sábado, 25 de junho de 2016

O conservadorismo de cada Casa do Congresso


“O fato é que, do ponto de vista dos progressistas e humanistas, as duas Casas têm pautas refratárias ao ideário dos movimentos sociais e sindicais, que defendem avanços políticos, econômicos e sociais e exigem um Estado forte, capaz não apenas de regular, mas também de competir em setores estratégicos – petróleo, energia, sistema financeiro, etc – com o setor privado como forma de evitar monopólios e cartéis contra o interesse nacional.”


Muito já se falou e tem se falado do caráter conservador do Congresso eleito em 2014, porém nada se disse a respeito das características do conservadorismo de cada uma das Casas do Poder Legislativo Federal. Câmara e Senado possuem composição e agendas distintas, que merecem ser analisadas para melhor compreensão da razão da demora na aprovação das matérias.

A Câmara dos Deputados, com mais da metade de sua composição organizada em torno de bancadas informais – como a evangélica, a da bala ou da segurança, a da bola e do boi (agronegócio) – forma uma espécie de “centrão” que prioriza práticas tradicionais e conservadoras, sobretudo em relação aos aspectos morais e sociais, à defesa da família e à intolerância a ideias mais liberalizante quanto aos direitos civis e humanos.

O Senado, por sua vez, apresenta um perfil mais liberal do ponto de vista econômico do que conservador em relação a valores morais e sociais. Sua composição, formada majoritariamente de empresários, tem se dedicado à modernização dos códigos de processo e da agenda econômica, particularmente em relação à abertura da economia e à redução da presença do Estado na economia e menos à limitação dos direitos civis e humanos.

Quem se der ao trabalho de analisar as proposições debatidas ou examinadas nas duas Casas do Congresso na atual legislatura vai constatar facilmente o que se afirma nos parágrafos anteriores.

A título de ilustração, pode-se lembrar que a Câmara dos Deputados tem pautado uma série de medidas que reforçam esse perfil conservador, como, por exemplo, os pedidos de CPIs e investigações sobre a UNE e os movimentos sociais, bem como o patrocínio de várias proposições que promovem retrocessos em direitos sociais e atentam contra direitos das chamadas minorias, especialmente assalariados, mulheres, jovens, indígenas, etc.

Em relação aos projetos, basta lembrar o da terceirização, que ataca direitos dos trabalhadores não-terceirizados; o do estatuto da família, que nega direitos à formação de famílias que não sejam constituídas exclusivamente por um homem e uma mulher; o que regulamenta a PEC do trabalho escravo, modificando o conceito de trabalho degradante; o que trata do Estatuto do Nascituro; a PEC de redução da idade penal; a PEC de demarcação das terras indígenas; a PEC que reduz de 16 para 14 anos a idade para ingresso no mercado de trabalho; e a PEC que autoriza as igrejas a ingressarem com ações de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, dentre outros.

Já no Senado, a prioridade tem sido os projetos que tratam da abertura da economia, como o que retira da Petrobras a condição de operadora única e a desobriga de participar com pelo menos pelos 30% nas descobertas do pré-sal; o que trata da governança das empresas estatais, retirando delas a possibilidade de contribuir com políticas sociais; o do estatuto jurídico dos fundos de pensão, restringindo a participação dos participantes em seus conselhos e direção; e a PEC que derruba o licenciamento ambiental para projetos de infraestrutura.

A comprovação de que o Senado é mais liberal, do ponto de vista econômico, do que conservador em relação a direitos e valores, são: a rejeição do financiamento empresarial de campanha, a recusa em aprovar a PEC da redução da idade penal e a promoção de um debate mais acurado do projeto da terceirização.

A leitura da composição e das práticas do atual Congresso revela uma grande contradição, que consiste no fato de que a representação do povo, a Câmara dos Deputados, é mais conservadora, do ponto de vista dos direitos sociais, civis e humanos, do que o Senado, que representa a Federação, cuja formação, historicamente, era mais conservadora do que a Câmara dos Deputados.

O fato é que, do ponto de vista dos progressistas e humanistas, as duas Casas têm pautas refratárias ao ideário dos movimentos sociais e sindicais, que defendem avanços políticos, econômicos e sociais e exigem um Estado forte, capaz não apenas de regular, mas também de competir em setores estratégicos – petróleo, energia, sistema financeiro, etc – com o setor privado como forma de evitar monopólios e cartéis contra o interesse nacional.


Antônio Augusto de Queiroz*


segunda-feira, 13 de junho de 2016

O problema do poder na Constituição da República de 1988


A disciplina dos poderes é um elemento central em todas as Constituições. Seja na separação dos poderes entre diversos órgãos, seja na separação territorial dos poderes, trata-se, sempre, de um dos pontos mais importantes de todas as Constituições. Não é por acaso que o artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão afirma que uma sociedade que não contém regras sobre uma separação de poderes não tem uma Constituição

E o sistema de checks and balances da Constituição dos Estados Unidos, e sua inter-relação com o federalismo, é um dos dois pilares daquele documento, a própria declaração de direitos sendo um conjunto de emendas que alguns dos founding fathers consideravam desnecessário, tamanha a certeza que tinham de que a mera mecânica de poderes desenhada por eles seria suficiente para garantir a moderação do governo. É sobre essa interface, do tratamento jurídico do poder e da Constituição, que pretendo fazer uma reflexão nesta coluna, para chegar, no final, à questão do poder na Constituição de 1988. 

Seguindo alguns ensinamentos do Direito Constitucional francês, vamos propor algumas distinções antes de entrar no assunto propriamente. Primeiro, vamos distinguir entre Constituições cujas regras são derivadas de um princípio político básico e as Constituições que aparecem mais como um conjunto de regras que, depois, são interpretadas para dar alguma aparência de conjunto. A distinção se baseia em comentário relativamente lateral de Michel Troper em sua tese de doutorado. Segundo, vamos seguir as propostas para uma teoria do Estado de Olivier Beaud nas quais ele afirma que o fenômeno estatal só pode ser apreendido em sua totalidade se estivermos atentos para duas características do Estado: a soberania e a institucionalidade. De um lado, a soberania é o elemento que descreve a ruptura na fundação do Estado, o caráter supremo do poder que cria o Estado, o poder do pacto social, a força do pensamento político. De outro, as instituições refletem a continuidade, as relações de poder concretas na sociedade, as dificuldades de instituir um Estado completamente novo que o elemento da soberania parece querer ocultar. 

Colocando essas duas propostas teóricas, de Michel Troper e de Olivier Beaud, juntas, proponho olharmos as Constituições brasileiras sob o seguinte prisma. De um lado, teríamos Constituições em que predominou o elemento da soberania. De outro, as Constituições em que predominou o elemento institucional. Nas Constituições em que predominou a soberania, a ruptura se sobressai relativamente à continuidade, o poder criador supera os limites à inovação institucional. Nessas Constituições, retomando Troper, parece haver um compromisso com princípios político-constitucionais a partir dos quais são deduzidas as regras que, ao final, vão dar o desenho constitucional positivo da separação de poderes. Já nas Constituições em que predominou o elemento institucional, a continuidade supera a ruptura. A separação dos poderes parece ser menos deduzida de princípios e mais o reflexo de experiências institucionais passadas, aprimoramentos de práticas institucionalizadas. 

Minha proposta é dividir as Constituições brasileiras em Constituições soberanas e Constituições institucionalistas, sempre de acordo com essa mescla dos comentários teóricos de Troper e Beaud. De forma ainda experimental, proponho que sejam vistas como soberanas as Constituições de 1824, 1891, 1934 e 1937, e como institucionalistas as de 1946, 1967 e 1988. 

A Carta de 1824 pode ser classificada como soberana por ser um documento que reflete um compromisso doutrinário com a monarquia liberal. Esse compromisso é anterior à Carta em si e pode ser comprovado por meio do estudo de diversos documentos que ajudaram a consolidar a independência do Brasil. Em certo sentido, a independência do Brasil se fez contra o liberalismo excessivo da Constituinte de Portugal, e isso se reflete na Carta de 1824, notadamente na existência do poder moderador. O próprio Pedro I dá as diretrizes da carta na sua exposição de motivos ao anteprojeto de Constituição. 

Na mesma linha, a Constituição de 1891 também pode ser colocada entre aquelas que propusemos chamar de soberanas, à falta de nome mais adequado. Também ela reflete compromissos doutrinários prévios com a forma do Estado e a forma de governo. Pouco importa o fato, ou o boato, de que ela seria uma cópia da Constituição norte-americana. Havia um compromisso com a instituição de uma nova forma de governo, a República, e com um Estado diferente, a federação de tipo dualista. Na assembleia constituinte, embora houvesse oposição, os defensores desse novo modelo conseguiram reunir força suficiente para produzir um texto jurídico que, no geral, refletia aquelas ideias. 

A Constituição de 1934 rompe com o paradigma liberal das Constituições anteriores. No campo das relações dos poderes, ela alterou profundamente as funções do Senado Federal (artigo 88 e seguintes) e instituiu a representação classista (artigo 23). Também foi ela que criou o sistema de eleição proporcional para a Câmara dos Deputados (artigo 23). O Poder Judiciário foi fortalecido, notadamente com a criação da Justiça Eleitoral. Na distribuição territorial do poder, ela acabou com o federalismo dualista e instituiu o federalismo cooperativo, com uma distribuição de competências concorrentes (artigo 5º, parágrafo 3º). Essas alterações se inseriam em um ambiente de forte crítica às instituições liberais, consideradas inadequadas para o Brasil. A esse ambiente ideológico correspondeu uma Constituição que aumentava os poderes da União Federal, do Judiciário e do presidente da República, enquanto o legislativo de tipo liberal foi enfraquecido. 

Em 1937, produz-se a Constituição mais autoritária de nossa história. Aquela Constituição, no entanto, não era autoritária apenas por acidente. Seu autoritarismo refletia um compromisso teórico. Reflexões políticas e sociológicas da época defendiam aquele modelo como o único adequado para o Brasil. Ela fortaleceu ainda mais os poderes do Presidente da República, limitou a proporcionalidade na representação dos estados, fortaleceu o Judiciário, e, na sua vigência, deu-se ao processo civil a concepção “autoritária” defendida por Francisco Campos. 
Com a Constituição de 1946, teria início o período das Constituições institucionalistas. 

Em muitas medidas, ela procede a um rearranjo institucional das experiências anteriores, reaproveitando elementos da Constituição de 1891 e da de 1934. Durante a sua vigência, há um inegável reforço do Poder Judiciário, no qual se destaca a consolidação, com a criação de vasta jurisprudência, do uso do mandado de segurança como mecanismo por excelência do controle judicial dos atos administrativos. Contudo, em termos de inovações nas relações entre Poder Executivo e Poder Legislativo, ela é bastante tímida, o mesmo acontecendo com a distribuição territorial do poder. Mais do que formar um conjunto de regras deduzidas a partir de uma ideologia, a Constituição de 1946 aproveita experiências institucionais anteriores. Entre esses aproveitamentos, está o sistema proporcional para a eleição da Câmara dos Deputados. E entre as inovações, o multipartidarismo. A tendência à consolidação do modelo de “presidencialismo imperial” já se manifestou sob aquele regime. A combinação desses três elementos seria repetida em 1988, dando origem ao modelo do “presidencialismo de coalizão”, sistema adotado pela nossa Constituição em vigor e que enfrenta sérias críticas no momento. 

A Constituição de 1967 é problemática para a classificação aqui proposta. É preciso lembrar que ela foi a Constituição do regime militar, cuja obra negativa ainda hoje repercute na nossa política. Contudo, ela não foi uma Constituição autoritária por princípio, como a de 1937. Foi mais a sua prática, cumulada de exceções, que serviu ao autoritarismo militar da época. Dito isso, entendo que, na lógica do tratamento dos três poderes e do federalismo, ela pode ser listada entre aquelas que poderíamos chamar de institucionalista, para ressaltar o elemento da continuidade, em detrimento da soberania e da ruptura. Não havia, por trás das suas normas, uma concepção ideológica constitucional desenvolvida, como houve na Constituição de 1937, mas uma determinação de reação ao que era percebido como um risco decorrente do cenário de polarização política da Guerra Fria. A continuidade, no caso, ficou por conta da tendência de centralização federal e do fortalecimento do Poder Executivo. Um outro elemento, no entanto, deve ser lembrado: a progressiva equipagem do Poder Judiciário para exercer um papel de controle do Estado. 

Feita essa abordagem histórica extremamente sucinta das Constituições brasileiras, passo à Constituição de 1988. Pela repetição do tratamento estrutural dado às relações entre os poderes e ao federalismo, considero que se trata de uma Constituição institucionalista, na qual há mais elementos de continuidade do que de ruptura e na qual não nos parece ter sido seguido um princípio de ideologia constitucional. Evidentemente, ela tem princípios, mas o tratamento dado às instituições que repartem o poder é, claramente, decorrente de experiências constitucionais prévias que, possivelmente, foram consideradas positivas. Assim, na repartição de competências entre os entes federados, a tendência de concentração de poderes na União permaneceu. Da mesma forma, as relações entre Legislativo e Executivo, os mecanismos de seleção dos representantes do povo, o multipartidarismo, tudo isso reflete experiências do passado. O fortalecimento sem paralelo do Poder Judiciário, por sua vez, também reflete uma tendência que já vinha se manifestando desde, pelo menos, a Era Vargas. 

Essa Constituição criou, a partir de elementos de continuidade existentes num ou noutro de nossos regimes constitucionais vigentes desde 1934, o regime do presidencialismo de coalizão, que ora dá sinais de esgotamento. Minha proposta é, a partir da sugestão de classificação aqui esboçada, chamar a atenção para o fato de que esse regime não foi desenhado a partir de uma visão global de ideologia constitucional, mas desde uma tentativa de compor uma união de forças políticas, resultando na repetição de fórmulas institucionais já conhecidas e que, ao que tudo indica, faziam consenso no momento de transição da ditadura para a democracia. Agora, no entanto, talvez seja o momento de repensar o tratamento dado ao poder na Constituição de 1988 desde uma perspectiva mais ampla, contemplando a imaginação de um regime que rompa com esses elementos do presidencialismo de coalizão, como o sistema proporcional para eleição de deputados federais, o multipartidarismo sem critérios corretivos, e o excesso de poderes do presidente da República. Em outras palavras, o momento pode ser propício para novas reflexões constitucionais ancoradas em uma concepção mais profunda do lugar do Estado e do poder político nas nossas vidas. 


Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).

O saldo do impeachment é uma democracia deficitária



Direito e política não coexistem separados por linhas claras. Quando ocorrem crises institucionais, a ambiguidade fica agravada e mais desafiadora.  

Nesses cenários, as fronteiras imprecisas que separam os dois domínios convertem-se em uma verdadeira zona cinzenta. Isso não quer dizer, todavia, que os juízos políticos sejam espaços vazios preenchíveis por qualquer conteúdo, ou que possam ser empregados de forma descolada dos referenciais de legitimidade democrática. 

Nas democracias constitucionais, os resultados das batalhas políticas extraem sua força e solidez do fato de estarem apoiados em estruturas normativas claras e preconcebidas. Esse é o aspecto que permite discernir a política partidária, transitória e de varejo, da política constitucional, que se pretende perene e apoiada em valores comuns.  

É o ponto que permite identificar se as estruturas jurídicas são apenas aparentes, se são meras embalagens para qualquer conteúdo, ou se efetivamente traduzem um compromisso institucional e ético dos vários setores da sociedade. 

O uso enviesado e distorcido das fórmulas e estruturas constitucionais coloca todo o sistema em risco, pois danifica a confiança tanto nos resultados transitórios que vier a produzir, como nos próprios referenciais normativos usados para regrar a luta política.  

Durante uma crise institucional, uma troca de poder apoiada na aplicação desvirtuada dos instrumentos institucionais deixa os que triunfaram em posição frágil, e, mais grave, compromete a credibilidade do próprio sistema. 

No presidencialismo, o espaço reservado para a discussão sobre a qualidade e desempenho dos chefes do Poder Executivo é a disputa eleitoral.  
O impeachment é um instrumento extremo e excepcional, idealizado para remover governantes que praticaram desvios importantes caracterizados como crimes de responsabilidade.  


Em uma democracia saudável, é razoável ter a expectativa de que a formulação do juízo político sobre a prática dos crimes de responsabilidade seja pautada por critérios mínimos de integridade, congruência e equidade. 
Processos de impeachment colocam a dimensão eleitoral da democracia em conflito com juízos políticos que, usados com propósitos insinceros ou para fins espúrios, enfraquecem os próprios pilares constitucionais em que buscam se apoiar.  

Quando os protagonistas políticos manipulam as engrenagens democráticas de forma irresponsável, não arriscam apenas suas biografias, mas colocam em xeque a própria solidez das instituições. 

Na crise que atravessamos, a prevalência da retórica partidária, o uso de argumentos eleitorais e de fundamentos jurídicos questionáveis, ou puramente formalistas, parecem indicar que o impeachment pode ser o ponto de partida de mais instabilidade.  

O capital político e institucional queimado pelos vários atores nessa batalha tende a deixar como saldo uma democracia deficitária.  

Se a credibilidade das ferramentas constitucionais continuar a ser desgastada, como esperar que a Constituição permaneça como referencial comum para arbitrar a luta política? 

Jane Reis Gonçalves Pereira é professora de Direito Constitucional da UERJ. É juíza federal e editora do blog Estado de Direitos.