"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sábado, 4 de janeiro de 2014

Financiamento de campanha e o STF como “motor da história”


Em minha última coluna, escrevi sobre algumas inquietações que me perseguiam por conta do início do julgamento da ADI 4.650, questionadora da constitucionalidade de dispositivos da Lei dos Partidos Políticos e da Lei das Eleições que versam sobre a possibilidade de doações realizadas por empresas para o financiamento de campanhas eleitorais. De lá para cá o debate ficou acirrado: ainda na sexta-feira 13, logo após as duas primeiras sessões do julgamento, a OAB Federal emitiu nota para esclarecer aspectos ligados ao pedido formulado na ação; em entrevista à Folha de S. Paulo o ministro Luís Roberto Barroso afirmou que, em casos específicos de inércia do legislativo, o Supremo Tribunal precisa portar-se como o “motor da história”.

Assim, diante do calor que o debate ainda produz e no intuito de esclarecer melhor aquilo que foi por mim tratado anteriormente, continuo a tratar do tema.

Dois aspectos essenciais

No texto anterior, procurei apresentar dois aspectos que me parecem essenciais para a questão que se coloca no julgamento da ADI 4.650. Em primeiro lugar, o elemento propriamente jurídico da questão, que diz respeito aos limites da atuação do poder judiciário no exercício do controle de constitucionalidade e a demarcação do espaço legítimo de atuação discricionária do poder legislativo. Nesse primeiro ponto, temos como pressuposta a seguinte premissa: em um Estado Constitucional Contemporâneo, o espaço de discricionariedade legislativa encontra-se reduzido.

Vale dizer: a liberdade de conformação política de que goza o legislador encontra balizas demarcadas pela Constituição. Todavia, disso não se pode concluir que o legislador não possui nenhuma liberdade de conformação. Uma tal conclusão levaria, inevitavelmente, à total inutilidade do poder legislativo e, ao mesmo tempo, a uma hipertrofia do sistema constitucional, aumentando em níveis indesejáveis aquilo que Gomes Canotilho, a partir de John Elster, chamou de “paradoxo da democracia” e “paradoxo intergeracional”.

Outro aspecto, que me parece igualmente relevante, diz respeito a um problema pragmático (proto-consequencialista, poder-se-ia dizer) presente na pergunta: em caso de decisão procedente exarada pelo Supremo Tribunal Federal na referida ação, o que será colocado no lugar? Quem arcará com os custos das campanhas imediatamente subsequentes à decisão do tribunal? A OAB esclarece que, em seu pedido, não consta aquilo que se nomeou por aí de “incidência imediata”, já para as eleições de 2014. Todavia, afirma, novamente, uma crença que, data máxima venia, reputo idílica, ingênua até: a de que, com a proibição das doações por empresas, haverá uma necessária recomposição dos gastos partidários no sentido de se realizar campanhas mais módicas do ponto de vista financeiro.

Ora, em um país com dimensões continentais, as campanhas são caras por si só. Isso sem falar que, no que tange ao mercado publicitário, reconhecidamente um sugador insaciável de recursos financeiros dos partidos, os valores praticados não serão reduzidos pelo simples fato de ter sido alterado o quadro de doadores.

Assim, o sistema político irá buscar, de alguma forma, meios para ajustar a captação de recursos às necessidades de custeio das campanhas. Em conclusão, de duas, uma: ou haverá uma modificação na parte pública do sistema de financiamento, visando uma mordida maior nos recursos de nosso já combalido Estado Social; ou, por outro lado, teremos um aumento dos mecanismos ilegais de captação.

Sinceramente, não consigo seguir a lógica que preside o silogismo que está por trás do fundamento do pedido formulado pela OAB. Ora, por qual motivo poderíamos concluir que, da retirada das empresas do processo eleitoral, teríamos menor incidência do famigerado “caixa 2”? Essa conclusão tem tanto valor quanto uma nota de R$ 3! Na realidade, ela sofre de uma contradição insolúvel: somente depois que fosse levada a cabo a medida é que seria possível verificar o acerto da afirmação, com a consequente aferição da diminuição ou do aumento do propalado recurso. Afirmar isso a priori é impossível. Trata-se, no máximo, de uma conjectura. E, nesse caso, uma conjectura servir de elemento suficiente para afirmar a inconstitucionalidade de uma opção legislativa é algo que até o mais ardoroso defensor do intervencionismo judicial titubearia em sustentar.

Ausência de parâmetro constitucional para o controle

No que tange ao primeiro aspecto mencionado, qual seja, o da possibilidade da intervenção judicial, há que se ressaltar que não há, no modelo constitucional atual, qualquer possibilidade de admitir-se a existência de um quadro normativo Constitucional claramente divergente daquele que se praticou e que continua vigente na atual legislação.

Reafirmo que não tenho simpatia e não gosto do modelo de financiamento político que permite a participação de empresas no processo eleitoral. Mas, entre afirmar a minha opção de gosto e formar a concepção jurídica adequada de constitucionalidade, há uma evidente diferença.

Lenio Streck e José Levi Mello do Amaral Júnior acertaram ao dizer que, no caso atual, não há parâmetro constitucional que permita o controle pelo judiciário. Há que se reconhecer, aqui, o espaço legítimo de atuação do legislativo. Alguém poderia objetar dizendo que esse argumento representa um conservadorismo que impede o progresso moral de nosso sistema eleitoral.

O legislativo debate a reforma política desde os idos de 1995 e, desde então, apenas micro-reformas foram feitas. Questões substanciais são reiteradamente deixadas de lado, já que aqueles que pretendem reformar o sistema possuem interesse em mantê-lo da forma como está. Vou, então, fazer um exercício de ingenuidade à la Voltaire e apresentar o seguinte contra-argumento: quantas teses, dissertações, livros, audiências publicas foram realizados sobre o tema? Respondo: uma infinidade. Nos limites dessa coluna, remeto a apenas um, que está disponível para consulta no site da Câmara dos Deputados. Qual conclusão é possível extrair da leitura dos vários textos que compõem esse livro que documenta um fórum realizado sobre o tema em 2007? Ei-la: ainda falta um consenso mínimo para que as propaladas “alterações substanciais” possam ser realizadas.

Note-se: a falta de consenso não é só parlamentar. A própria comunidade acadêmica e setores da sociedade civil estão profundamente divididos. A questão específica do financiamento de campanhas é um espinho constante nesse dissenso. Nesse ponto, o problema é ainda mais intrincado porque o debate acaba prejudicado pela cortina de fumaça projetada pela prevalência da paixão e dos interesses partidários em face daquilo que realmente funcionaria melhor dentro do processo eleitoral.

A ausência de parâmetro constitucional fica evidenciada, também, no próprio pronunciamento do ministro Barroso. Ele disse que, a princípio, não considerava inconstitucional a participação de empresas no financiamento de campanhas eleitorais. Todavia, por motivos consequencialistas, principalmente de moralidade do processo eleitoral, entendia haver na hipótese a necessidade de o Supremo agir para desemperrar o motor da história. A afirmação é um evidente sinal de que, no caso, o judiciário deveria fazer um exercício de self-restraint, afastando-se do mérito da questão. Ademais, se, em todos esses anos, não houve a produção de um consenso mínimo em torno do tema, por que razão os 11 ministros do Supremo poderiam ser colocados na condição de porta-vozes da verdade?

De se registrar ainda outro problema jurídico intrincado a tumultuar a questão: se reconhecermos, agora, que o modelo normativo que preside o financiamento partidário desde meados da década de 1990 é inconstitucional, o que faremos para legitimar a constitucionalidade das eleições anteriores que cobrem todo o período de estabilidade institucional vivenciado no regime pós 1988? A OAB responde dizendo que pleiteou a aplicação da modulação de efeitos para restringir a pronúncia da nulidade apenas com efeitos ex nunc, prospectivos. Todavia, como ressalta Lenio Streck, o que faremos com o passado? De fato, no caso, não se trata apenas de um problema de segurança jurídica. O artigo 27 da lei 9.868/1999 coloca como requisitos, para que seja efetuada a propalada modulação, além do quórum qualificado de oito votos a favor da medida, a observância de fatores ligados à segurança jurídica e ao relevante interesse social.

De se consignar, com Georges Abboud, que o manejo de tais conceitos jurídicos não está à disposição da discricionariedade do Supremo Tribunal Federal. É preciso que sejam fundamentados de forma constitucionalmente adequada. Assim, pergunto, não é de relevante interesse social que as eleições estejam amparadas pela Constituição? Como é possível justificar que, somente agora, quase duas décadas depois, é que despartamos do sono dogmático que nos prendia ao passado e descobrimos, lividamente, que a existência da possibilidade de financiamento de partidos políticos por empresas representa uma indevida intervenção do poder econômico no processo democrático?

Democracia, ideologia e o STF como “motor da história”

De tudo que foi dito, há algo que aparece como uma constante: aqueles que defendem a improcedência da ADI 4.650 acabam rotulados como conservadores e portadores de argumentos que emperram o aperfeiçoamento das instituições democráticas e o progresso moral do processo eleitoral.

Confesso que essa é uma pecha que me incomoda. Não porque esteja eu preocupado em pensar de forma “progressista” (seja lá o que isso queira dizer). Incomoda-me o fato de que as considerações que procuramos fazer, seja no campo da política ou no campo do direito, sofram sempre com essa estereotipagem diádica, que opõe direita e esquerda, progressistas e tradicionalistas, inovadores e conservadores. Parece não haver a possibilidade de se analisar de forma autônoma e independente as questões que são postas. Será que, em um contexto político-jurídico, não é possível afirmar posições independentes? Será que, em tais casos, só é possível “pensar com a caixa”, vale dizer, restringidos pela cartilha fornecida por alguma das oposições que alimentam a clássica díade utilizada para descrever as posturas políticas?

Desde a sociologia do conhecimento, a partir dos trabalhos de Karl Mannheim, o pensamento dito “conservador” é associado à ideologia, ao passo que o pensamento “progressista” é associado à utopia. A ideologia é retratada como uma trama que se encontra subjacente aos argumentos que fundamentam a ação dos atores sociais.

Nesse contexto, a dominação social seria desnudada na medida em que fosse descoberta a motivação ideológica que sustenta os argumentos que a justificam. Aqui, a verdade não seria captada pela observação, pelo raciocínio lógico e pela argumentação, mas pela descoberta das causas secretas, no mais das vezes desconhecidas pelo pensador, que determinam suas conclusões. Não haveria, portanto, liberdade de pensamento. Haveria apenas pensamento condicionado pela ideologia. Apenas alguns poucos privilegiados, versados na análise da reificação ideológica, é que conseguiriam libertar o pensamento de seus grilhões conservadores e tradicionalistas e instituir a marcha do progresso. Assim, a forma mais fácil de rebaixar um pensamento é, desde logo, reduzi-lo à ideologia. E, como bem ressalta Giovanni Sartori, a acusação de ideológico a uma determinada posição política representa um álibi de que se vale o interlocutor para rejeitar, de plano, os argumentos apresentados, sem que seja empreendida por ele a tarefa de justificar os seus próprios argumentos.

O grande paradoxo é que, os caçadores de ideologias não deixam de estar presos a ela. Na verdade, em uma sociedade pluralista, as ideologias são o resultado da confluência das mais diversas visões de mundo concorrentes. A ambivalência mais trágica que a persegue, como afirma Stein, é que a ideologia (que nasce justamente do pluralismo e da relatividade) acaba por negá-los porque, ao fim e ao cabo, sempre se pretende hegemônica. Assim, não é o conservadorismo que define a qualidade do ideológico, mas, sim, a pretensão de hegemonia que se apresenta incutida no argumento. Vale dizer: o seu absolutismo.

Não deixa de ser curioso que, na contemporaneidade, esses conceitos só se apresentam assim, de forma muito clara, no contexto de uma abstração barata e sem sentido. De se notar, por interessantíssimo, que, quando caiu o muro de Berlin, pondo fim à experiência do socialismo soviético, um autor tido por “conservador” escreveu um livro para tratar, a partir da filosofia da história de Hegel interpretada via Alexandre Kojève, do “fim da história”. A expressão fim aqui aponta para o caráter teleológico (finalístico) que essas concepções afirmam ser inerentes ao processo histórico. Todo filósofo da história, ao contrário do historiador, permite-se atuar como uma espécie de profeta, como que a desvendar qual o nosso melhor futuro, segundo a finalidade instituída.

É interessante que a expressão “motor da história”, ou a energia que move a história (o que dá no mesmo), sejam expressões caras à filosofia da história. A linguagem do ministro aproxima-se, assim, daquela utilizada pelos filósofos-profetas. Com base nessa filosofia da história, o autor a que me referi afirmou, naquele contexto de desfazimento do socialismo soviético, que a história tinha encontrado o seu fim e que a melhor forma de organização política que a humanidade produziu era a democracia liberal-capitalista. A tese teve inúmeros detratores. Inclusive este humilde escriba. Mas, não deixa de ser instigante o fato de que o mesmo tom profético presente na enunciação daquele que afirmou o fim da história esteja também presente na fala do ministro Barroso, o representante privilegiado do “progressismo jurídico”. O autor, conservador, que tratou do fim da história, é Francis Fukuyama.

Rafael Tomaz de Oliveira

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