"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Lula e o Futuro. Herança e Perspectivas



O Brasil chega à segunda década do século XXI num dos melhores momentos de sua história. A economia deve encerrar 2010 com uma taxa de crescimento próxima de 7%.


Não se imagina que será possível manter o mesmo nível de atividade pelos próximos anos, mas a maioria dos economistas concorda que o País tem condições de manter um crescimento anual médio em torno de 4%. O desemprego encontra-se num de seus patamares mais baixos e a inflação é mantida sob controle.

A desigualdade permanece como um pesadelo que envergonha os cidadãos e ajuda a entender um ambiente assustador de violência e insegurança nas grandes cidades. Mas é confortador constatar que milhões de brasileiros deixaram o universo dos miseráveis e que a classe média – mesmo em padrões modestos de renda na comparação com outros países – hoje forma o maior grupo social do País.



Nos tempos do milagre econômico a propaganda do regime militar anunciava com orgulho que o Brasil hospedava a décima economia industrial do planeta. Depois de andar para trás nos anos perdidos da década de 1980, hoje o País possui o oitavo PIB mundial e produz um volume de riquezas que permite encarar, no prazo de uma geração, a possibilidade de se tornar a quinta maior economia do mundo. 


Nessa situação, é compreensível que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva exiba os maiores índices de aprovação popular da história dos institutos de pesquisa. 

Numa campanha presidencial destinada a tornar-se um caso de estudo nas universidades do futuro, a sucessão de Lula exibe traços inéditos. Os três candidatos relevantes disputam a herança do presidente. Entre eles, dois saíram do próprio governo e do PT. 


Quando se acrescenta uma quarta candidatura, de Plínio de Arruda Sampaio, do PSOL, são três em quatro. José Serra, o único com outra origem política, não se apresenta como um concorrente de oposição. Sua campanha diz que “o Brasil pode mais”. O jingle de campanha cita o nome do presidente para apresentar o candidato do PSDB como seu herdeiro. 

Governos com alta aprovação popular costumam gerar ilusões em governantes, candidatos e eleitores. É grande a tentação de imaginar que nada mais resta a ser feito e que o horizonte reserva apenas tarefas agradáveis e de fácil solução – pois o mais grave e difícil já teria sido realizado. 


A visão frequente é que os problemas principais foram encaminhados, que as soluções mais importantes já foram testadas e que todas as armadilhas que o futuro reserva podem ser resolvidas pela sabedoria do passado. Nunca foi assim. 


Próxima década: oportunidades e desafios.

O País entrará na próxima década com um número igual de oportunidades e desafios. As oportunidades são a parte agradável do negócio. Num mundo que se urbaniza em ritmo acelerado, a demanda por alimentos irá explodir nas próximas décadas – uma ótima notícia para um país com imenso potencial agrícola. O debate sobre novas energias – onde o Brasil sempre tem algo a oferecer desde o programa pioneiro de etanol – encontra-se na ordem do dia. 



Ao mesmo tempo, os estudiosos sabem que será preciso aguardar algumas décadas para definir uma nova matriz energética para atender às necessidades de bilhões de novos consumidores que estão chegando ao mercado pela porta dos países emergentes e, até lá, o petróleo segue uma fonte segura e barata para mover automóveis e indústrias – outra boa notícia diante das reservas bilionárias do pré-sal. 

Entre 2010 e 2016, o País irá receber enormes investimentos para hospedar a Copa do Mundo e as Olimpíadas, abrindo espaço para uma correnteza de negócios e obras públicas que vão gerar empregos e elevar a renda. 

Celso Furtado e o petróleo da Venezuela

Quando se olha para o horizonte, portanto, seria difícil encontrar uma paisagem melhor. A vida no chão da realidade é mais complicada. Em Ares do Mundo, terceiro volume de suas memórias, o professor Celso Furtado lembra uma viagem que fez à Venezuela nos anos 1970, logo após um dos choques do petróleo, que mergulharam a humanidade num universo de incerteza e perplexidade, mas criaram um ambiente de prosperidade sem fim nos países produtores. 



O professor descreve aquele momento como uma chuva de ouro, uma fartura delirante que abria uma oportunidade única para o desenvolvimento do país. Furtado revela ainda que chegou a rascunhar um projeto de reformas estruturais para adaptar a Venezuela a uma condição de maior equilíbrio social e progresso econômico – mas foi um esforço inútil.

Num momento em que Cadillacs, Mercedes e Jaguares entupiam o trânsito das principais ruas de Caracas, acessíveis até mesmo ao cidadão comum, ninguém queria prestar atenção em planejamento econômico e projetos de longo prazo. O saldo foi que o país perdeu uma chance histórica de romper seu atraso e, três décadas depois, permanece dependente de uma riqueza única.



O Brasil já conhece até em forma de receita de bolo a lista de carências e prioridades do futuro. A relação inclui desde problemas que não são resolvidos porque ninguém sabe como fazer isso – o caso mais notável é a reforma tributária – e também questões que começam a ser encaminhadas após a construção de um respeitável consenso político, como a educação. 


A menos que se queira enfrentar um retrocesso medonho na saúde pública, será preciso encarar o rombo deixado pela extinção da CPMF, que acabou eliminada após um debate na agenda errada – da redução da carga tributária. No encaminhamento da reforma política, cabe encontrar caminhos para modificar um sistema que produz distorções e desvios que todos conhecem. 


Há questões urgentes que podem ser resolvidas e terão de ser encaminhadas, contudo. As carências atuais da infraestrutura brasileira produzem um prejuízo calculado em us$ 40 bilhões por ano, em negócios atrasados ou desfeitos, acidentes que podiam ser evitados, multas e cancelamentos. Num processo perverso, onde a pressão ambientalista teve um papel que não pode ser ignorado, a construção de hidrelétricas ficou para depois e o País será obrigado, cada vez mais, a usar usinas termelétricas – mais poluentes e muito mais caras, o que terá um peso nos preços pagos pela indústria, afetando as condições de crescimento. 

Apesar da proteção de um colchão de us$ 240 bilhões em reservas, cedo ou tarde será preciso encarar a valorização do real frente ao dólar, sob o risco de o País enfrentar uma crise nas contas externas e desindustrializar-se em ritmo acelerado.



Embora o crescimento dos últimos anos seja digno de comemoração, pois representa o dobro do que se obtinha na década anterior, o desempenho de economias do mesmo patamar que a brasileira demonstra que o País até poderia obter um avanço maior se fosse capaz de conviver com juros mais baixos – o que exige uma inflação menor e uma situação fiscal mais segura. 

Uma das melhores contribuições recentes para a evolução de nosso conhecimento político foi a afirmação do candidato José Serra, em entrevista no Jornal Nacional. Serra disse que não há governo na garupa. Embora seja uma observação sob medida para um candidato obrigado a enfrentar uma adversária apoiada por um presidente popularíssimo, é uma frase totalmente verdadeira. 



Todo governo está condenado a enfrentar sua própria conjuntura, a construir sua identidade e escrever a própria história. 

FHC e Lula: o legado de cada um

A ideia é útil, também, para colocar em seu devido lugar uma injustiça que boa parte do PSDB comete quando argumenta que tudo o que se faz de bom no Brasil depois de 2003 é a pura continuidade das boas práticas patentea-das por Fernando Henrique Cardoso a partir de 1994. Pode-se comemorar a sequência de dezesseis anos de governos que acumularam realizações infinitamente acima da média dos anos iniciais da chamada Nova República, com José Sarney e Fernando Collor, mas a realidade não é assim. 



FHC cumpriu a missão histórica de derrubar a inflação com o Plano Real. Deixou uma importante Lei de Responsabilidade Fiscal, que foi o ponto de partida para o controle sobre os gastos do Estado, e realizou uma reestruturação do sistema bancário que seria de grande valia no momento em que o País foi obrigado a enfrentar a crise mundial de setembro de 2008. 

Mas, se o espetáculo real da política pode ter momentos de grandeza fora das peças de marketing e dos maus livros de história, isso se deve àquelas horas em que o destino prepara surpresas aos sábios, desafia o conforto dos acomodados e questiona crenças consolidadas dos governantes. Em oito anos de governo, Lula também fez sua aposta e é absurdo tentar esconder que se saiu vitorioso. 



Abençoado por uma conjuntura na qual o crescimento regular dos gigantes asiáticos como a China e a Índia alimentou saltos históricos em nossas exportações, Lula governou obcecado pelo crescimento e produziu um conjunto de políticas públicas com a prioridade de ampliar o mercado interno. 


Abriu as torneiras do Estado, investiu, negociou e pressionou a ponto de muitas vezes ser acusado de voluntarismo. O salário-mínimo teve um crescimento real superior a 50%, gerando um beneficio considerável para os trabalhadores mais humildes e quase dois terços dos aposentados. O crédito dobrou em relação ao PIB, os programas de transferência de renda cresceram de forma gigantesca. 


No combate à informalização do mercado de trabalho, criou-se uma dezena de milhões de empregos com carteira assinada, invertendo uma tendência de duas décadas pela qual os assalariados perdiam direitos e garantias presentes na legislação desde 1943 e raramente obtinham vantagens compensadoras. 


Numa definição que sublinha sua visão sobre o papel do Estado – e de si próprio – no funcionamento da economia, Lula disse num comício da campanha de 2010 que “foi preciso aparecer um operário socialista para ensinar capitalismo para nossos capitalistas”. Para além da autoglorificação, a frase possui um elemento de realidade. 

Dinheiro público foi usado para financiar a fusão de grandes grupos econômicos, muitas vezes a partir de argumentos duvidosos, como a necessidade de o País possuir uma grande empresa nacional de telecomunicações para enfrentar a concorrência estrangeira – até que, pouco tempo depois, ela foi obrigada a aceitar a parceria de um sócio português. Num ativismo poucas vezes registrado na história, e que envolve também empresas médias e até pequenas, o BNDES tornou-se o maior banco de desenvolvimento do mundo, com um volume de empréstimos seis vezes maior do que no final do governo FHC. 

2011: debate sobre investimentos privados

O verdadeiro debate deixado para 2011 envolve o patamar dos investimentos privados, que ainda não retornaram ao nível em que se encontravam antes da crise de 2008. A este respeito, há uma certeza e uma dúvida. A certeza é que, sob o governo Lula, o Estado voltou a atuar na economia com um empenho que não se via há muito. 



A dúvida é saber se isso ocorreu em função de uma opção política do governo, ou se foi a alternativa possível numa conjuntura em que boa parte do empresariado fechou o cofre e preferiu evitar riscos, a exemplo do que ainda acontece em vários países. Não se pode descartar a possiblidade de que as duas hipóteses sejam verdadeiras. 

O lugar do Estado

A crise financeira de 2008 teve a utilidade de lembrar a importância universal do fator humano na economia – isto é, dos governantes, seu preparo técnico, sua visão política e compromissos que dizem respeito a toda a população. Por trás do maior colapso econômico em 80 anos, a crise trouxe de volta o debate sobre o papel do Estado. Ficou difícil dormir com a crença de que os mercados podem proteger a riqueza dos homens, a tranquilidade das famílias e o futuro das novas gerações. 

Já pertence aos manuais de jardim de infância da Ciência Econômica a lição de que a economia de mercado pode ter um papel positivo na criação de riquezas, que os bancos são capazes de cumprir uma função insubstituível no deslocamento de crédito e na ampliação das oportunidades de investimento. 



Mas a crise também lembrou de forma dramática que é preciso mantê-los sob vigilância permanente, sob o risco de jogar o futuro da humanidade num cassino dirigido por executivos irresponsáveis e inimputáveis, que jamais pagam a conta de seus prejuízos, como gosta de recordar o Prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz. 

O Brasil e a crise global de 2008

Até hoje os economistas discutem o tamanho real da crise de 2008 no Brasil, onde a presença dos derivativos nem de longe comprometia ramos inteiros da economia, como nos Estados Unidos e em parte da Europa. 



É muito provável que não houvesse um tsunâmi na costa brasileira nem de outros países emergentes. No caso específico do Brasil, o sistema financeiro não só colheu os benefícios da reforma bancária do governo FHC, mas também encontra--se blindado por taxas de juros altíssimas, que lhe permite recolher gordos rendimentos sem correr o risco natural de sua atividade, que é emprestar dinheiro ao maior número possível de clientes. 

Mesmo assim, a maioria dos analistas apostou no pior, na época. Grandes empresas suspenderam novos investimentos para ver o que ia acontecer e o desemprego disparou em poucos meses. Incapazes de renovar linhas de crédito no exterior, boa parte dos bancos privados deixou de emprestar.



Os governos estaduais se encolheram e até discutiam medidas para facilitar demissões à margem da CLT, sem custos imediatos para o setor privado. Convencido de que estava em jogo o destino de seu governo e seu próprio legado futuro, Lula agiu como se estivesse convocando o País para uma guerra, numa reação que incluía clássicas medidas de caráter anticíclico e apelos pela TV, nos quais cada cidadão era chamado a colocar o dinheiro no bolso para assumir sua responsabilidade contra o desemprego e o risco de recessão. 


Com o passar do tempo e a recuperação relativamente rápida da economia brasileira, o presidente se transformou em produto de exportação, como se veria nas reuniões entre chefes do G-20, quando acumulou elogios fora do País e até ganhou um recém-criado Prêmio de Estadista no Fórum Empresarial de Davos. A recuperação brasileira tornou-se pauta obrigatória em encontros de chefes de Estado. Transformou nossas autoridades econômicas em interlocutoras dignas de audiência em eventos internacionais.

Obsessão pelo crescimento

Essa reação ajudou Lula a fixar sua aposta com a mensagem política segundo a qual o Brasil não tem alternativa fora do crescimento, visão que vale para o próprio presidente. Ao contrário da maioria absoluta dos governantes, do Brasil e também de outros países, que podem escorar-se em outras forças políticas quando as coisas não vão bem, Lula assumiu o Planalto com a convicção de que seu governo não poderia dar errado. 



A ideia está longe de ser uma pura frase de marketing. Envolve a certeza profunda de que seu destino político não teria salvação longe do apoio popular. 


Embora tenha reconstruído sua personalidade política ao longo dos anos, deixando a condição do sindicalista barbudo que aparecia de camiseta em debates políticos da TV para encarnar o personagem de pai da Pátria patenteado no Brasil por Getúlio Vargas, Lula continua um político que tem sua base de apoio no cidadão comum, no homem da rua, no desassistido – aquele para quem a única saída é crescer ou crescer.

Como se apreende pela leitura do artigo “Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo”, de André Singer, professor de Ciência Política e porta-voz de Lula no primeiro mandato, essa característica tornou-se ainda mais nítida ao longo do governo. Entre 2002 e 2006, a base eleitoral de Lula ganhou uma fatia crescente de eleitores pobres e miseráveis, que formam a clientela preferencial do Bolsa Família e dos aumentos no salário-mínimo. 

Em função de sua biografia e de suas ideias, Lula tem um histórico de tensão nas relações com os mercados. Em 2002, quando sua candidatura dava sinais claros de que seria vitoriosa nas urnas, o dólar disparou e a inflação voltou a subir, ajudando a criar um ambiente hostil que se prolongou até depois da vitória e da posse, obrigando o novo governo a consumir o primeiro ano de mandato com a tarefa de arrumar a casa antes de estimular o crescimento. 



Como se fosse uma pura questão técnica, um executivo do Citibank criou o Lulômetro. 


Diante do sucesso do governo, das oportunidades de negócio e de investimentos que o crescimento sempre oferece, com o passar dos anos não faltaram empresários dispostos a dar respaldo e até sustentar candidaturas de Lula, como se viu em 2006 e especialmente em 2010. Mas sempre foi um apoio cauteloso, não orgânico, condicionado a resultados, com poucos compromissos de fundo, baseado na perspectiva compreensível de agradar um vitorioso. 

A clientela de Lula, aquela onde jogou o destino do governo e seu próprio futuro, é outra. “Mexeu com Lula, mexeu comigo”, dizia um slogan do sindicalismo bancário de São Paulo, quando, durante o mensalão, surgiram pressões que poderiam levar o presidente a um processo de impeachment. 

De olho na sua sobrevivência, naquela ocasião Lula também foi à TV. Pediu desculpas, tomou distância das responsabilidades, afastou-se dos ministros que haviam sido acusados e consolidou seu modo particular de governar. 

Bonapartismo, ou a relação direta com as massas 

O estilo Lula de governar integra a escola que os manuais de ciência política definem como bonapartismo, forma de exercício político reservada às personalidades que têm uma relação direta com as massas da população – estão acima dos partidos, dos movimentos sociais e dos interesses específicos das classes sociais. Agem fora das relações convencionais de poder, possuem outros recursos de negociação. Mantêm uma convivência tensa com as instituições, em limites que se aproximam do transbordamento. 

Ao longo do governo Lula, os partidos se esvaziaram, os sindicatos tornaram-se peças articuladas pelo poder de Estado e velhos inimigos foram recrutados para agir como subordinados. Confrontando-se com um aparelho de Estado lendário pela inércia burocrática, pela impotência e pela incapacidade de dar resposta a problemas importantes, onde atos de sabotagem são comuns e os ninhos de corrupção também, Lula abriu brechas e criou seu espaço para atua-r. 



As críticas ao Programa de Aceleração do Crescimento costumam compará-lo com o II Plano Nacional de Desenvolvimento, elaborado por Ernesto Geisel, o penúltimo presidente do ciclo militar. Nos dois casos, a mão do Estado foi usada para mobilizar recursos, definir prioridades e cumprir tarefas econômicas. Em Geisel, essa força se apoiava nas baionetas. Em Lula, que já fez elogios públicos à política econômica de Geisel, baseava-se na aprovação popular. 

O presidente pode enquadrar ministros, demitir e recrutar aliados, anunciar e acompanhar grandes projetos graças a essa mercadoria que, num regime democrático, equivale a reserva de poder. 



Convencido de que o exercício de governar está longe de ser uma prática harmoniosa, Lula dedicou boa parte de seus oito anos em Brasília a arbitrar divergências no interior da equipe econômica, o verdadeiro coração do governo, onde ministros e conselheiros alinhados com o chamado desenvolvimentismo levaram uma luta sem fim contra o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. De olho no prestígio internacional crescente de Meirelles, Lula foi o árbitro de todas as disputas – sempre a favor do presidente do BC. 

O estudo clássico sobre o bonapartismo é o 18 Brumário de Luís Bonaparte, onde Karl Marx se dedica a decifrar o golpe de Estado que permitiu ao sobrinho de Napoleão assumir o governo da França pelo prazo de duas décadas – primeiro como presidente da República, em seguida como ditador apoiado num plebiscito com 7,5 milhões de votos, por fim como Imperador, com 95% dos votos. 



Herdeiro político de Napoleão, Luís Bonaparte fez um governo com apoio de conservadores – que temiam a revolução que surgira nas ruas de Paris –, de burgueses interessados na paz social e no progresso econômico, e também dos militares, nostálgicos de glórias maiores. Jamais deixou de cultivar e alimentar a simpatia da população pobre.


Teve vários programas de casas populares. Conduziu a célebre reforma de Paris, que criou os bulevares que até hoje encantam os visitantes. Fez ferrovias e desenvolveu programas de obras públicas. Luís Bonaparte também fundou sociedades de ajuda mútua e organizações de trabalhadores. Nunca foi vencido por adversários internos. Deixou o governo quando as tropas francesas foram derrotadas pelas alemãs, numa sequência que levaria à explosão da Comuna de Paris. 

Getulização de Lula

A getulização de Luiz Inácio Lula da Silva foi um processo de anos e possui aspectos surpreendentes. O estudioso da evolução das ideias políticas do País irá lembrar-se de que Lula e o PT nasceram num movimento político de crítica a Getúlio Vargas e boa parte de sua herança, em particular nos sindicatos. Eram de esquerda, sim, mas socialistas e não populistas nem nacionalistas. Sua referência era a classe social, e não a nação. 

Uma boa amostra deste pensamento pode ser encontrada nos trabalhos do professor Octá-vio Ianni, autor de O Colapso do Populismo no Brasil, obra de 1967 que se tornou um clássico sobre o golpe de 64. 



Um dos grandes intelectuai-s de esquerda de sua geração, que participaria da fundação do PT nos anos 1980, Ianni define o modelo criado por Vargas como “democracia populista”. Sustenta que se tratava de um regime que, embora tivesse contribuído para a industrialização do País, estimulava contradições que só poderiam se resolver por uma das duas opções: “a revolução socialista ou a reintegração plena no capitalismo internacional”. 

Em outro trecho, Ianni critica a “democracia populista” porque ela diluía a noção de classe social, sem levar em conta que “massa e classe não são expressões intercambiáveis”. No mesmo parágrafo, o professor explica que massas reúnem cidadãos interessados na “mobilidade social”, enquanto as “classes” estão voltadas para a “contradição”, substantivo que, no contexto, embutia uma referência ao engajamento revolucionário.

Nos tempos de sindicalista, Lula chegou a referir-se a Vargas como “pai dos pobres e mãe dos ricos”. Condenava o atrelamento dos sindicatos ao Estado e exibia a perspectiva política de quem acredita na luta de classes como forma de avançar os direitos dos trabalhadores. 



Na reforma partidária do fim do regime militar, essa visão de classe alimentou a decisão do grupo de sindicalistas que decidiu fundar o PT sob sua liderança, como uma sigla adversária do PMDB de Ulysses Guimarães, onde ficaram os futuros tucanos, e o PDT de Leonel Brizola, herdeiro direto do getulismo. 


Entre sua pré-história e a presidência, Lula migrou da questão social à questão nacional. Encarou a perspectiva de que o Brasil é um país com uma história incompleta, que não rompeu os laços de dependência com o mundo desenvolvido nem quebrou todas as amarras que impedem o desenvolvimento. 

Ao tratar desta mudança, André Singer diz que Lula “achou em símbolos dos anos de 1950 a gramática necessária” de seu governo. Singer prossegue: “A noção antiga de que o conflito entre um Estado popular e elites antipovo se sobrepunha a todos os outros poderá cair como uma luva para o próximo período. Agora anunciada por um nordestino saído das entranhas do subproletariado, ganha uma legitimidade que talvez não tenha tido na boca de estancieiros gaúchos”. 

No cotidiano, Lula fez um governo que busca o consenso, e não a contradição. Seus programas sociais se dirigem às massas, e não às classes. Convencido de que nada tem a ganhar com conflitos políticos insolúveis, mandou arquivar o debate sobre a jornada de 40 horas quando descobriu que seria impossível chegar a um acordo entre empresários e sindicatos. 



Como presidente, não se cansa de louvar a ascensão social dos brasileiros e gosta de dizer que sonha em fazer do Brasil um país de classe média. Fala como porta-voz da nação quando se dirige aos amigos e inimigos.

Mudança do social para o nacional 

A mudança do social para o nacional, em Lula, ocorreu num momento preciso. A ideia de nação chegou a ser tratada como uma abstração elegante nos tempos da guerra fria, quando a soberania de cada país subordinava-se ao jogo das duas superpotências. Ganhou outro valor com o colapso do regime soviético e a recriação de Estados Nacionais na Europa do Leste. 



O declínio da hegemonia dos Estados Unidos, iniciado uma década depois, e que se acentuou após a crise de setembro de 2008, fez nascer um mundo multipolar, no qual não há mais uma potência capaz de impor sua ordem ao mundo de modo unilateral. 

Nesse novo ambiente, de mudança, oportunidade e risco, os governos procuram explorar possibilidades, realinhamentos e alternativas impensáveis na situação anterior. Os países emergentes ganham um papel mais relevante, situação que Lula explora em benefício próprio e de uma diplomacia diferenciada em relação às alianças do passado, o que gera conflitos esperados com os Estados Unidos, parceiro próximo e aliado histórico. 

A construção de uma política externa de acordo com os novos tempos não é um exercício fácil como abrir uma cartilha de relações internacionais, mas não obriga a desvios chocantes, como um tratamento generoso que foi dispensado à Cuba dos irmãos Castro e ao Irã de Ahmadinejad na área de direitos humanos. Muitas críticas a Lula nessa área são pura tradução da campanha eleitoral no ramo da diplomacia. 



As queixas que envolvem direitos humanos teriam um sabor muito mais sincero se também fossem dirigidas à China, que possui o mais preocupante passivo nessa área, mas representa uma oportunidade de negócios tão promissora que costuma apaziguar a maioria dos protestos humanitários. Mesmo assim, a intervenção oscilante do governo brasileiro diante dos presos políticos de Cuba e das denúncias de fraude da oposição iraniana exibiu uma fraqueza desnecessária.

Lula do futuro 

No Brasil que será inaugurado em 2011, o destino de Lula, um desses mitos políticos que um país produz só de vez em quando, estará a caminho de um lugar na história. Costuma-
-se fazer uma pergunta sobre o 1o de janeiro de 2011, quando ele entregará a faixa presidencial a quem vencer as eleições de outubro. 



A questão envolve uma curiosidade inédita em torno de sua existência já na condição de ex-presidente – fato que, em si, é uma demonstração da importância peculiar que assumiu no imaginário da sociedade e nos cálculos de nossa elite politica, a começar pelo PT. 

Ficará em casa em São Bernardo, para receber os amigos e contar histórias para os netos? Assumirá um papel internacional relevante? Como irá relacionar-se com o novo governo? 


Não se trata de uma situação trivial. Criado numa era em que as imagens da televisão chegam a quase 100% das residências do País, Lula teve dois antecessores com os quais pode ser comparado do ponto de vista da aprovação popular: Getúlio Vargas e Juscelino. Mas difere de ambos pelo capítulo final de governo. 

Sob pressão de uma conspiração político--militar, Getúlio Vargas deixou o Catete com um tiro no peito e recuperou o reconhecimento após a tragédia. Juscelino deixou Brasília humilhado pela vitória de Jânio Quadros. Cassado pelo regime de 64, que impediu seu possível retorno nas eleições presidenciais de 1965, só iria recuperar seu lugar na morte, quando a multidão cantou Peixe Vivo em seu funeral. 



A verdadeira pergunta do pós-Lula é outra: como a política brasileira irá funcionar sem ele? Como o novo governo tomará decisões? Qual a relação do eleitorado com quem vencer em outubro? 


A grande obra de Lula é uma herança, que, alimentada pela lembrança popular, irá projetar--se sobre o novo governo. Pode ser uma sombra, ou uma luz. Isso vai depender do perfil e da postura de quem vencer a batalha da sucessão. 


O certo é que nenhum candidato chegará ao Planalto com a popularidade do antecessor nem possui uma relação tão profunda com o eleitorado. 

O País se encontra no meio de uma campanha pautada pela ideia de dar continuidade às realizações do presidente mais popular de sua história. Os brasileiros querem mais crescimento – e os benefícios que ele carrega. 



Como não há governos de encomenda, mas candidatos e candidatas de carne e osso, com seu passado, suas convicções e seus compromissos, a partir de 1o de janeiro o País terá quatro anos para descobrir se fez a escolha certa para atender seus anseios.


PAULO MOREIRA LEITE é jornalista e escreve a coluna “Vamos Combinar”, na revista Época. Foi correspondente em Paris e em Washington. Foi diretor de Redação da revista Época e do jornal Diário de São Paulo. Também foi redator-chefe da Veja.

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