Todo mundo fala em democracia e educação sem perceber que as palavras tem conotações especiais.
No Brasil, a palavra educação não significa somente instrução mas polidez, calma e delicadeza. O “mau educado” ou o “ignorante” não é quem não tem saber, mas é o “grosseirão” inclinado ao gesto brusco ou a violência. O “bem educado” é aquele que — calado consciente e superior — espera a sua vez.
Fazemos uma clara distinção entre o “bem” e o “mal educado”: o fino o grosso, o sensível e o boçal. Essa representação enlaça o par “educação e democracia”. Pois a voz do povo mostra uma dualidade hierárquica. No plano superior ficam os “bem educados” (gente instruída e fina). No inferior, estão não apenas os não instruídos, mas os mal-educados. Embaraçamos a ignorância definidora do não saber com a grosseria — esse avatar atribuído aos afoitos e, por extensão preconceituosa, aos subalternos. Seria isso um resíduo explosivo de um passado que combinou numa equação rara, aristocracia branca e escravidão negra?
Imagine o seguinte. Numa festa, chega a cascata de camarões. Os “mal-educados” avançam sobre os deliciosos crustáceos e dão conta do prato. Atropelando a fila, locupletam-se e — porque são “mal-educados” — “pegam” o que podem para seus maridos e filhinhos. Os “bem-educados” olham a cena com o horror dos semi-superiores, confirmando como a sua boa “educação” — que segue princípios igualitários gerais como o de esperar pelo seu turno, impede tal conduta. Eles confirmam sua “polidez” mas verificam que não comendo os deliciosos camarões, são bobocas ou babacas porque simplesmente deixam passar uma oportunidade que era de todos mas que foi aproveitada pelos mais espertos: os “mal-educados!”
Moral: o conceito de “educação” tem que ser entendido dentro de um sistema sócio-histórico para poder ser aplicado com eficiência. Um dos problemas das escolas públicas numa sociedade com uma concepção hierárquica de educação é que o ensino pode ser bom, mas o ambiente seria marcado pela “má-educação” (significando ausência de “boas-maneiras”) dos alunos. Sem perceber que, entre nós, a “educação” vai além da instrução, nada fizemos para introduzir uma “educação para a igualdade” e para uma cidadania sem favores e sem os usuais “você sabe com quem está falando?”
No Brasil, uma definição igualitária de educação como um instrumento universal de saberes é filtrada. Há um toque de superioridade no “ser educado” que aristocratiza paradoxalmente o processo, tornando-o exclusivo. Neste sistema, a instrução seria distinta da “boa-educação”. Um engenheiro pode ser competente, mas mal-educado. E isso pode fazer com que prédios pontes sejam construídos por linhas tortas.
Não pode haver projeto real de democracia igualitária, fundada no liberalismo meritocrático e competitivo sem um sistema educacional universal que busque a todo custo atingir a todos.
Mas como realizar isso sem abrir o embrulho das ideias pré-concebidas sobre “educação”? Como, então, reformar esse sistema tornando-o uma força de internalização de igualdade e de democracia? Convenhamos que para o antropólogo de Marte que escreve essa coluna, isso não deve ser fácil em escolas nas quais as crianças tratam seus mestres por “tias”. Ora, o primeiro espaço publico que todos experimentamos de modo profundo é justamente o da escola. O drama que testemunhei no rito de passagem do “primeiro dia de aula” dos meus filhos e netos, fala eloquentemente dessa transição dos papeis desempenhados na casa, na qual se é “filho”, “sobrinho” e “netinho”; para o papel de “alunos” sem nenhum privilégio, exceto — é claro — quando a “boa-educação” interfere, fazendo com que seus mestres os tratem como “sobrinhos” interrompendo uma mudança crítica.
“Ele é filho do Ministro” — disse a professora. Não vai entrar na fila da merenda junto com os outros. Ademais, ele traz a merenda de casa!”
Este diálogo mostra como uma educação para a igualdade é muito diversa de uma educação para as boas maneiras. Do mesmo modo e pela mesma lógica, quando se observam os poderes da República tentando uma hierarquia na qual o Executivo seria o mais importante e o Judiciário estaria submetido ao Legislativo, vê-se uma recusa da educação. Da educação como um sistema destinado a estabelecer para cada poder limites e papéis auto-impostos.
Essa capacidade de conter-se voluntariamente dizendo não a si mesmo. Esse apanágio do liberalismo que começamos a descobrir lentamente, como insiste o meu lado otimista. Por isso, democracia não depende apenas de educação, como se diz a todo momento. Ela é, sobretudo, um processo penoso de aceitar discordâncias. Democracia é educação.
Roberto DaMatta
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