"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

segunda-feira, 13 de junho de 2016

O problema do poder na Constituição da República de 1988


A disciplina dos poderes é um elemento central em todas as Constituições. Seja na separação dos poderes entre diversos órgãos, seja na separação territorial dos poderes, trata-se, sempre, de um dos pontos mais importantes de todas as Constituições. Não é por acaso que o artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão afirma que uma sociedade que não contém regras sobre uma separação de poderes não tem uma Constituição

E o sistema de checks and balances da Constituição dos Estados Unidos, e sua inter-relação com o federalismo, é um dos dois pilares daquele documento, a própria declaração de direitos sendo um conjunto de emendas que alguns dos founding fathers consideravam desnecessário, tamanha a certeza que tinham de que a mera mecânica de poderes desenhada por eles seria suficiente para garantir a moderação do governo. É sobre essa interface, do tratamento jurídico do poder e da Constituição, que pretendo fazer uma reflexão nesta coluna, para chegar, no final, à questão do poder na Constituição de 1988. 

Seguindo alguns ensinamentos do Direito Constitucional francês, vamos propor algumas distinções antes de entrar no assunto propriamente. Primeiro, vamos distinguir entre Constituições cujas regras são derivadas de um princípio político básico e as Constituições que aparecem mais como um conjunto de regras que, depois, são interpretadas para dar alguma aparência de conjunto. A distinção se baseia em comentário relativamente lateral de Michel Troper em sua tese de doutorado. Segundo, vamos seguir as propostas para uma teoria do Estado de Olivier Beaud nas quais ele afirma que o fenômeno estatal só pode ser apreendido em sua totalidade se estivermos atentos para duas características do Estado: a soberania e a institucionalidade. De um lado, a soberania é o elemento que descreve a ruptura na fundação do Estado, o caráter supremo do poder que cria o Estado, o poder do pacto social, a força do pensamento político. De outro, as instituições refletem a continuidade, as relações de poder concretas na sociedade, as dificuldades de instituir um Estado completamente novo que o elemento da soberania parece querer ocultar. 

Colocando essas duas propostas teóricas, de Michel Troper e de Olivier Beaud, juntas, proponho olharmos as Constituições brasileiras sob o seguinte prisma. De um lado, teríamos Constituições em que predominou o elemento da soberania. De outro, as Constituições em que predominou o elemento institucional. Nas Constituições em que predominou a soberania, a ruptura se sobressai relativamente à continuidade, o poder criador supera os limites à inovação institucional. Nessas Constituições, retomando Troper, parece haver um compromisso com princípios político-constitucionais a partir dos quais são deduzidas as regras que, ao final, vão dar o desenho constitucional positivo da separação de poderes. Já nas Constituições em que predominou o elemento institucional, a continuidade supera a ruptura. A separação dos poderes parece ser menos deduzida de princípios e mais o reflexo de experiências institucionais passadas, aprimoramentos de práticas institucionalizadas. 

Minha proposta é dividir as Constituições brasileiras em Constituições soberanas e Constituições institucionalistas, sempre de acordo com essa mescla dos comentários teóricos de Troper e Beaud. De forma ainda experimental, proponho que sejam vistas como soberanas as Constituições de 1824, 1891, 1934 e 1937, e como institucionalistas as de 1946, 1967 e 1988. 

A Carta de 1824 pode ser classificada como soberana por ser um documento que reflete um compromisso doutrinário com a monarquia liberal. Esse compromisso é anterior à Carta em si e pode ser comprovado por meio do estudo de diversos documentos que ajudaram a consolidar a independência do Brasil. Em certo sentido, a independência do Brasil se fez contra o liberalismo excessivo da Constituinte de Portugal, e isso se reflete na Carta de 1824, notadamente na existência do poder moderador. O próprio Pedro I dá as diretrizes da carta na sua exposição de motivos ao anteprojeto de Constituição. 

Na mesma linha, a Constituição de 1891 também pode ser colocada entre aquelas que propusemos chamar de soberanas, à falta de nome mais adequado. Também ela reflete compromissos doutrinários prévios com a forma do Estado e a forma de governo. Pouco importa o fato, ou o boato, de que ela seria uma cópia da Constituição norte-americana. Havia um compromisso com a instituição de uma nova forma de governo, a República, e com um Estado diferente, a federação de tipo dualista. Na assembleia constituinte, embora houvesse oposição, os defensores desse novo modelo conseguiram reunir força suficiente para produzir um texto jurídico que, no geral, refletia aquelas ideias. 

A Constituição de 1934 rompe com o paradigma liberal das Constituições anteriores. No campo das relações dos poderes, ela alterou profundamente as funções do Senado Federal (artigo 88 e seguintes) e instituiu a representação classista (artigo 23). Também foi ela que criou o sistema de eleição proporcional para a Câmara dos Deputados (artigo 23). O Poder Judiciário foi fortalecido, notadamente com a criação da Justiça Eleitoral. Na distribuição territorial do poder, ela acabou com o federalismo dualista e instituiu o federalismo cooperativo, com uma distribuição de competências concorrentes (artigo 5º, parágrafo 3º). Essas alterações se inseriam em um ambiente de forte crítica às instituições liberais, consideradas inadequadas para o Brasil. A esse ambiente ideológico correspondeu uma Constituição que aumentava os poderes da União Federal, do Judiciário e do presidente da República, enquanto o legislativo de tipo liberal foi enfraquecido. 

Em 1937, produz-se a Constituição mais autoritária de nossa história. Aquela Constituição, no entanto, não era autoritária apenas por acidente. Seu autoritarismo refletia um compromisso teórico. Reflexões políticas e sociológicas da época defendiam aquele modelo como o único adequado para o Brasil. Ela fortaleceu ainda mais os poderes do Presidente da República, limitou a proporcionalidade na representação dos estados, fortaleceu o Judiciário, e, na sua vigência, deu-se ao processo civil a concepção “autoritária” defendida por Francisco Campos. 
Com a Constituição de 1946, teria início o período das Constituições institucionalistas. 

Em muitas medidas, ela procede a um rearranjo institucional das experiências anteriores, reaproveitando elementos da Constituição de 1891 e da de 1934. Durante a sua vigência, há um inegável reforço do Poder Judiciário, no qual se destaca a consolidação, com a criação de vasta jurisprudência, do uso do mandado de segurança como mecanismo por excelência do controle judicial dos atos administrativos. Contudo, em termos de inovações nas relações entre Poder Executivo e Poder Legislativo, ela é bastante tímida, o mesmo acontecendo com a distribuição territorial do poder. Mais do que formar um conjunto de regras deduzidas a partir de uma ideologia, a Constituição de 1946 aproveita experiências institucionais anteriores. Entre esses aproveitamentos, está o sistema proporcional para a eleição da Câmara dos Deputados. E entre as inovações, o multipartidarismo. A tendência à consolidação do modelo de “presidencialismo imperial” já se manifestou sob aquele regime. A combinação desses três elementos seria repetida em 1988, dando origem ao modelo do “presidencialismo de coalizão”, sistema adotado pela nossa Constituição em vigor e que enfrenta sérias críticas no momento. 

A Constituição de 1967 é problemática para a classificação aqui proposta. É preciso lembrar que ela foi a Constituição do regime militar, cuja obra negativa ainda hoje repercute na nossa política. Contudo, ela não foi uma Constituição autoritária por princípio, como a de 1937. Foi mais a sua prática, cumulada de exceções, que serviu ao autoritarismo militar da época. Dito isso, entendo que, na lógica do tratamento dos três poderes e do federalismo, ela pode ser listada entre aquelas que poderíamos chamar de institucionalista, para ressaltar o elemento da continuidade, em detrimento da soberania e da ruptura. Não havia, por trás das suas normas, uma concepção ideológica constitucional desenvolvida, como houve na Constituição de 1937, mas uma determinação de reação ao que era percebido como um risco decorrente do cenário de polarização política da Guerra Fria. A continuidade, no caso, ficou por conta da tendência de centralização federal e do fortalecimento do Poder Executivo. Um outro elemento, no entanto, deve ser lembrado: a progressiva equipagem do Poder Judiciário para exercer um papel de controle do Estado. 

Feita essa abordagem histórica extremamente sucinta das Constituições brasileiras, passo à Constituição de 1988. Pela repetição do tratamento estrutural dado às relações entre os poderes e ao federalismo, considero que se trata de uma Constituição institucionalista, na qual há mais elementos de continuidade do que de ruptura e na qual não nos parece ter sido seguido um princípio de ideologia constitucional. Evidentemente, ela tem princípios, mas o tratamento dado às instituições que repartem o poder é, claramente, decorrente de experiências constitucionais prévias que, possivelmente, foram consideradas positivas. Assim, na repartição de competências entre os entes federados, a tendência de concentração de poderes na União permaneceu. Da mesma forma, as relações entre Legislativo e Executivo, os mecanismos de seleção dos representantes do povo, o multipartidarismo, tudo isso reflete experiências do passado. O fortalecimento sem paralelo do Poder Judiciário, por sua vez, também reflete uma tendência que já vinha se manifestando desde, pelo menos, a Era Vargas. 

Essa Constituição criou, a partir de elementos de continuidade existentes num ou noutro de nossos regimes constitucionais vigentes desde 1934, o regime do presidencialismo de coalizão, que ora dá sinais de esgotamento. Minha proposta é, a partir da sugestão de classificação aqui esboçada, chamar a atenção para o fato de que esse regime não foi desenhado a partir de uma visão global de ideologia constitucional, mas desde uma tentativa de compor uma união de forças políticas, resultando na repetição de fórmulas institucionais já conhecidas e que, ao que tudo indica, faziam consenso no momento de transição da ditadura para a democracia. Agora, no entanto, talvez seja o momento de repensar o tratamento dado ao poder na Constituição de 1988 desde uma perspectiva mais ampla, contemplando a imaginação de um regime que rompa com esses elementos do presidencialismo de coalizão, como o sistema proporcional para eleição de deputados federais, o multipartidarismo sem critérios corretivos, e o excesso de poderes do presidente da República. Em outras palavras, o momento pode ser propício para novas reflexões constitucionais ancoradas em uma concepção mais profunda do lugar do Estado e do poder político nas nossas vidas. 


Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).

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