"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

D.João VI e a formação da diplomacia brasileira.


por José Alexandre Altahyde Hage


O ano de 2008 marca os duzentos anos da chegada da família real portuguesa ao Brasil, então a mais importante colônia lusitana. A chegada do principal membro da Corte, Dom João VI, em 1808, é acompanhada de grande simbologia que contribui enormemente para a transformação cultural, política e social da grande posse americana. Na leitura de Caio Prado Junior, a presença do monarca no Rio de Janeiro fez com que o espírito de autonomia nacional, bem como o início da construção institucional tivesse ímpeto, cujo desfecho se deu em setembro de 1822 (Caio Prado Junior. Evolução Política do Brasil e Outros Estudos. São Paulo, Brasiliense, 1957).


De fato, com Dom João VI no Brasil a paisagem e a atmosfera política e cultural havia muito se alterado. Para começar, foi necessário dar ares mais cosmopolitas à antiga capital brasileira com novas instituições que pudessem auxiliar na criação de um centro metropolitano. A transferência de artistas e estudiosos como Taunay, Martius e outros ainda são marca do interesse de se compreender as terras dos trópicos para nelas viver por muito tempo sob o Reino Unido de Portugal e Brasil.


A fundação da Escola de Belas Artes, atualmente integrada à UFRJ; a Academia Naval e a Faculdade de Medicina da Bahia, agora da UFBA, as três feitas entre 1810 e 1816, são exemplos da atividade joanina na mudança para fazer do Rio de Janeiro uma cidade de referência internacional. A importação da Biblioteca Real, atual Biblioteca Nacional da avenida Rio Branco também está neste âmbito.


Mas para congruência deste breve texto uma das relevantes marcas da família real no Brasil foi a tentativa de se fazer uma política externa que, no final das contas, fosse lograda ao crescimento da colônia, sede do império ultramarino português. Quando Dom João VI apareceu, junto com ele veio a artimanha e a “escola diplomática” lusitana que, em grande parte, criou raízes no Brasil e ajudou a dar origem ao Itamaraty no que diz respeito aos valores e ações - fatores que devem procurar ser permanentes no comportamento da Casa até neste momento.


Dom João VI ao montar os arquivos e exercitar os trabalhos diplomáticos da Lisboa tomada por Napoleão não deixou de modo claro uma linha divisionária que separasse os interesses metropolitanos dos brasileiros. Quais eram portugueses e quais os brasileiros precisamente? Daí a fundição da colônia com o centro metropolitano dando origem a algo novo para a época e talvez nunca mais repetido em toda a história, uma colônia que tem status de centro decisor.
Com efeito, não deixa de ser licito afirmar que os valores atuais ou trabalhados tradicionalmente pela Chancelaria brasileira sejam herdados dos portugueses em grande monta. Afinal, o gosto pela contemporização com atores ou Estados de maior projeção de poder, a valorização dos tratados e das normas acordadas pelo direito internacional etc não são ações diplomáticas lusitanas?


O grande historiador José Honório Rodrigues, em companhia de Ricardo Seitenfus, diz que as lembranças e maneiras de ser da diplomacia portuguesa se integraram à nacional que, guardadas as devidas proporções, as utilizou em momentos cruciais da historia nacional, sobretudo administrando conflitos junto às republicas sul-americanas, procurando esgotar suas demandas consideradas contrárias ao interesse nacional brasileiro, mas sem deixar sinal nem de arrogância, nem de leniência que pudesse comprometer a autoridade do País (José Honório Rodrigues e Ricardo Seitenfus. Uma História Diplomática do Brasil: 1531 a 1945. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1995.). Para os autores isso se deu ainda mais no período imperial, em que a existência de uma unidade política de regime monárquico era vista por estranha em uma América republicana.


A diplomacia bragantina, sob Pedro II, teve o intuito de manter o Brasil incólume na maneira do possível perante as republicas, mormente, as platinas em que Argentina tencionava abarcar os frágeis Uruguai e Paraguai aos seus domínios de “vice-reinado”, como preferia Rosas. Na ótica de Rodrigues e Seitenfus o que fez o Império fora apenas manter o território fora das conflagrações e crises de toda a ordem que havia na parte sul do continente.


Crises, cujo poder de irradiação em grande parte atingia o equilíbrio das fronteiras no Rio Grande. Daí as intromissões cuidadosas do Rio de Janeiro para operar equilíbrio de poder na área do Prata, mas sem necessariamente imprimir relação de hegemonia.


Na verdade, a valorização do período joanino no Brasil foi tarefa considerada árdua de um importante historiador, mas diplomata relativamente apagado, Manuel de Oliveira Lima. Oliveira Lima havia exercido a cabeceira na Embaixada em Washington, em época coincidente com a de Gilberto Freyre na Universidade de Columbia.


Freyre após sua permanência em Nova York traz na cabeça o feitio de Casa Grande & Senzala, livro não considerado de interesse diplomático de modo direto e reto, mas que aponta passagens sensíveis ao leitor mais atento para compreender a forma de como o colonizador conseguiu manter integra uma malha territorial deste tamanho e apesar de todos os contratempos políticos da época. Os dois pernambucanos do Recife eram amigos e trocavam idéias sobre a cultura brasileira.


Já Oliveira Lima fora transferido para a capital norte-americana com livro publicado para fazer justiça ao trabalho feito pela Corte de Dom João VI. Como se fosse uma pecha eterna o monarca português já era visto com imagens depreciativas sobre sua pessoa e sua inteligência. Assim, Oliveira Lima procura escrever obra vingadora para o estadista português - trabalho que virou clássico brasileiro. O livro é Dom João VI no Brasil que irá informar boa parte da artimanha diplomática e, por que não, geopolítica da “colônia metropolitana”.


No começo o autor descreve as urgências e as razões política que levaram o principe-regente a deixar Lisboa e rumar para o sul. A questão mais premente seria a de conservar e proteger efetivamente o império no mais que pudesse. Antecipando um século e meio o escritor italiano Lampedusa, em O Leopardo, Dom João VI preferia perder os anéis aos dedos.


No Brasil o estadista procurou definir a geografia a favor do Brasil. Valendo-se de artimanhas e interpretações particulares das cartas geográficas ele tencionou fazer com que o desenho territorial fosse mais bem definido, indo ao encontro do que seria conveniente para o Rio de Janeiro. Por exemplo, aumentar a presença política, militar e econômica do Brasil na região do Prata era uma constante. Tudo isso porque fatalmente seria por certo o encontro entre o Brasil e a Argentina pelo domínio da região mais setentrional.


A idéia joanina era justamente a de dominar a margem oriental do rio da Prata, assegurando controle no Uruguai (Cisplatina) e afastando as perturbações de toda ordem no já complicado Rio Grande.Desta forma, o mesmo empenho político-diplomático para dilatar o território nacional ao sul deveria se reproduzir ao norte sobre território, cujo oponente era grande potência, embora machucada por anos de guerras e quedas violentas nos fatores do poder nacional: a França. O Império Luso-Brasileiro disputaria a região do Amapá/Guiana com Paris.


Tomando Caiena logo de pronto a diplomacia estava aproveitando o período de relativa fraqueza da França em virtude das guerras napoleônicas e os limites impostos pelo recém-feito Congresso de Viena, e 1815.
O Rio de Janeiro entendera que uma maior definição geográfica para o Império seria também arredondar o território ao norte, buscando saída com proximidade ao Caribe. O resultando esperado seria a defesa do território em duas áreas consideradas das mais delicadas para o Brasil: o Prata e Amapá.


Dom João VI toma Caiena dos franceses e tenta ganhar tempo para que a causa fosse ganhada em momento que Paris não tinha condições militares e políticas para descer ao sul e tomar sua antigas posses. No fundo a diplomacia luso-brasileira acredita fazer uma justiça, um reparo, visto que havia queixa de que a França havia vilipendiado a presença portuguesa por volta do século XVII, quando da reconstrução de Portugal.


Ainda que muitos projetos joaninos não houvessem logrado progresso longo sua imagem ou exemplo foi marcante para trabalhos futuros. Rodrigues e Seitenfus são da opinião de que o Barão do Rio Branco muito se valeu do empenho luso-brasileiro para defender limites junto à Argentina, Questão de Palma, e à França, quando da dilatação mais ao norte do Amapá. Por conseguinte, dando a entender que o espírito trazido em 1808 perpassava os trabalhos de Rio Branco, pois essas operações de reconhecimento foram feitas sob a letra do direito internacional, não tendo o Brasil a necessidade de contestação armada.


É certo que toda figura, ou obra, histórica pode ser contestada. São construções ideológicas para aqueles que seguem o raciocínio marxista. Podem os observadores ter suas razões.


Aproveitando atmosfera que fora favorável nos anos 1980 e 1990 houve muita tentativa de revisão histórica, procurando inaugurar um tipo de historia que não fosse a dos vencidos, a oficial, mas sim daqueles que não têm voz. Não há dúvidas de que essas manifestações são democráticas e legitimas, mas de pouca serventia tem para a sofisticação cultura e melhor preparo dos pesquisadores que, realmente, querem ter seus textos respeitados (Francisco Doratiotto escapa dessa moda com seu Maldita Guerra. São Paulo, Cia das Letras, 2002.


O professor da UnB procurou fazer estudo reto da guerra do Paraguai que não caísse ao gosto de um tipo de militância político-universitária, cujo mote era de que o Paraguai possuía condições sociais e econômicas moderníssimas em face do Brasil e Argentina.


Por temor da concorrência de um poderoso ente sul-americano a Grã-Bretanha arquitetara a guerra que acabou com o Paraguai. A investigação de Doratiotto nega esta cultura da guerra que fora muito em voga.).


Sob a alegação de serem historiadores ou pensadores a serviços das classes dominantes muitas obras clássicas foram renegadas a favor daquelas assumidamente partidárias. E por causa disso, entre outras coisas, muitas passagens de nossa historia diplomática foi desprezada.Mas a questão não se debate aqui longamente. Há quem possa dizer que a vinda da família real não operou o processo que pudesse, ao fim, lograr condições de fazer o Brasil a grande potência que deveria ser. Um dos pontos debatidos como limitados da ação joanina foi a famosa abertura dos portos, logo em sua chegada ao Rio de Janeiro.


Tal abertura havia privilegiado muito a Grã-Bretanha em detrimento dos nacionais, o que ocasionou atraso econômico.Amado Cervo e Clodoaldo Bueno já escreveram algo sobre o tema (Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno. Historia da Política Exterior do Brasil. Brasília, Universidade de Brasília, 2002.). Os dois reconhecem que houve muitas falhas na constituição do tratado dos portos amigos; concordam também que as obrigações luso-brasileiras foram leoninas para uma unidade política com dificuldades.


Contudo os autores fazem algo positivo para o assunto em questão, e nem sempre evidente, reconhecem que toda a ação de caráter diplomático não é desvencilhada das condições econômico-políticas e formas sociais com a qual se organiza o Estado. A assinatura da abertura dos portos não foi voluntária, foi fruto da fraqueza do ator sul-americano perante uma grande potência. Mas Cervo e Clodoaldo acreditam que poderia ser pior.


O período de liberalismo imposto por Londres, com a abertura dos portos, antes de tudo, ao Brasil pode ter sido o dínamo que fez a diplomacia brasileira esperar ansiosamente por sua conclusão. Logo após as variadas crises de instabilidade política e lutas internas que perpassaram os anos de 1820 e 1830 abriram caminho para uma época de maior altivez, que pudesse ajudar a construir o poder do Império.


Daí por diante o Brasil não será, de fato, uma grande potencia, mas angariará respeitabilidade internacional e credibilidade diplomática.A leitura dos textos sobre historia da política exterior brasileira, dos clássicos do pensamento político nacional, podem jogar luzes sobre esse importante período que certamente tem a ver com a maneira de como o Brasil existe e se comporta tanto no âmbito doméstico quanto no internacional. Relembrar a obra joanina nos trópicos é um bom passo para isso.



José Alexandre Altahyde Hage é Doutor em Ciência Política pela Unicamp e professor do curso de Relações Internacionais da Trevisan – São Paulo (alexandrehage@hotmail.com).

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