"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

domingo, 26 de setembro de 2010

Império da bagunça


Nos Estados Unidos, o que costumamos chamar de "Estado Democrático de Direito" é normalmente chamado de "Rule of the Law". É difícil traduzir a expressão "Rule of the Law" para o português em poucas palavras mas, seguramente, "Estado Democrático de



Direito" não é a melhor tradução. Uma tradução mais feliz é a expressão "Império da Lei". Mas encontrar uma tradução em poucas palavras é menos importante do que assimilar seu


significado em toda a sua profundidade.

"Rule of the Law", ou "Império da Lei" é um sistema de governo onde quem está no poder são as leis, não as pessoas.

Quando esse sistema de governo é levado a sério, seus princípios são rigidamente observados e cumpridos, pouca diferença se nota quando um governante sai de cena e outro entra em seu lugar. Pois, como o explicado acima, quem está no poder não são as pessoas, mas as leis. E embora as pessoas mudem com certa frequência (uma vez a cada quatro anos é uma frequência alta, na escala histórica de tempo), as leis mudam lentamente.

Assim, mudanças de governantes, apesar de frequentes, provocam pouco trauma porque mal se sente esta mudança, já que o poder é exercido por leis e não por pessoas. Mudanças de lei provocam mudanças mais profundas, mas elas ocorrem em intervalos muito maiores de tempo.

Para que seja possível implementar um sistema de governo baseado no "Rule of the Law" é importante que a população seja capaz de identificar e compreender rapidamente as leis.

Se são elas que governam, o povo precisa conhecê-las pois, caso contrário, não terão como servir a seu governante.

Claro está que, naquele país assim como no nosso, existe a figura do advogado profissional que tem um entendimento da lei mais profundo do que aquele que se espera de um cidadão médio.

Mas o "cidadão médio" daquele país tem um entendimento das leis lá vigentes muito mais profundo do que um "cidadão médio" de um país como o Brasil onde o "Estado Democrático de Direito" vigora de uma forma distante da preconizada pelo sistema de "Rule of the Law".

Nos Estados Unidos certos princípios legais são ensinados em escolas primárias para que as pessoas os coloquem em prática já desde o início de suas vidas. Um exemplo singelo:

Versão Estadunidense:

"Ninguém será condenado sem antes ter uma chance de dizer algo em sua defesa."

Versão Brasileira:

"Constituição Federal


Art. 5° (...)


(...)


LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;"

Os dois dispositivos legais parecem à primeira vista perfeitamente equivalentes. Mas não são. Uma análise aprofundada mostra diferenças sutis porém extremamente significativas


que servem como um exemplo perfeito da diferença entre o "Estado Democrático de Direito" brasileiro e o "Rule of the Law" estadunidense.

O simples linguajar usado nas duas versões mostra a primeira diferença.

A versão brasileira usa um linguajar extremamente burocrático. Para que o direito garantido na versão brasileira possa ser exercido, é necessário que se cumpram requisitos formais: Um processo judicial ou administrativo formalmente instituído ou uma acusação formalizada.

Tudo muito burocrático, cheio de formalidades. A linguagem é hermética, difícil de ser compreendida por alguém que não tenha formação na área do Direito.

A versão estadunidense, ao contrário, é simples, fácil de ser entendida e não apresenta requisitos burocráticos. Não exige a instauração formal de processo. Pela versão estadunidense, um pai não pode colocar seu filho de castigo sem antes ouvir sua defesa pela falha que lhe é imputada.

O mesmo se exige de um professor ao fazer uma anotação na ficha disciplinar de um aluno. A versão brasileira é uma exigência legal, a ser demandada em juízo por um advogado quando necessário. A versão estadunidense é um valor cultural, a ser praticado em todos os momentos da vida de um cidadão.

A segunda diferença decorre da primeira: a abrangência do dispositivo. Enquanto praticamente só pessoas formadas em Direito conhecem o dispositivo brasileiro, o dispositivo estadunidense é, de regra, conhecido por qualquer pessoa que concluiu o ensino fundamental.

Mais um exemplo para deixar ainda mais clara a diferença:

Versão estadunidense:

"Todo homem é considerado inocente até sua culpa ser provada"

Versão brasileira

"Constituição Federal


Art. 5°(...)


(...)
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;"

Note-se que na versão brasileira, o dispositivo só vale se a acusação for criminal. Na versão estadunidense vale para qualquer acusação de infração de qualquer norma, mesmo que não seja crime.

Muitos outros exemplos poderiam ser citados, mas não é objetivo deste artigo se prender aos exemplos. O que existe de comum em todos os exemplos é que em países, como os Estados Unidos, que levam a democracia a sério, a tarefa de fiscalizar o cumprimento da lei é delegada a toda a população.

Para isso, as leis mais fundamentais são reduzidas a valores culturais que são ensinados aos alunos da rede pública e praticados no dia-a-dia, não somente nas cortes judiciais. Os cidadãos cobram isso uns dos outros nas suas relações diárias. Mas para isso têm que conhecer as leis, ao menos seus princípios mais básicos.

No "Estado Democrático de Direito" brasileiro, essa tarefa é completamente afastada do cidadão comum. Só a um grupe seleto de "iluminados" é dado conhecer a lei. Somente a eles é dado interpretar seu significado. Por isso existe um ditado brasileiro que diz "De cabeça de juiz e bunda de criança ninguém sabe o que pode sair".

Cada juiz tem liberdade total para interpretar a lei de acordo com suas convicções pessoais. Não é a lei que está no poder, mas as pessoas, que fazem da lei o que querem. Algo assim é impensável num país que vive sob a égide do "Rule of the law".

De que adianta ter um sistema de leis democrático se delegamos aos que estão no poder o direito de interpretá-las da forma que quiserem?

De que adiantam leis se pessoas diferentes interpretam-nas e aplicam-nas de formas diferentes segundo seus interesses casuísticos? Que garantias elas podem trazer ao cidadão se não é dado a ele sequer conhecê-la e é aceito que quem está no poder pode dar a ela qualquer interpretação que queira?

Só pode haver democracia com a aplicação do princípio do "Rule of the Law" ou "Império da Lei". Caso contrário, viveremos na ditadura do "Império da Bagunça", no qual o governante da vez interpreta a lei da forma como lhe convier, inclusive interpretando a mesma lei de formas diferentes em situações semelhantes, desde que isso interesse a quem estiver no poder em cada momento.


por : Mário Barbosa Villas Boas

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