada a uma ordem do agir e do atuar humano era já conhecida na Antiguidade. Além disso, como demonstra Zippelius, contra um monismo naturalista, que queria fazer das relações humanas mero objeto de consideração das ciências naturais também já se voltara Samuel Pufendorf, para quem a ação humana não é mero processo causal, já que os homens têm a capacidade de conduzir-se em conformidade com decisões voluntárias numa ou noutra direção; e nessas decisões eles poderiam ser motivados por obrigações, ou seja, por deveres. Aliás, não foram poucos os juristas que se puseram a tarefa de distinguir entre “o conceito de causalidade” — próprio das ciências naturais — e de “imputação” — próprio do Direito. Por isso que não se poderia confundir as ciências do “ser” e as ciências do “dever-ser”.
Para demonstrar seu ponto de vista, Perelman iria recuperar historicamente, com interesse lógico-sistemático, o ensinamento dos antigos (principalmente, Aristóteles, Cícero e Quintiliano). O autor já fizera notar que Aristóteles além das provas analíticas também estudara as provas dialéticas, ou seja, além de juízos de necessidade o grande sábio grego se interessara também pelos juízos de verossimilhança. Enquanto o raciocínio por relações de necessidade e causalidade, que levam à evidência, serve à demonstração, o raciocínio e a argumentação por verossimilhança servem à deliberação.
Perelman não buscava com isso substituir ou eliminar a lógica formal ou o raciocínio por evidência ou as deduções necessárias. Como avalia R. Alexy, com seu trabalho, o filósofo e jurista polonês, radicado em Bruxelas, buscava apenas completá-los. Como afirmara o próprio autor, a nova retórica por ele elaborada não busca afastar ou substituir a lógica formal, diversamente, visa somar a ela um campo de argumentação que, até então, tinha escapado aos esforços de racionalização, nomeadamente, a argumentação prática.
De um jeito ou de outro, hoje parece indiscutível que o trabalho de Chaïm Perelman recolocou a argumentação jurídica no centro do espaço em que as decisões jurídicas são tomadas. A partir de seus estudos, tornaram-se clássicas algumas proposições retóricas.
Quem é portador de um discurso que pretende convencer “o outro”, seja em concreto ou em abstrato (o auditório universal), está ao mesmo tempo, por óbvio, dirigindo-se a si próprio, com o que deve excluir dos argumentos que submete “à sua audiência” aquelas afirmações nas quais não acredita e as propostas que ele próprio não aceita. Assim, os seus argumentos devem se mover sob as condições prévias de sinceridade e seriedade. Nota-se aqui, como em tantos outros pontos, uma clara aproximação das teorias de Perelman com as de Habermas, ou de Alexy.
Por outro lado, quem deseja uma anuência universal precisa buscar não ser partidário (fala-se aqui do cientista do Direito, não do advogado), pois o orador partidário, desde que seja sincero, muito provavelmente apenas alcançará convencer o grupo no qual ele próprio está inserido. Assim, para ser e demonstrar-se imparcial, aquele que busca o acordo do “auditório universal” deve admitir — para a discussão — quaisquer espécies de argumentos contrários, tornando-se válida a regra audiatur et altera pars. Também aqui vemos vínculos de semelhança entre Perelman, Habermas e Alexy.
No que respeita ao ponto de partida de toda argumentação, Perelman admite que não existe distinção entre a argumentação desenvolvida diante de uma audiência universal e aquela outra que se realiza perante um auditório particular. Como toda argumentação está vinculada a atitudes e convicções, o orador deve sustentar-se, ao início, naquilo que os ouvintes admitem em primeiro lugar. Isso apenas significa dizer, em outros termos, como também revelado por Habermas e por muitos outros, que toda argumentação desenvolve-se num contexto histórico e social onde se situam os sujeitos do discurso.
Obviamente, no ponto de vista aqui revelado não se veicula a ingenuidade de que alguém possa pretender, em matérias tão controvertidas como aquelas que se mostram quase sempre presentes em conflitos constitucionais, a exemplo da colisão de direitos fundamentais, normalmente configuradoras de casos difíceis, alcançar sempre, ou sequer frequentemente, acordos universais.
O que se tem, no entanto, é a certeza de que, nesses hard cases, só quem apresente o espírito desarmado, com disposição honesta de ouvir os argumentos contrários bem como a convicção sincera de estar defendendo pontos de vista nos quais realmente acredita, é que terá condições de, ainda que não alcançando um tão pretensioso acordo universal, enxergar um pouco além dos seus próprios interesses, ou dos interesses do grupo a que pertença.
Para concluir, como exemplo de superação de visões partidárias ou limitadas, tem-se tornado célebre, nos Estados Unidos, o desapontamento que alguns juízes da Suprema Corte têm imposto aos presidentes conservadores que promoveram as suas indicações ao Senado, precisamente, pelo fato de, uma vez tomando assento naquele Tribunal e abrindo-se para argumentos opostos às suas próprias convicções iniciais, esses magistrados acabam por chegar a conclusões inicialmente por eles próprios recusadas.
O presidente Eisenhower, por exemplo, indicou Earl Warren como Chief Justice da Suprema Corte, precisamente, por sua reputação conservadora de militante do movimento lei-e-ordem no governo na Califórnia. Tempos mais tarde, tendo a Corte Warren se caracterizado como uma das mais liberais da história norte-americana, Eisenhower reclamava ter sido essa indicação um de seus maiores erros como presidente da República. Também, como se sabe, a posição mais favorável ao aborto em Roe v. Wade só foi possível por conta da abertura de juízes conservadores da Suprema Corte.
Além disso, tanto o presidente Reagan como o presidente Bush se decepcionaram abertamente com as indicações dos Justices O’Connor, Kennedy e Souter, os quais, embora no geral tenham mantido posições que deles eram esperadas, surpreenderam o público ao negar os seus votos para conferir uma orientação mais conservadora em casos fundamentais.
Sabe-se, por exemplo, que, promovendo a indicação desses juízes, os presidentes republicanos esperavam anular (overrule) a posição jurídica mais favorável ao aborto, concretizada em Roe v. Wade, o que, para desespero da ala conservadora da política norte-americana, sobretudo com a postura mais moderada da Justice Sandra Day O’Connor, não ocorreu.
Tudo resumindo, o conhecimento do direito não se pode reduzir a juízos de causalidade, de certezas absolutas, ou à lógica do necessário ou da única resposta correta. O discurso do direito não desconhece a verdade natural ou a lógica formal, mas é e será sempre mais do que isso. Abre-se com tolerância à possibilidade de desacordos e contenta-se com a verossimilhança.
No âmbito do direito, especialmente nos chamados “casos difíceis”, o conhecimento não se impõe por meio de juízos lógicos irrefragáveis, mas apenas convence pela lógica da argumentação. É certo que se sustenta na verdade dos fatos e não desconsidera a lógica formal, mas tem a obrigação de nem sempre parar por aí.
Acho que posso concluir com a inspiração do grande jurista norte-americano,Oliver Wendell Holmes, em célebre passagem: A vida do Direito não tem sido lógica: tem sido experiência. As necessidades sentidas numa época, a moral predominante e as teorias políticas, intuições de políticas públicas, expressas ou inconscientes, mesmo os preconceitos que os juízes partilham com seus concidadãos, têm contado mais do que o silogismo na determinação das normas pelas quais os homens devem ser governados.
O Direito incorpora a história do desenvolvimento de uma nação através de muitos séculos, e não pode ser tratado como se contivesse apenas axiomas e corolários de um livro de matemática.
Néviton Guedes
Capitanearam essa belíssima história, inspirando a minha e outras gerações, tanto o professor Barroso como o professor Clèmerson Merlin Clève, para referir as suas maiores estrelas. De fato, uma geração que provou do brilho e da competência sem jamais perder a generosidade.
Se já não fora bastante, com um estilo insuperável, Luís Roberto Barroso transportará para o Judiciário um algo mais de elegância e sensibilidade. O dia é, portanto, da mais profunda alegria e das mais justificadas esperanças. Como o mote central deste artigo é precisamente a argumentação e a tolerância na ciência jurídica, presto com ele uma singela homenagem a esse grande jurista, que, enfim, teve a sua hora.
I. O Direito e a exigência de racionalidade
Os juristas têm acalentado a expectativa absolutamente humana de poderem deduzir racionalmente a Justiça do seu próprio ofício. Decidir racionalmente é, com efeito, um dos propósitos centrais da prática jurídica. Como acredita Martin Kriele, a necessidade de considerações jurídicas racionais domina o direito completamente.
Mesmo quando a sociedade se desencantou com a antiga promessa de uma Justiça alcançada diretamente de alguma fonte divina, ou se frustrou com a ideia de um “Direito justo” oferecido por alguma espécie de legislador sobre-humanamente racional, os juristas não se deram por vencidos.
Passaram, então, a propagar a ideia de que, já agora no universo do possível, uma medida de justiça tangível estaria à disposição dos homens por intermédio de uma ciência jurídica que, procedendo por meio de raciocínios estritamente lógico-indutivos, facultaria às autoridades encarregadas de aplicar o Direito a capacidade de concretizar, sem desvio de entendimento, os conteúdos abstratamente dispostos nos textos legais.
Para tanto, acreditou-se num paradigma de ciência jurídica que, por sua vez, teve como principal matriz uma concepção de ciência e de raciocínio, oriunda de René Descartes, que influenciou de maneira decisiva, como se sabe, a ciência e a filosofia ocidentais dos três últimos séculos. A ciência, através da lógica formal, tomou o lugar da divindade, pretendendo-se absoluta.
Não é difícil concluir que muitas das dificuldades que a ciência jurídica tem hoje que suportar encontram ali sua mais remota origem. Como demonstra Chaïm Perelman, foi Decartes que, no seu Discours de la Méthode, fazendo da evidência a marca da razão, não admitiu considerar como racionais senão as demonstrações que, a partir de ideias claras e bem definidas, graças a provas apodícticas, propagavam a evidência dos axiomasa todos os teoremas.
O raciocínio more geometrico foi o modelo que se apresentou aos pensadores desejosos de construir um sistema de pensamento que pudesse atingir a dignidade de uma ciência. Essa forma de conceber a ciência, depois transportada para o raciocínio jurídico, mostra-se, desde a origem, absolutamente tirânica, pois traz em seus próprios fundamentos a afirmação de uma absoluta impossibilidade de desacordos no âmbito do discurso científico e, por consequência, em sua versão mais extremada, nega a possibilidade de discussão ou argumentação retórica (destinada ao convencimento) entre sujeitos racionais.
Conforme o que então se acreditava, uma ciência racional não podia contentar-se com opiniões mais ou menos verossímeis, pelo contrário, era tarefa do teórico e do cientista alcançar um sistema de proposições necessárias que seria capaz de se impor a todos os seres racionais como acordo inevitável. Para um raciocínio assim concebido, não é difícil compreender que “o desacordo” seria mesmo um sinal de erro e um mal a ser evitado.
Assim, não era de se admirar que segundo Descartes, todas as vezes que dois homens formulam sobre a mesma coisa um juízo contrário, é certo (...) que um dos dois se engana. E se a conclusão já não fosse por si mesma bastante surpreendente, Descartes ainda fez questão de acrescentar: Mais do que isso, nenhum deles possui a verdade; pois se um deles tivesse da verdade uma visão clara e nítida, ele poderia expor a seu adversário de tal sorte que ela acabaria por forçar a sua convicção.
A intolerância com opiniões divergentes encontrava aí o seu suporte lógico. Para o Direito ou para a sociedade democrática, as consequências de tal raciocínio não poderiam ser mais deletérias. Se para os seguidores das ciências experimentais e indutivas, o que conta no seu ofício é alcançar a verdade, ou seja, a conformidade das proposições com os fatos, no Direito, ao lado da busca da verdade, pontificam princípios de tolerância, possibilidade de divergência e necessidade de convencimento.
Enquanto nas ciências naturais impõe-se a aceitação de conclusões lógicas inafastáveis, no Direito, para além de uma verdade sem contrastes, exige-se a prevalência do melhor argumento. Quem argumenta não impõe nem “se” impõe, convence.
O lógico, influenciado pelo ideal cartesiano, só aceitaria como idôneas as provas que Aristóteles qualificava como analíticas, raramente investigando os meios de prova utilizados nas ciências humanas. E essa tendência apenas iria, com o tempo, intensificar-se, quando há mais de um século, sob a influência dos lógicos-matemáticos, a lógica torna-se limitada à lógica formal, ou seja, ao estudo dos meios de prova utilizados nas ciências matemáticas.
Não obstante o que hoje reconhecemos como diferenças essenciais entre o pensamento jurídico e as ciências naturais, a conclusão que muitos acabariam por retirar da incrível influência do modo cartesiano de raciocinar foi a de que ou o pensador das ciências humanas — e do Direito em especial — se submetia ao paradigma prevalecente, ou, então, nada mais lhe restaria do que entregar-se às forças irracionais, ao sabor dos próprios instintos humanos, à mera sugestão, ou à violência.
Segundo esse modo de ver, não se podendo desconsiderar os formidáveis avanços promovidos pela lógica formal, fora desse modelo, nos domínios que escapam ao cálculo e onde nem a experiência nem a dedução lógica podem nos fornecer a solução de um problema, a razão torna-se totalmente incompetente.
II. Chaïm Perelman e a lógica dialética
Como se sabe, boa parte da produção teórica de Chaïm Perelman destinou-se precisamente a confrontar essa forma de pensar. Por isso, a idéia de desacordo converter-se-ia, então, em um dos temas prediletos e mais incômodos para Perelman. A recusa cartesiana do desacordo, fundada na crença de que a verdade, sempre certa e clara, não se abriria à possibilidade de qualquer desacordo entre seres racionais foi o que justificou, segundo o próprio Perelman, que ele se tornasse um anticartesiano. Portanto, com razão tem-se afirmado que o “desacordo sobre o desacordo” está na base fundamental da diferença entre Descartes e Perelman.
De fato, Perelman se propôs a tarefa de demonstrar através de uma teoria da argumentação que, ao lado da verificação empírica e da dedução lógica, existe uma série de outras possibilidades de argumentar e fundamentar racionalmente. Consoante suas próprias palavras: “Parece-nos ao contrário que esta é uma limitação indevida e perfeitamente injustificável do domínio onde intervém nossa faculdade de raciocinar e de provar”.
A diferença entre um pensamento voltado à teoria e um outro voltado à praxis, isto é, entre uma ciência dirigida ao conhecimento e uma reflexão voltada a uma ordem do agir e do atuar humano era já conhecida na Antiguidade. Além disso, como demonstra Zippelius, contra um monismo naturalista, que queria fazer das relações humanas mero objeto de consideração das ciências naturais também já se voltara Samuel Pufendorf, para quem a ação humana não é mero processo causal, já que os homens têm a capacidade de conduzir-se em conformidade com decisões voluntárias numa ou noutra direção; e nessas decisões eles poderiam ser motivados por obrigações, ou seja, por deveres. Aliás, não foram poucos os juristas que se puseram a tarefa de distinguir entre “o conceito de causalidade” — próprio das ciências naturais — e de “imputação” — próprio do Direito. Por isso que não se poderia confundir as ciências do “ser” e as ciências do “dever-ser”.
Para demonstrar seu ponto de vista, Perelman iria recuperar historicamente, com interesse lógico-sistemático, o ensinamento dos antigos (principalmente, Aristóteles, Cícero e Quintiliano). O autor já fizera notar que Aristóteles além das provas analíticas também estudara as provas dialéticas, ou seja, além de juízos de necessidade o grande sábio grego se interessara também pelos juízos de verossimilhança. Enquanto o raciocínio por relações de necessidade e causalidade, que levam à evidência, serve à demonstração, o raciocínio e a argumentação por verossimilhança servem à deliberação.
Perelman não buscava com isso substituir ou eliminar a lógica formal ou o raciocínio por evidência ou as deduções necessárias. Como avalia R. Alexy, com seu trabalho, o filósofo e jurista polonês, radicado em Bruxelas, buscava apenas completá-los. Como afirmara o próprio autor, a nova retórica por ele elaborada não busca afastar ou substituir a lógica formal, diversamente, visa somar a ela um campo de argumentação que, até então, tinha escapado aos esforços de racionalização, nomeadamente, a argumentação prática.
De um jeito ou de outro, hoje parece indiscutível que o trabalho de Chaïm Perelman recolocou a argumentação jurídica no centro do espaço em que as decisões jurídicas são tomadas. A partir de seus estudos, tornaram-se clássicas algumas proposições retóricas.
Quem é portador de um discurso que pretende convencer “o outro”, seja em concreto ou em abstrato (o auditório universal), está ao mesmo tempo, por óbvio, dirigindo-se a si próprio, com o que deve excluir dos argumentos que submete “à sua audiência” aquelas afirmações nas quais não acredita e as propostas que ele próprio não aceita. Assim, os seus argumentos devem se mover sob as condições prévias de sinceridade e seriedade. Nota-se aqui, como em tantos outros pontos, uma clara aproximação das teorias de Perelman com as de Habermas, ou de Alexy.
Por outro lado, quem deseja uma anuência universal precisa buscar não ser partidário (fala-se aqui do cientista do Direito, não do advogado), pois o orador partidário, desde que seja sincero, muito provavelmente apenas alcançará convencer o grupo no qual ele próprio está inserido. Assim, para ser e demonstrar-se imparcial, aquele que busca o acordo do “auditório universal” deve admitir — para a discussão — quaisquer espécies de argumentos contrários, tornando-se válida a regra audiatur et altera pars. Também aqui vemos vínculos de semelhança entre Perelman, Habermas e Alexy.
No que respeita ao ponto de partida de toda argumentação, Perelman admite que não existe distinção entre a argumentação desenvolvida diante de uma audiência universal e aquela outra que se realiza perante um auditório particular. Como toda argumentação está vinculada a atitudes e convicções, o orador deve sustentar-se, ao início, naquilo que os ouvintes admitem em primeiro lugar. Isso apenas significa dizer, em outros termos, como também revelado por Habermas e por muitos outros, que toda argumentação desenvolve-se num contexto histórico e social onde se situam os sujeitos do discurso.
Obviamente, no ponto de vista aqui revelado não se veicula a ingenuidade de que alguém possa pretender, em matérias tão controvertidas como aquelas que se mostram quase sempre presentes em conflitos constitucionais, a exemplo da colisão de direitos fundamentais, normalmente configuradoras de casos difíceis, alcançar sempre, ou sequer frequentemente, acordos universais.
O que se tem, no entanto, é a certeza de que, nesses hard cases, só quem apresente o espírito desarmado, com disposição honesta de ouvir os argumentos contrários bem como a convicção sincera de estar defendendo pontos de vista nos quais realmente acredita, é que terá condições de, ainda que não alcançando um tão pretensioso acordo universal, enxergar um pouco além dos seus próprios interesses, ou dos interesses do grupo a que pertença.
Para concluir, como exemplo de superação de visões partidárias ou limitadas, tem-se tornado célebre, nos Estados Unidos, o desapontamento que alguns juízes da Suprema Corte têm imposto aos presidentes conservadores que promoveram as suas indicações ao Senado, precisamente, pelo fato de, uma vez tomando assento naquele Tribunal e abrindo-se para argumentos opostos às suas próprias convicções iniciais, esses magistrados acabam por chegar a conclusões inicialmente por eles próprios recusadas.
O presidente Eisenhower, por exemplo, indicou Earl Warren como Chief Justice da Suprema Corte, precisamente, por sua reputação conservadora de militante do movimento lei-e-ordem no governo na Califórnia. Tempos mais tarde, tendo a Corte Warren se caracterizado como uma das mais liberais da história norte-americana, Eisenhower reclamava ter sido essa indicação um de seus maiores erros como presidente da República. Também, como se sabe, a posição mais favorável ao aborto em Roe v. Wade só foi possível por conta da abertura de juízes conservadores da Suprema Corte.
Além disso, tanto o presidente Reagan como o presidente Bush se decepcionaram abertamente com as indicações dos Justices O’Connor, Kennedy e Souter, os quais, embora no geral tenham mantido posições que deles eram esperadas, surpreenderam o público ao negar os seus votos para conferir uma orientação mais conservadora em casos fundamentais.
Sabe-se, por exemplo, que, promovendo a indicação desses juízes, os presidentes republicanos esperavam anular (overrule) a posição jurídica mais favorável ao aborto, concretizada em Roe v. Wade, o que, para desespero da ala conservadora da política norte-americana, sobretudo com a postura mais moderada da Justice Sandra Day O’Connor, não ocorreu.
Tudo resumindo, o conhecimento do direito não se pode reduzir a juízos de causalidade, de certezas absolutas, ou à lógica do necessário ou da única resposta correta. O discurso do direito não desconhece a verdade natural ou a lógica formal, mas é e será sempre mais do que isso. Abre-se com tolerância à possibilidade de desacordos e contenta-se com a verossimilhança.
No âmbito do direito, especialmente nos chamados “casos difíceis”, o conhecimento não se impõe por meio de juízos lógicos irrefragáveis, mas apenas convence pela lógica da argumentação. É certo que se sustenta na verdade dos fatos e não desconsidera a lógica formal, mas tem a obrigação de nem sempre parar por aí.
Acho que posso concluir com a inspiração do grande jurista norte-americano,Oliver Wendell Holmes, em célebre passagem: A vida do Direito não tem sido lógica: tem sido experiência. As necessidades sentidas numa época, a moral predominante e as teorias políticas, intuições de políticas públicas, expressas ou inconscientes, mesmo os preconceitos que os juízes partilham com seus concidadãos, têm contado mais do que o silogismo na determinação das normas pelas quais os homens devem ser governados.
O Direito incorpora a história do desenvolvimento de uma nação através de muitos séculos, e não pode ser tratado como se contivesse apenas axiomas e corolários de um livro de matemática.
Néviton Guedes
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