"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sábado, 12 de julho de 2014

Aos 500 anos, O Príncipe é obra para além da política

01 de janeiro de 2014

Voltemos ao ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1513, como se dizia na antiga linguagem tabelioa. Nos anos 1580, por ordem do papa Gregório, não mais será seguido o calendário de Júlio César, dito Juliano, e, portanto, teremos de convencionar que o mês e o dia correspondem, pelos padrões atuais, a 10 de dezembro.  As temperaturas começavam a cair em todo o mundo. Em breve, se iniciaria a chamada Pequena Idade do Gelo, que esfriaria todo o planeta, expulsando os vikings da Groenlândia e reduzindo pesadamente as temperaturas, o que interrompeu a produção de vinhos na Inglaterra, muito favorecida pelo calor dos séculos anteriores.

Nessa época, vagavam pelas estradas italianas, há bastante tempo, grupos de peregrinos em direção a Roma, capital mundial do Cristianismo.  Resistiam, no entanto, grupos heréticos, seitas e comunidades religiosas que viviam particularmente sua fé, afastados da supremacia papal. Nos últimos dois séculos, muitos deles foram massacrados, como os cátaros, que se refugiaram na cidadela de Carcassone, no Languedoc, e foram exterminados por Simon de Montfort. A Peste Negra, no século XIV, dizimara um terço da população europeia. A epidemia era incontrolável, suas causas eram ignoradas e nem mesmo igrejas, monastérios e santuários eram imunes a sua chegada. A “dança da morte” (Totdanz) ganhava os painéis dos pintores medievais, como se pode ver em uma famosa representação de Bernt Notke. Santos e pecadores, nobres e camponeses, mulheres e homens, adultos e crianças, todos sucumbiam à peste. Como continuar a acreditar em Deus? Não seriam a devassidão e a corrupção dos nobres e eclesiásticos que estariam a causar todo esse desastre?

A Itália, outrora o centro do mundo civilizado, convertera-se em uma mera ficção, pois se constituía em uma colcha de retalhos formada por cidades-estado, pequenas repúblicas, ligas comerciais e territórios papais, franceses, austríacos e do Sacro Império Romano Germânico. Os movimentos de contestação religiosa começavam a fervilhar, especialmente na Inglaterra e nos estados do Sacro Império. Os aristocratas de sangue antigo, combatentes das cruzadas, sentiam-se incomodados com a crescente força de camponeses, que foram empurrados para as cidades, em razão das Cruzadas e da Peste Negra, e artesãos, que moravam do lado de fora dos castelos (Burgen) e criavam “vilas”. Esses “burgueses” e “vilões” possuíam um novo bem, o dinheiro, capaz de adquirir objetos de consumo não produzidos nos limites do feudo. Esse dinheiro comprava especiarias, tecidos de seda da China e outras preciosidades que encantavam os paladares, as vaidades e escravizavam os homens do século XVI com novos hábitos. E não se esqueça de sua essencialidade na guerra, um negócio dos mais caros, pois era necessário pagar pelas armas, pelas munições e pela lealdade dos mercenários, um soldado profissional, a serviço da fortuna, que rivalizava e superava os antigos batalhões de caçadores (sim, o nome vem daí) e camponeses, ligados por laços de vassalagem cada vez mais frágeis com seus suseranos.

Um exemplo desse novo tipo de homem, um filho da Baixa Idade Média, foi Carolimbo, que viveu no século XIV, em plena tragédia sanitária da Peste Negra. Sua profissão? Médico. Ele era oriundo de uma família de médicos, daí seu sobrenome Medici, em português, médicos.  Sem preconceitos e estudioso, ele ajudou a tratar a vítimas da peste bubônica. Carolimbo dos Médicos (ou, em bom italiano, Carolimbo dei Medici) devia usar aquela túnica negra, com uma máscara que lembrava uma ave e que hoje pode ser vista nos carnavais de Veneza.  Ele enriqueceu com seu ofício, criou um hospital em Florença (Hospital Tozzi Firenze) e seus familiares passaram a negociar especiarias e tecidos. Em  algum tempo, assumiram o governo florentino, mesmo sem título de nobreza. Mas, isso também se resolvia. O dinheiro traria o ducado e a fama de mecenas. Miguel Ângelo Buonarroti Simoni foi um de seus protegidos. Com a desenvoltura de “novos homens” também avançaram nos negócios feneratícios e tornaram-se banqueiros, destruindo ou, quando conveniente, aliando-se aos tradicionais financistas da Idade Média, os judeus. João Bicci de Médici (1360-1429) foi o banqueiro mais rico da Europa em seu tempo. A compreensão do poder do dinheiro e ausência de escrúpulos quanto às restrições religiosas abriram um mundo inteiramente novo de poder, prestígio e força militar para os Medici. As católicas cidades do Norte da Itália constituíram-se no centro bancário do mundo ocidental.

Ano de 1513... Eis que aquele início do século XVI seria muito conturbado. Apenas quatro anos depois, um jovem e amargurado monge alemão, da Ordem de Santo Agostinho, após uma dolorosa peregrinação a Roma, afixaria nas portas do castelo de  Wittemberg (atualmente Cidade de Lutero-Wittemberg) suas 95 teses em protesto contra a Igreja Católica e iniciaria o movimento histórico conhecido posteriormente como Reforma Protestante.

Mas, não estamos na Alemanha e sim na Itália. Nesse dia 10 de dezembro de 1513,  um homem magro, de pele pálida, de cabelos curtos, escuros, com olhos pequenos, nascido em 1469, portanto, já com idade avançada para a época, terminava um livro intitulado O Príncipe e, como era de praxe, com uma especial dedicatória a um aristocrata poderoso. O oferecimento deu-se ao Magnífico Lourenço de Médici. Sim, a um descendente daquele médico da Peste Negra, ao “novo homem” do Renascimento.

Vivendo naquela era de infelicidades e de transformações, Nicolau Maquiavel era antes de tudo um homem desafortunado.  Na igreja da Santa Cruz, em Florença, no seu cenotáfio, há um dístico que confirma esse juízo a seu respeito: “Um homem tão grande, nenhum elogio [apropriado a essa grandeza]”.

Um alto servidor do Estado em sua amada Florença, por efeito de uma rebelião e do retorno ao poder da família Médici, Maquiavel é destituído de suas funções e exilado em um vilarejo próximo a Florença, onde escreve suas obras-primas. No final da vida, com a derrocada dos Médici, os novos donos do poder consideram-no suspeito de ligações com a dinastia deposta e tomam-no como inimigo da República. Em 1527, profundamente desgostoso de seu destino, Maquiavel faleceu.

Sua obra O Príncipe ganhou o mundo desde então. É a obra mais traduzida do italiano e gozou de diferentes avaliações históricas. Ser “maquiavélico” tornou-se sinônimo de uma atitude pérfida e desleal. Napoleão Bonaparte, ele próprio definido como uma “filho da fortuna”, era leitor ávido dos escritos de Maquiavel, tendo anotado O Príncipe. Outros monarcas, especialmente os “déspotas esclarecidos”, como Catarina, a grande, da Rússia, também dedicaram-se a interpretar a obra que completou 500 anos.



Há muitas tentativas de se explicar O Príncipe, tido como o livro fundador da Ciência Política. O livro assumiria as seguintes feições:

a) O Príncipe seria uma espécie de manual de autoajuda para soberanos ou candidatos a líderes políticos, orientando como lidar com as intrigas, as traições, as vontades populares e os meandros da diplomacia e da “grande política”.

b)  A obra teria sido  escrita para o povo, a fim de orientá-lo sobre como lidar com os déspotas e os poderosos, uma verdadeira aula de realidade política para os despossuídos. É essa a visão de um dos grandes teóricos de esquerda do século XX, o italiano Antonio Gramsci, para quem “o próprio Maquiavel nota que as coisas que ele escreve  são aplicadas, e foram sempre aplicadas, pelos maiores  homens da História. Por isso, não parece que ele queira  sugerir a quem já sabe, nem o seu estilo é aquele de uma  desinteressada atividade científica; nem se pode pensar  que ele tenha chegado às suas teses sobre ciência  política através de especulações filosóficas”. Desse modo,  “pode-se, portanto, supor que Maquiavel tem em vista ‘quem não sabe’, que ele pretende educar politicamente ‘quem não sabe’”

Gramsci refere-se, nesse ponto, à dedicatória de O Príncipe, na qual Maquiavel declara que muitos oferecem aos soberanos objetos de valor, “como cavalos, armas, tecidos bordados a ouro, pedras  valiosas e demais ornamentos dignos de sua grandeza”. Ele, no entanto, prefere doar o que ele tem de melhor: “(...) não encontrei, entre as minhas  posses, nada que mais prezado me seja ou que tanto estremeça quanto o conhecimento das  ações dos grandes homens adquiridos por uma longa experiência das coisas atuais, e uma  repetida lição das antigas; as quais, tendo eu, com muito afinco, detidamente estudado,  examinado-as, remeto agora a Vossa Magnificência, reduzidas a pequeno volume”. Maquiavel reconhece que não tem a pretensão de ensinar ao príncipe, dada sua condição de homem do povo, todavia:

“Menos desejo que por  presunção se tenha o fato de um homem de baixa e ínfima condição discorrer e regular a  respeito do governo dos príncipes; visto como, aqueles que desenham os contornos dos países  postam-se na planície para apreender a natureza dos montes, e para apreender a das planícies  sobem aos montes, do mesmo modo que para bem aquilatar a natureza dos povos é preciso ser  príncipe e para aquilatar a dos príncipes é preciso ser povo”.

c) Fernando Henrique Cardoso, no prefácio à tradução de O Príncipe, feita por  Maurício Santana Dias e editada, em 2010, em São Paulo, pela Penguin Classics/Companhia das Letras, defende que o livro não é merecedor das críticas históricas clássicas (um manual de cinismo político). Em verdade, O Príncipe, de modo original, teria posto luzes sobre os móveis da Política e das atitudes humanas na luta pelo poder, muita vez marcadas pelo “interesse próprio, a ambição, a inveja, a vontade de domínio”. A explicação da Política não dependeria de uma consulta a valores moralmente superiores, mas a razões autoevidentes, que se revelam por meio das ambições, forças e fraquezas dos homens, como afirma Fernando Henrique Cardoso.

Independentemente dessas visões, é importante, nestes 500 anos de O Príncipe, refletir sobre o seu significado para nosso tempo. Esse livro, definitivamente, não pode ser lido como um “manual para candidatos a príncipe”, assim como se fez com A Arte da Guerra, de Sun Tzu. Se fosse tão bom ou útil, Maquiavel ter-se-ia valido de seus ensinamentos em causa própria e não teria falecido em completo ostracismo e na ridícula condição de persona non grata ao novo regime republicano florentino, cuja forma de governo era-lhe tão simpática.

Outra ironia é que O Príncipe haja sido ofertado à família Médici. Para os padrões da época, os Médici seriam uma espécie de nouveaux riches. Em apenas três gerações, passaram da condição de simples médicos a uma poderosa dinastia econômica e política. Eles não alcançaram o poder pelas armas, em feitos heroicos, a serviço de um suserano e, preferencialmente, na luta contra o infiel. Enriqueceram com seu trabalho e sua argúcia e, depois de conquistado o poder, receberam os títulos de nobreza. Eram homens do “novo tempo”, ainda que se revestissem dos símbolos feudais. E não seria com Maquiavel, um burocrata de pouca habilidade nas intrigas palacianas, que um Médici iria aprender algo sobre a realidade política. A fala humildade da dedicatória de O Príncipe é humilhada pela força dos fatos.

Não se pode também esquecer a admirável combinação de elementos provincianos e universais em O Príncipe. Há quem defenda ter o livro a finalidade de estimular a unidade italiana, um sonho de Maquiavel, que só seria alcançado no século XIX. As lutas políticas italianas em pouco se diferenciariam, com o olhar contemporâneo, de guerras entre famílias mafiosas ou a trágica alternância de poder, através de golpes de Estado, nas repúblicas latino-americanas no século XX.   William Shakespeare aproveitou-se ao extremo da experiência política italiana em suas mais famosas peças. A Guerra das Duas Rosas, entre os Lancaster e os York, com os sangrentos governos de Henrique VIII e Elizabeth I, é certo que influenciaram Shakespeare. A matéria-prima, todavia, estava toda na Itália de Maquiavel.

Ao tempo em que O Príncipe pode ser confundido com uma crônica de conflitos de grupos mafiosos ou de clãs inimigos do interior do Nordeste, é uma obra magnífica em sua abertura para o universal e para o atemporal. A entrada em cena de atores que afirmavam serem os fins justificados pelos meios, é também simultânea à saída de outros atores, que buscavam fundar a racionalidade humana na força das ideias evangélicas da Igreja medieval. Como conquistar e se manter no poder, sem usar a força? Essa angústia “maquiavélica” está aqui exposta:

“A lacuna entre como as pessoas vivem e como deveriam viver é tão grande, que aquele que vive se esquecendo do que está sendo feito, considerando-se aquilo que deve ser feito o quanto antes, trabalha em favor de sua ruína ao invés de sua sobrevivência; aquele que tenta, entre o povo, e sob todas as circunstâncias, comportar-se de acordo com o que é considerado bom, inevitavelmente encontra sua ruína entre tantos outros que não são bons. Por isso, o príncipe que quiser manter-se no poder tem necessariamente que aprender a não ser bom, optando por isto ou aquilo de acordo com a necessidade”.

Maquiavel, mesmo que não tenha tido essa consciência, escancarou as portas para uma nova racionalidade. Seus ecos são audíveis até em nossos dias, como a chamada “ética da racionalidade dos fins”, tão ao gosto de Max Weber, e que pode ser explicada, em linguagem contemporânea pela máxima anglo-saxã: “Isso funciona? Sim. Então é bom.”

Outra conquista “maquiavélica” e que, após a tragédia do século XX, está no reconhecimento de que a Política, mesmo sem os véus hipócritas da tradição medieval (e mesmo anterior ao Medievo), é a melhor alternativa à solução dos problemas por meio do conflito armado.

É por esse motivo que os defensores da “criminalização” da Política, muita vez, são a ponta de lança dos governos ditatoriais. Desmoralizar os políticos e a Política, por mais abjetos que ambos possam parecer, é reabrir as portas do teatro para os agentes em armas. Trata-se de outra contribuição que O Príncipe ainda hoje faz reverberar. O Direito, que em muitos casos assumiu esse papel de intermediação dos conflitos, tem de compreender essa função da Política sob duas ordens: a) a primeira está em não trazer para si a lógica da Política, renunciando à segurança que as categorias, a coerência doutrinária e o rigor da interpretação, em nome de um populismo judiciário que desmoraliza os que permanecem em suas funções, na cotidiana e repetitiva atividade judicante; b) a segunda está em propiciar meios para o exercício legítimo da atividade política, ainda que isso se aproxime de uma quimera. Essa segunda função está muito bem descrita no voto do ministro Dias Toffoli, na ADI 4.430/DF, no qual se encontra o histórico da evolução de nosso sistema eleitoral, com a justa homenagem a Assis Brasil, o líder do Partido Libertador, do Rio Grande do Sul, para quem a aliança com Getúlio Vargas, seu inimigo figadal, valia a pena se dela resultasse a aprovação de um Código Eleitoral para o país.

 Passados 500 anos, Maquiavel, mesmo sem a ajuda de Gramsci, Napoleão, Frederico da Prússia ou Catarina, a grande, é merecedor do reconhecimento humano. Ciente ou não do que ele iria gerar de impacto histórico, o servidor público florentino foi o grande porta-voz da Modernidade. Talvez só tenha escolhido os padrinhos errados. Sem o fracasso pessoal, no entanto, ele deixaria de ser tão humanamente próximo de nós.


Otavio Luiz Rodrigues Junior 

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