"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Memória da Escravidão



A singularidade brasileira.

por: Luiz Felipe de Alencastro

A escravidão no Brasil se estendeu sobre a totalidade do território, envolveu todas as camadas sociais e amarrou a opinião pública nacional em torno de seu sistema.Todos os países americanos tiveram em seu solo escravos africanos.


Mas nenhuma parte do Novo Mundo praticou a escravidão em tão larga escala como o Brasil. Do total de 11 milhões de africanos deportados para as Américas, 44% (perto de 5 milhões) vieram para o território brasileiro num período de três séculos (1550-1850). O outro grande país escravista, os Estados Unidos, que praticou o tráfico negreiro durante um século apenas (1700 e 1808 ), recebeu uma proporção muito menor, perto de 600.000, ou seja, 5,5% do total. No final, o Brasil aparece como o agregado político americano que recebeu o maior número de africanos e que praticou durante mais tempo a escravidão.


Num debate de idéias com o historiador cubano Manuel Moreno Fraginals, o historiador americano Dale Tomich procurou distinguir a escravidão articulada às economias européias dos séculos XVI, XVII e XVIII dos sistemas escravistas que evoluíram no século XIX conectados à Revolução Industrial.


Tomich observa que a produção de algodão, açúcar e café para os mercados dos países industrializados oitocentistas, inseriu as plantações escravistas do Sul dos Estados Unidos, do Brasil, de Cuba e de Porto Rico num quadro bancário, num processo produtivo (uso de máquinas, de transporte ferroviário e de navegação a vapor) e num mercado consumidor (formado por uma participação crescente de classes médias e trabalhadoras européias e norte-americanos) mais evoluído do que o contexto social e econômico predominante nos séculos anteriores.


A análise de Tomich está correta, mas ela lida com fatores econômicos e sociais, fazendo abstração da esfera política, onde ocorre o verdadeiro impacto da modernização do escravismo. E é nesta última dimensão que aparece mais uma vez a singularidade brasileira.Tomemos as diferenças existentes entre Cuba e o Brasil, os dois maiores importadores de africanos na primeira metade do século XIX.


Em primeiro lugar, a condição política cubana -colônia da Espanha até 1901- restringia a margem de manobra dos dirigentes e dos habitantes da ilha. Em seguida, Cuba estava submetida a um jogo complexo de influências, no qual, além de Madri e Londres (interessada na supressão do tráfico negreiro praticado pelos cubanos até 1867) também intervinha Washington. À caça de navios negreiros, a marinha de guerra inglesa não podia penetrar nas águas cubanas porque atraía a oposição da Espanha e dos Estados Unidos.


No Brasil, o quadro era diferente. O país se apresentava como a única nação independente envolvida no tráfico negreiro e dotada de um sistema escravista de dimensões continentais. Declarado ilegal em 1831 pela legislação brasileira editada sob pressão britânica, o comércio negreiro prosseguiu até 1850 e a escravidão só foi abolida em 1888.Note-se as circunstâncias históricas que caracterizam a especificidade do escravismo entranhado no Estado nacional, como nos Estados Unidos e no Brasil.


Deportado da África ou nascido no solo brasileiro, o cativo incorporava-se ao campo das leis civis, comerciais e penais. Tais leis eram debatidas e redigidas no Parlamento, nas assembléias provinciais e nas câmaras municipais. É também nos tribunais brasileiros que se definia a jurisprudência na matéria. Nas faculdades de direito de São Paulo e de Recife, juristas e futuros advogados, cuja vida e profissão se imiscuía no cotidiano dos escravos, estudavam os efeitos desarmônicos da penetração do direito positivo na sociedade escravista.


Era ainda nas instâncias nacionais que se decidia o futuro do sistema, de sua atualização ou de sua eventual abolição e das alternativas presentes no horizonte dos cidadãos. O mesmo ocorria no Sul dos Estados Unidos.


Conseqüentemente, no Brasil e no Sul dos Estados Unidos, o caráter local, nacional, das normas e das leis, levava à refundação da escravidão no quadro do direito moderno e da contemporaneidade. Desde logo, a afirmação da escravidão como fundamento da soberania nacional define, no Sul dos Estados Unidos e no Brasil, um campo histórico específico.


Isto posto, é importante sublinhar também a diferença entre os dois países. Dada a organização federal americana, o abolicionismo conseguiu consolidar-se na esfera regional. Quando o tráfico negreiro para os Estados Unidos foi abolido em 1808, a escravidão já havia sido eliminada em oito Estados e só existia em nove Estados americanos. Dai para frente, o sistema só subsistiu nos Estados sulistas como uma prerrogativa regional vigorosamente combatida pelos outros Estados da federação.


No Brasil, ao contrário, a escravidão se estendia sobre a totalidade do território, envolvendo todas as camadas sociais e amarrando a opinião pública nacional em torno do sistema. Para se ter uma idéia, na província do Rio de Janeiro, o número de escravos (294.000) ultrapassava o número de livres e libertos (264.000). Na cidade do Rio de Janeiro, corte de uma monarquia que pretendia representar a civilização européia no Novo Mundo, viviam na mesma data, por volta de 1850, 266.000 habitantes dos quais 110.000 (41%) eram escravos, formando a maior concentração urbana de cativos das Américas.


Este largo consenso nacional sobre a propriedade escrava compôs o fundamento histórico do escravismo brasileiro.


(Luiz Felipe de Alencastro é professor de história do Brasil na Universidade de Paris-Sorbonne e autor de O trato dos viventes - Formação do Brasil no Atlântico Sul - Companhia das Letras).

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