"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sábado, 15 de fevereiro de 2014

A democracia na Copa das Copas


“Precisamos de um legado simbólico, de atitudes, de valores, e a tipificação de manifestações públicas como terrorismo nos remete a um legado fúnebre”, critica cientista político

Logo na primeira aula sobre democracia aprendemos que ela nos protege dos arbítrios do Estado. O mais celerado ditador pode impedir conflitos privados e manter a paz entre os cidadãos comuns, mas apenas a democracia nos garante que este Estado, todo poderoso, cheio de instrumentos e poder, não vai sufocar e destruir o indivíduo isolado.

Como uma criação humana voltada ao atingimento de alguns fins, a carga de expectativas e funções que a democracia tem de fazer frente é enorme: paz social, garantia de direitos, desenvolvimento econômico e social, dignidade humana, etc. Este instrumento inventado e reinventado pelo homem nos últimos 2500 anos carrega em si uma grande dose de utopia, é a forma de acesso das sociedades aos patamares mais elevados, sempre sonhados, muitas vezes perseguido e apenas às vezes atingido.

Pois bem, nossa “Copa das Copas” parece estar entrando em choque com a democracia que insistimos em que nos acompanhe nesta terra tropical. Nas ruas o povo brasileiro, desde junho último, vem manifestando de formas diversas sua visão do Estado brasileiro, a avaliação que faz de nossa sociedade e do nosso grau de desenvolvimento. Manifestações diversas ─ oscilando entre belos espetáculos de civismo até deploráveis ataques violentos (que causaram nossa triste primeira morte esta semana) ─ demonstram o grau de avanço cívico do povo brasileiro. E na outra ponta do processo está o Estado, também a demonstrar o quanto é familiar (ou não) com os valores democráticos.

Vínhamos assistindo “no varejo” às manifestações (anti)democráticas de autoridades e forças públicas. É uma grande mistura, alguns eminentemente democratas, buscando compreender e canalizar as manifestações e ações públicas para atos de civismo e avanço, e outros escorregando, sem consciência ou com a boca já salivando de excitação, para as posições autoritárias. Deste fenômeno desconcentrado cultivamos a esperança de que ações e visões pulverizadas entrem em diálogo e consigam evoluir para uma sociedade mais inclusiva, tolerante, plural e consciente do que lhe exige e o que lhe propicia a democracia.

Contudo, temos agora um grande movimento “no atacado”, como um blindado que avança sobre a turba, confiante na força de seu motor a diesel e em suas paredes de aço. Trata-se do projeto de lei que tipifica como ato terrorista manifestar-se contra a Copa. O objetivo parece claro, tão mais transparente para quem comemora em março 50 anos do golpe militar de 1964. O poder público não quer saber de críticas, sua Copa deve ser também registrada em cartório como a melhor na “história deste país” e de todos os países.

Não vêm ao caso todos os fracassos que já pavimentam nosso caminho até a “grande festa do futebol”. Faltam-nos planejamento, transparência, capacidade gerencial, espírito empreendedor e acima de tudo honestidade na comunicação pública. Mas tudo isto não vem ao caso, podendo sempre rotular alguém crítico assim como um derrotista, talvez um elitista derrotista, e ridicularizá-lo como alguém que não quer ver o novo Brasil que surge das trevas para a luz. O que vem ao caso agora é ver como emerge um passado funesto, passado de 500 anos e não só 50, que nos mostra o alheamento das elites, sua confiança na força e na desinformação do cidadão brasileiro.

Precisamos de um legado simbólico, de atitudes, de valores, e a tipificação de manifestações públicas como terrorismo nos remete a um legado fúnebre. Se houver uma reflexão responsável sobre a democracia brasileira, teríamos a avaliar o grau de organização e conscientização cívica do povo brasileiro, a forma como as forças de segurança compreendem e interagem com os movimentos populares e agora, a última surpresa, como a classe política ainda é alheia a valores de tolerância, igualdade e pluralismo.

Alguns ainda querem administrar o Brasil como um empreendimento de amigos, alheio ao seu povo. Contudo, parece que nosso legado de infraestrutura e de experiência democrática nos remete ao ilustre Odorico Paraguaçu. Se ele não conseguiu construir seu cemitério, agora alguns avançam para consegui-lo, ao menos como legado simbólico da “Copa das Copas”.

Ricardo de João Braga 

Nenhum comentário:

Postar um comentário