Estamos em pleno período eleitoral. Como adverti aqui em outras ocasiões nas quais se discutiu o tema dos direitos políticos e da democracia em nosso regime constitucional, infelizmente, corre-se o sério risco de que a moralização da política leve a um nefasto rebaixamento da disputa eleitoral. Ao invés da discussão de ideias, planos de governos e projetos que atendam os graves problemas que atingem nossa sociedade nos três níveis de governo de nossa Federação, vai-se tornando mais provável o terrível vaticínio de que candidatos de todas as cores políticas, desgraçadamente, vejam-se incentivados e mesmo obrigados a responder a um anseio difuso — em tudo lamentável — de conquistar a vitória com a moralização do debate político.
Em tais circunstâncias, com sério prejuízo para nossa democracia, sobraria muito pouco espaço para a apresentação de propostas e projetos, já que a propaganda negativa, aquela que se concentra em profanar o oponente, transformando-o em inimigo público (exemplo da moda: petralha/tucanalha), mostra-se muito mais eficaz do que o comportamento propositivo.
A tentação para moralizar o debate político torna-se ainda mais intensa no terreno hoje fértil entre nós, onde frutificam posições extremas de delírios fundamentalistas à esquerda e à direita. De fato, infelizmente, em pleno Brasil do século XXI, ganha corpo a compreensão daqueles que acreditam, repito, tanto à esquerda como à direita, que os fins de suas ideologias, dogmaticamente tidas como imunes a erros e a contradições, justificam qualquer meio de atuação, inclusive e principalmente, a exclusão definitiva da voz do oponente. Como se sabe, para nosso infortúnio coletivo, muitas dessas ideias estão deixando os sítios virtuais da internet e começam a ganhar a materialidade das ações concretas.
Isso considerado, a questão que submeto aos nossos esclarecidos leitores, com o auxílio de um excepcional ensaio de Niklas Luhmann (Die Zukunft der Demokratie — O futuro da democracia) é a de saber se e até quando a nossa jovem democracia pode suportar o que me parece ser uma grave disfuncionalidade de nosso sistema de disputa eleitoral: a moralização da política.
Poderia formular uma hipótese inicial de resposta a essa questão afirmando que a nossa democracia — como qualquer outra — não suportará ilimitadamente a predominância de quem trata o opositor político como inimigo, muito menos inimigo moral. A democracia não pode se converter numa disputa entre o essencialmente bom (aquele que pensa como eu) e o essencialmente mau (os que pensam diferente). Em resumo, no Brasil, como em qualquer outro lugar, os inimigos da democracia são, em primeiro lugar, todos aqueles que tratam o seu oponente como inimigo a ser excluído, não importa por qual meio ou instrumento, do debate e da disputa política. A única intolerância da democracia, como já foi dito, deve ser com os intolerantes. Mas vejamos o problema em termos mais analíticos.
Como qualquer instituição humana, também a democracia não pode, só por si, garantir o seu próprio futuro. Dito de outra forma, também a democracia requer a presença de condições mínimas de possibilidade, sendo que nada a protegerá, se os seus destinatários não estiverem vigilantes com a sua própria má vontade, ou desídia com alguns requisitos mínimos para a preservação de sua existência. “Todo futuro – adverte Niklas Luhmann – oferece motivo para preocupação. Este é o seu sentido, e isso vale naturalmente também para o futuro da democracia. Quanto mais o futuro se abra a possibilidades, tanto maior se torna a preocupação. E isso se aplica em medida muito especial à democracia, pois a democracia, se tem algo de fato especial, é (precisamente) uma abertura incomum de possiblidades de escolha futura”. De fato, o autor tomará a democracia menos pela qualidade de seu titular e muito mais por suas possibilidades de abertura e escolha para o futuro.
I — O que é e o que não é a democracia
Segundo Luhmann, bem observados os fatos, a democracia, conceituada como “o governo do povo pelo próprio povo”, seria uma hipótese teoricamente imprestável (unbrauchbar). E, com efeito, é hoje quase incontornável a conclusão de que um regime de governo democrático diz muito pouco sobre si mesmo quando apenas observado pelo aspecto subjetivo de quem o titulariza. A democracia, portanto, não teria a sua natureza e futuro determinados pela ideia de que o povo possa governar-se a si mesmo.
Ainda segundo Luhmann, a democracia também não se caracteriza pelo “princípio de que todas as decisões devem ser produzidas de forma participativa”, pois isso envolveria um processo infinito de decisões sobre decisões. Uma e outra preconcepções (governo do povo pelo povo e a exigência de que todas as decisões sejam tomadas de forma participativa), obviamente, sobrecarregariam e/ou inviabilizariam qualquer sistema de tomada de decisão.
No correto dizer de Luhmann, a democracia não é, como querem alguns, um curto-circuito na ideia de poder (o poder anulando o poder) e, de outro, não pode implicar a “multiplicação ou propagação sem fim de cargas de decisão”, o que, além de tudo, resultaria numa “intransparência das relações de poder”. A democracia, como um regime permanente de decisões participativas de todos para todos, obviamente, sacrificaria, por sua ilimitada abertura e indistinção, qualquer possibilidade de controle dos atos de poder, além de impedir a afirmação de outros princípios como premissas materiais de justiça, tornando impossível saber “o que” e “a quem” se deva demandar. Num ambiente assim revolto, adverte Luhmann, os resultados muito provavelmente se revelariam a favor de quem conseguisse “enxergar e nadar nessa água turva”.
Em lugar dessas “inservíveis” hipóteses de definição de democracia, Luhmann prefere conceituá-la como uma “alternativa ou separação na cúpula”, ou, numa tradução livre, “cisão por cima” (Spaltung der Spitze), sendo a democracia caracterizada mais precisamente pela existência de um sistema em que haja, na cúpula da sociedade, uma diferenciação entre governo e oposição, ou seja, em que, na direção da sociedade, haja uma clara distinção de funções (de governo/de oposição), mas com a possibilidade sempre aberta de uma troca de posições. Consoante essa definição, na democracia, “a oposição não tem poder de governo, mas ela pode, por isso mesmo, fazer valer o poder daqueles-que-não-têm-poder” (Macht der Ohnmacht).
Em outras palavras, o que distinguiria a democracia das demais formas de governo, segundo Luhmann, é que, nos demais sistemas, existiria uma diferenciação estratificadora entre, de um lado, os detentores do poder (que estão em cima) e, de outro, os que estão submetidos a esse poder (os subalternos, que estão por baixo). Assim, sem exagero, afirma Luhmann, a democracia é, pode-se dizer, uma estrutura e um acontecimento de alguma forma bastante improvável, pois o normal seria, com as teorias tradicionais, conceber a repartição do poder político a partir de um código bem diferente, isto é, entre a posição de quem está em cima e a posição de quem está em baixo - por exemplo, a antiga divisão entre poder público e o setor privado, entre Estado e cidadão.
Num quadro evolucionário, o que fez a democracia foi, portanto, cindir esse “poder superior”, esse “poder por cima”, criando “pontas” na cúpula, que pudessem representar diversas posições políticas (governo e oposição), obviamente, concebendo e instruindo-lhes com ferramentas para que possam consistentemente exercer os seus “poderes” de governo e de oposição, abrindo-se a democracia, no limite, inclusive e regularmente, à possiblidade de alternância dessa posição binária (governo/oposição).
É essencial à democracia, pois, a distinção e a possibilidade do legítimo exercício das funções de governo e de oposição. Por outro lado, na democracia é “genial também que se evita o exercício ao mesmo tempo do poder pelo governo e oposição ao modo dos cônsules romanos, e permite, apesar disso, a existência simultânea da estrutura binária”.
Sem a divisão/alternativa por cima, entre oposição e governo, como propiciado pela democracia, a mudança de poder, repito, sem alternativa por cima, verificar-se-ia sempre de forma traumática, com, por exemplo, guerra civil, cisma, desordem ou revolução.
Na democracia, diversamente, nenhum grupo pode pretender representar toda a sociedade, ou titularizar todo o poder, havendo sempre espaço – por cima, nas estruturas de poder - para o exercício da oposição. Por isso, a democracia é caracterizada como um regime de pontas cindidas. Segundo Luhmann, essa hipótese pode ser facilmente comprovada, uma vez que, na democracia, qualquer grupo político que tiver a pretensão de representar e ordenar a sociedade como um todo (Gesamtgesellschaft) enfrentará dificuldades com a democracia. Nessas condições, o político perde a condição de representar toda a sociedade.
II — Contra a moralização da política
Logicamente, a alternativa e abertura por cima, própria da democracia, exige que os grupos de poder atuem, no dizer de Luhmann, com uma certa e “distinta amoralidade” em relação aos grupos opostos. Nada mais nefasto, portanto, à democracia que a tentativa de demonizar e “moralizar” negativamente o comportamento do outro. Nas palavras do grande pensador alemão “Em vez disso, a democracia precisa de um estilo de distinta amoralidade, nomeadamente, a renúncia a moralização do oponente ou da oposição política (Moralisierung der politischen Gegnerschaft)”.
Em outras palavras, nada mais pernicioso à democracia do que o comportamento de quem pretende fazer política moralizando a si mesmo (como “o bem”) e o oponente (como “o mal”). Nessas condições, o apelo à moral desqualifica não apenas um determinado comportamento ou uma determinada conduta do oponente, mas desqualifica a sua própria existência política e, portanto, a sua habilitação para o exercício legítimo do poder.
Não sabendo dizer de forma mais correta ou mais elegante, valho-me uma vez mais desse grande gênio da sociologia para concluir o presente artigo:
“O esquema governo/oposição não deveria ser confundido, nem por parte do governo nem por parte da oposição, com um esquema moral no sentido de que apenas nós somos bons e dignos de consideração, e o outro lado, ao contrário, é mau e deve ser condenado e repudiado”.
Néviton Guedes
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