"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Brasil-utopia, "mostra tua cara!"

28/ago/2005  

Aborda, de maneira argumentativa e crítica, o posicionamento do Estado brasileiro e de cada cidadão do país frente aos inúmeros dispositivos normativos constantes da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Inegável admitir que seja, em nosso país, do conhecimento de poucos a existência exemplificativa de tantos preceitos normativos, taxados a nível de normas mandamentais fundamentais, que nada mais representam que o plexo de relações sócio-políticas estabelecidas diante do convívio social inerente à existência do direito e da própria sociedade (“Ubi societas, ibi jus”).

A composta e renomada doutrina da seara jurídica do país, sobretudo àquela cuja incumbência delineia-se pelo afincado estudo do Direito Constitucional, não se tergiversa em reiterar a inconteste relevância que tamanhos preceitos mandamentais fundamentais, existentes no seio da sociedade, obtiveram com o fenômeno da positivação (ou positivismo jurídico), cuja representatividade deu-se de forma expressiva na figura do jurista Hans Kelsen, em meados do século XX.

Esta mesma doutrina, hodiernamente, procura esclarecer os pontos mais controversos resultantes desta positivação, atendo-se não somente a precisar qual a real importância que referido fenômeno representa para cada cidadão brasileiro como também de que forma o tipo constitucional pode ser interpretado de maneira a assegurar a este cidadão todos os direitos e garantias que sua inserção na sociedade, por si só, já lhe conferiu.

Preciosismos que, evidentemente, resumem o escopo de se imantar nas mentes dos estudiosos do direito uma posição humanitária e justa ante o plexo de situações fáticas, cada vez mais corriqueiras, que desrespeitam tais mandamentos fundamentais. E mais do que isso: procuram imbuir todos aqueles, que se vinculam ao estudo de questões como estas, de um sentimento de justiça, de igualdade, de complacência para com os mais necessitados ou, pertinentemente, para com aquelas vítimas, cujos direitos e garantias sejam tolhidos.

Mister considerar que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 pôs-se contrariamente ao pensamento externado pelos defensores e prosélitos do Estado Liberal, este abstinado de intervir no rol de direitos e garantias fundamentais do indivíduo. Nossa Carta Magna, ao revés, prezou não somente pela tutela assecuratória de tais direitos, mas também por todos aqueles referentes à esfera meta-individual da própria nação componente do Estado (nos denominados direitos coletivos e difusos), demonstrando, consoante a posição majoritária de séquitos de países em todo o mundo, uma inclinação para constituição de verazes Estados Sociais.

O quão louvabilíssima é a posição do Estado brasileiro em se portar desta maneira e tamanho é o valor da doutrina jurídica que procura atingir, precipuamente, a finalidade de formar e inserir na sociedade “cabeças pensantes” na eminência de valores sociais acossadores da justiça. Será que tais escopos estão sendo refletidos pelo exercício cidadão e consciente destes direitos por aqueles que deles se beneficiam? Será o Estado brasileiro, sob a égide daqueles que o governam, um país ostentador dos meios e fins esmiuçados num código repleto de artigos, no que tange a direitos e garantias essenciais por ele assegurados?

A nefasta realidade de nossa sociedade demonstra que, em muitos casos, isso não se verifica. Talvez, pelo fato de muitos desconhecerem, como já explicitado ao início deste texto, a existência de tantos preceitos que, digamos, lhe conferem dignidade ou perspícuo desenvolvimento. Ou ainda por que muitos não se pautam pelos padrões éticos e morais norteadores do relacionamento social e, por conseguinte, violam a magnitude literal contida e disposta em cada um destes artigos.

Negligência ou prepotência do cidadão ou do Estado? E o que dizer do lamentável fato de se presenciar a violação destes direitos pelas mesmas pessoas que, direta ou indiretamente, impulsionaram a elaboração de tão indispensáveis dispositivos normativos? Sobre esta polêmica recaem inúmeras críticas e profundas discussões e reflexões a despeito da verídica aplicabilidade destes preceitos no âmago da sociedade.

O Estado Social, para esmerar e ostentar seu “status” de interventor e garantidor dos fundamentos relacionados a tais preceitos, criou, com intelegibilidade, o que parte da doutrina entende por remédios constitucionais, como o “habeas corpus”, o “habeas data”, o mandado de segurança, entre outros. Interpôs institutos que mitigaram a marcante disparidade, histórico-social, existente entre homens e mulheres, por meio da igualdade substancial trazida como um desses preceitos.

Desmistificou a polêmica do preconceito, procurando extirpar da sociedade qualquer manifestação ensejadora desta vergonhosa atitude para com um ser humano. Contudo, deixou a cargo de poucos a efetivação destes princípios, número que se torna ainda mais ínfimo quando desses poucos ainda se excluem aqueles, movidos pela ganância e engrandecimento à custa de outros tantos, que pouco fazem para constatação prática do labor corporificado constitucionalmente pelo Poder Constituinte, que valida o exercício deste trabalho legiferante, sobretudo pelo fato de que é do próprio povo que emana este Poder Constituinte (perfilhador da elaboração de proposituras normativas).

Vê-se por terra tanta laboriosidade quando, por exemplo, presenciam-se inescrúpulos de improbidade administrativa cometidos por políticos e governantes, resumidos em desvio de verbas públicas que nada mais se reverterão em dispensável e criminoso enriquecimento pessoal, atingindo diretamente o direito do cidadão a receber tratamento digno do Estado, denegado por diversas vezes, por força deste mesmo Estado, maculado pela corrupção de muitos daqueles que o compõem, alegar incapacidade financeira e administrativa de atender à demanda de tantos necessitados. Mais grave é constatar que o Estado sequer assegura valores basilares para sobrevivência e dignidade do cidadão brasileiro (seriam eles a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, entre outros).

Em verdade, muitos, por condescendência, atribuem à situação sócio-econômica do Brasil, sumariada pela mácula do subdesenvolvimento, as causas das diversas mazelas que vitimam grande parte da população brasileira. Outros procuram imputar ao próprio governo a culpa pela existência de desonhoroso quadro social, quando, na verdade, representam muitos deles, ou várias de suas atitudes cotidianas, o motivo propulsor das atuais trangressões aos preceitos amparados pela Constituição Federal.

A insolência daquele que discrimina seu semelhante por motivo de crença, raça, etnia e ainda se considera vítima deste desrespeito (atribuindo ao Estado a causa de se verificar tal situação), somada ao descaso deste Estado que não prevê e implementa mecanismos profícuos de consecução do bem-estar comum, são fatores que determinam a utopia que estes mesmos preceitos mandamentais fundamentais representam quando cotejados à realidade circundante.

O mero fato de se observar que um indivíduo, por ser negro, está sendo marginalizado da sociedade, como comprova a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) feita pelo IBGE em 2003, em que brancos possuem maior nível de renda e escolaridade que negros e índios, ligado à situação de descomprometimento e descaso do Estado para com questões puramente de interesse ao bem-estar coletivo permitem verificar que, por mais que a Carta Magna de nosso país tenha estabelecido um amplo rol de direitos e garantias fundamentais, hoje, sua aplicabilidade prática está por demais atenuada (as enormes filas enfrentadas pela população para conseguir, mesmo que sem garantia de êxito, uma vaga numa escola pública para os filhos ou uma consulta médica para tratar de enfermo familiar demonstram estas características do Estado brasileiro).

E não será o aumento de dispositivos que asseguram a efetivação destes direitos que alterará este quadro, mas, certamente, a conduta social e estatal que procure imbuir todo cidadão destes valores e o conscientizar de que está amparado legalmente por estes preceitos, fazendo com que, até mesmo por intermédio de um desses direitos arrolado pelo artigo 5º, XIV da Constituição Federal (regulador do direito à informação), o conteúdo dessas disposições possa, nas ilustres palavras do renomado jurista Hans Kelsen, representar aquilo que lhe atribui validade, ou seja, “o mínimo de eficácia social”.

Gutierrez Gomes Corguinha

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