"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

terça-feira, 26 de abril de 2011

A democracia e a liberdade

   
Os alicerces do moderno Estado Democrático de Direito
 Os ideais de Democracia e a Liberdade são conceitos político-jurídicos presentes desde há muito tempo na cultura política do Ocidente, ao menos desde as suas construções filosófica e política na Grécia Antiga, no decorrer dos séculos V e IV a. C.
            Sem receio de cair em expressões de impacto ou de fácil apelo emocional, vislumbro que, nos dias de hoje, tanto a concepção de Democracia, quanto a ideal de Liberdade, acabaram por extrapolar o patrimônio político e jurídico da Civilização Cristã-Ocidental para se constituir num dos patrimônios políticos e jurídicos mais importantes de toda Humanidade.
Nesta ótica, vejo que a Democracia e a Liberdade atualmente se constituem nos pilares político-jurídicos mais importantes do Estado Democrático de Direito. A ausência de uma ou de outra resulta na impossibilidade do Estado Democrático de Direito existir em toda a sua plenitude.
            De fato, em termos históricos e sociológicos, os dois institutos jurídico-políticos ora em comento apresentam uma interação tão íntima que, ao meu ver, não pode haver Democracia sem Liberdade, e vice-versa. O Estado Democrático de Direito só pode subsistir e progredir onde existir Democracia conjugada com Liberdade.
            Antes de prosseguirmos adiante, é forçoso destacar que, tanto o conceito político-jurídico de Democracia, como o conceito jusfilosófico de Liberdade, desde a sua gênese da Grécia Antiga nos séculos V e IV a. C., percorreram um longo e árduo caminho até chegar aos nossos dias, caminho este cheio de percalços e marcados por avanços e recuos em termos políticos e jurídicos, em especial no tocante a abrangência da sua aplicabilidade e exercício.
            Por outro lado, ambos os institutos jurídico-políticos se encontram tão intimamente entrelaçados que poder-se-ia supor, numa visão mais simplista da Teoria Política, que se tratam de categorias conceituais conexas ou integrados fraternalmente, mas, de fato, são institutos distintos e autônomos, ainda que complementares, em termos ontológicos: a Democracia não pode prosperar sem que exista o respeito à Liberdade, e esta, por sua vez, não pode subsistir sem que haja um mínimo de efetiva participação popular nos assuntos governamentais e respeito por parte das autoridades às garantias e direitos individuais fundamentais e à pluralidade de idéias.
 Na esteira das considerações feitas acima, podemos afirmar que a concepção clássica de Liberdade formulada pela Filosofia Política tradicional é por demais restritiva e de cunho eminentemente negativo para ter um real significado no mundo contemporâneo.
            Realmente, a Filosofia Política Clássica dos séculos XVII e XVIII d. C. limitava o campo de abrangência da Liberdade ao indivíduo em si e encarava a Liberdade como um pressuposto ou requisito sine qua non de proteção individual frente ao arbítrio, desmandos ou poder irrestrito do Estado, tudo isso conforme uma visão sócio-filosófica utópica e juridicamente formal de igualdade econômica, social, cultural e política dos cidadãos.
            O "pai" do Liberalismo Clássico foi John Locke (1632-1704), cuja obra de Filosofia Política tem como núcleos centrais a tese de que os direitos inalienáveis do homem à vida, à liberdade e à propriedade constituem o cerne da sociedade civil e a necessidade de uma rigorosa separação entre os poderes laico e espiritual que resultem numa ampla tolerância religiosa e ideológica. Neste sentido, John Locke entende que a finalidade precípua da Política é a busca da felicidade e prosperidade de todos os cidadãos, as quais residem na paz, na harmonia e na segurança, tanto individual, quanto coletiva.
Por outras palavras, John Locke defendia a idéia de que a utilidade última do Estado reside em preservar ou garantir a liberdade, a vida e a propriedade, concomitantemente à uma tolerância religiosa e ideológica. Tal concepção de John Locke foi retomada no século XVIII d. C. por dois contemporâneos seus, David Hume e Jeremy Bentham (1748-1832), para construir de maneira explicita uma nova corrente filosófica: o Utilitarismo.
            Neste sentido, a Filosofia Política Clássica dos séculos XVII d. C. e XVIII d. C. tendia atribuir à Liberdade uma expressão de realização individual ou pessoal, isto é, o indivíduo tem o direito de fazer ou pensar tudo o que quiser, desde que não infrinja as leis e a liberdade de terceiros, realização essa que era mesurada a partir de um cálculo que levava em conta somente a proporcionalidade entre o custo e o benefício políticos e éticos da aquisição da realização pessoal.
            De maneira simultânea, o Estado Liberal tradicional se caracterizou por ser um Estado de Direito estático e inflexível, na medida em que possuía um sistema de normas legais que, em face da sua rigidez social e econômica, rapidamente se tornou um sistema legal anacrônico e inadequado às reais necessidades sociais e econômicas dos indivíduos e segmentos sociais organizados surgidos a partir do desenvolvimento de uma Sociedade de Massas no século XX d. C.
            De fato, houve a necessidade imperiosa de uma adaptação ou deslocamento ético-jurídico da própria essência do Estado de Direito, adequando-o às diversas transformações sociais, econômicas e culturais havidas no decorrer o século XX d. C.: o Estado passou a visar o bem estar de toda a Sociedade como um todo e não mais do indivíduo em si.
            Nesta ordem de idéias, no Estado Contemporâneo pós-Guerra Fria e pós-industrial, sobretudo após as múltiplas experiências traumáticas advindas de duas Guerras Mundiais e das funestas práticas dos vários regimes totalitários que existiram no decorrer do século XX d. C. (o regime nazista e o regime soviético stalinista se constituem os exemplos padrões), não há mais lugar para a Liberdade individual irrestrita e absoluta.
            No caso, o campo de abrangência do exercício político, social e cultural da Liberdade individual deve ser definido e delimitado não em face do Estado, mas em face dos interesses e necessidades da Sociedade como um todo, isto é, a restrição do exercício da liberdade individual deve levar em conta os interesses e necessidades da Sociedade. Tal restrição não implica na negação do direito inalienável do livre-arbítrio humano e tampouco na extinção das garantias e direitos fundamentais do Homem, mas apenas que a liberdade individual não pode mais servir de pretexto para atentar contra os interesses ou direitos difusos de determinados grupos sociais ou aqueles direitos que dizem respeito à Sociedade como um todo.
            O exercício pleno da cidadania moderna é perfectibilizado mediante a garantia de direitos civis, políticos e sociais e, nesta medida, a participação do indivíduo na vida da Coletividade encontra limites extra-políticos e meta-jurídicos, dos quais o mais importante nos dias atuais, no meu modesto entendimento, é o bem-estar de toda a Coletividade.
            Seguindo esta linha de raciocínio, devemos também realçar que a concepção clássica de Democracia é por demais restritiva e juridicamente formal, no sentido de que identifica a Democracia, enquanto governo procedente do povo e para o povo, unicamente com a participação do povo nas decisões do Estado através dos seus representantes ou de mecanismos institucionais reconhecidos em lei, e, por via de conseqüência, vinculando a legitimidade da Democracia às eleições periódicas dos governantes que, em tese, deveriam se dedicar ao bem-estar do povo.
            Além disso, importa destacar que o conceito clássico do século XIX d. C. acerca da Democracia detinha uma inequívoca dose de idealismo romântico, na medida em que encarava a Democracia como o único regime político em que o Homem poderia alcançar a sua "libertação" plena, não só enquanto indivíduo como também enquanto cidadão dotado de direitos e deveres. O conceito ora em comento é também uma concepção negativa-passiva, na medida em que pressupõe, em termos políticos e jurídicos, a aplicação negativa da coerção social no tocante a eventuais rupturas políticas ou ilícitos legais cometidos, ou seja, no âmbito da Democracia Liberal Clássica, as eventuais ameaças à ordem política-jurídica se traduziam na aplicação de castigos pós-fato.
            Resumindo: a fórmula conceitual clássica de Democracia existente no século XIX d. C. e início do século XX d. C. é extremamente abstrata, idealista e, via de regra, limitada às regras e procedimentos jurídico-políticos positivados num determinado ordenamento jurídico, na medida em que consagra apenas uma participação formal da população na vida política mediante mecanismos políticos e procedimentos jurídicos padronizados e limitados (eleições parlamentares sem representatividade social significativa; plebiscitos ou consultas populares meramente opinativas; etc.), passando, desta maneira, muito ao largo da efetiva participação popular nos assuntos do Estado.
            Ressalte-se, ainda, que, em face da participação popular nos assuntos do Estado ser muito pouca representativa, a Democracia Liberal Clássica apresenta uma baixa autonomia política e social dos subsistemas políticos de representação (partidos políticos, grupos de pressão, etc.) enquanto mecanismos de controle sócio-político, sobretudo nos momentos de aguda crise social e econômica.
            Perfilho a idéia de que a concepção liberal clássica de Democracia é parcialmente válida nos dias de hoje, na medida em que tal concepção não dá conta da emergência dos direitos políticos e sociais difusos vinculados a determinados segmentos sociais, bem como não recepciona a idéia de que a liberdade sob a égide da lei pressupõe, necessariamente, o respeito aos múltiplos interesses conflitantes e concorrentes existentes no seio da sociedade. Sob este ponto de vista, entendo que a principal herança da Democracia Liberal Clássica para o mundo contemporâneo é o reconhecimento das liberdades públicas e dos direitos individuais de primeira geração como meios para o exercício pleno da cidadania política.
            Vejo que a Democracia Contemporânea deve ser encarada como aquele regime político em que a representação política formal da vontade popular se perfaz não só através das instituições políticas representativas tradicionais como também e, sobretudo, cada vez mais através de mecanismos de participação popular na gestão da coisa pública. Desta maneira, não basta se garantir ao cidadão ou aos diversos grupos sociais a livre expressão política e cultural e a igualdade formal perante a Lei, como também, e, sobretudo, a proteção efetiva dos direitos coletivos e difusos mediante mecanismos jurídicos e meta-jurídicos eficazes.
            É oportuno destacar que, historicamente, os regimes autoritários ou ditatoriais (independentemente da sua matriz ideológica, seja de direita, seja de esquerda) se implantam e se desenvolvem a partir da "pasteurização" das diferenças ideológicas e culturais existentes no seio de uma dada Sociedade, bem como através da repressão, tanto explícita quanto implícita, da dissidência política e social mediante, não raro, a completa eliminação das garantias e direitos fundamentais do Homem tão duramente conquistadas nos últimos dois séculos e meio.
            Sob esse prisma, entendo que a falta de um compromisso firme por parte da Sociedade como um todo com a defesa das instituições democráticas e com o respeito às liberdades individuais e coletivas é o primeiro passo rumo a instituição de regimes autoritários ou ditatoriais.
            Por outro lado, entendo que a forma ou configuração do regime democrático quanto à extensão do exercício da Liberdade individual e/ou coletiva relaciona-se diretamente com o efetivo controle popular das instituições políticas fundamentais do Estado (notadamente as assembléias ou parlamentos e os órgãos administrativos componentes do Poder Executivo), mediante uma rigorosa fiscalização dos seus atos funcionais e gestão administrativa.
            Vislumbro que quanto maior for a capacidade da Sociedade Civil de exercer uma efetiva fiscalização sobre o aparelho burocrático estatal, maior será a estabilidade política da Democracia e maior será a sua legitimidade popular.
            Em síntese, vejo que a essência da verdadeira Democracia Contemporânea está no respeito à pluralidade política - ideológica e cultural existente no seio da Sociedade e na ampla participação política dos cidadãos mediante o uso de mecanismos jurídico-políticos que permitam a livre expressão dos anseios e necessidades da maioria dos segmentos da Sociedade, assegurando, é claro, os legítimos direitos das minorias políticas e sociais.
            Na Democracia Contemporânea, a Liberdade é, na escala dos valores políticos e jurídicos, o bem ou o valor mais importante que a comunidade deve aspirar gozar coletivamente. Efetivamente, ainda que outros bens ou valores sejam igualmente desejáveis e importantes (v.g., a Justiça e a Igualdade). De fato, julgo que a Liberdade constitui o bem fundamental, não só do cidadão enquanto indivíduo, como também de toda a Sociedade industrial de massas contemporânea.
            Nesse sentido, a coexistência de opiniões divergentes é requisito essencial para a sobrevivência da Democracia Contemporânea, devendo a Sociedade Civil, muito mais que o Estado em si, ter o interesse de preservar e estimular a todo custo a existência da liberdade de pensamento e de crença.
            Destarte, entendo que a Democracia Contemporânea só pode existir na medida em que sejam observadas duas condições ou requisitos básicos: 


a)as relações entre as elites governantes e os governados estejam fundadas no respeito das garantias políticas e direitos fundamentais; e 
b)as múltiplas interações sociais, econômicas e culturais entre os diversos segmentos sociais existentes no seio do Estado estejam alicerçadas num consenso mútuo no tocante à preservação das diferenças de sociais, econômicas, políticas e culturais.
            A multiplicidade de liberdades políticas e civis surgidas a partir das Revoluções Liberais dos séculos XVIII e XIX d. C. (liberdade de expressão, liberdade de locomoção, liberdade de associação, etc.) devem estar a serviço dos verdadeiros interesses e necessidades da Sociedade como um todo. Somente assim é que, tanto a Democracia quanto a Liberdade, poderão ser considerados como os genuínos fundamentos do moderno Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, o controle do Estado pela Sociedade Civil passa não só pela preservação a todo custo da Liberdade individual e coletiva, como também pela criação e implementação efetiva de mecanismos de um sistema de organização auto-dirigido de acesso e controle do fluxo de informações das atividades estatais e para-estatais.
            À guisa de conclusão deste artigo, não poderia deixar de tecer algumas breves considerações acerca do Liberalismo.
            Em primeiro lugar, devo explicitar que estarei empregando o vocábulo Liberalismo na sua acepção técnica (em termos de História e da Ciência Política), qual seja a doutrina que defende a Liberdade como o fundamento ético mais importante e pressuposto político essencial das relações sociais, culturais e econômicas havidas no seio da Coletividade Social.
            O Liberalismo encara a Liberdade como requisito essencial para se alcançar a Igualdade Proporcional, isto é, para materializar o princípio de nivelamento das oportunidades e da igual satisfação das necessidades fundamentais. Nesta ordem de idéias, o verdadeiro Liberalismo não prega o absenteísmo estatal ou a ausência total de intervencionismo das instituições estatais em setores da coletividade social, mas tão-somente que o intervencionismo estatal se processe de maneira tal que nunca prejudique as liberdades individuais e coletivas.
            Nos dias de hoje, muitos "especialistas" em Ciências Sociais, aí incluindo diversos juristas de escol, identificam o Liberalismo somente com a sua vertente econômica, se esquecendo, propositalmente ou não, que a Liberdade é, e sempre continuará sendo, um elemento político e ético que extrapola em muito o aspecto econômico das relações sociais existentes no seio da coletividade social.
            Na verdade, a identificação mecânica e simplificada do Liberalismo com uma vertente ideológica do sistema capitalismo, é, ao meu ver, totalmente desprovida de fundamentação histórica e abusiva em termos políticos.
            Sem embargo, o Liberalismo tem uma dimensão muito mais ampla que o aspecto orgânico-estrutural do sistema econômico capitalista, ou, como querem determinados economistas, do sistema de economia de mercado.
            A Liberdade diz respeito a própria essência do ser humano enquanto animal social, na medida em que a complexidade cada vez maior da tecitura das relações sociais pressupõe que o Homem tenha, cada vez mais, opções de escolha política e de expressão social e econômica. A Liberdade não é, tampouco, uma mera miragem política ou uma abstração jurídica desprovida de efetividade social e política.
            De fato, a Liberdade é pressuposto meta-jurídico fundamental do Estado Democrático de Direito e requisito fundamental da preservação da cidadania e da estabilidade política das relações sociais. Negar tal assertiva é, antes de mais nada, cometer um atentado à História, à Ciência Política e ao próprio Direito.
            Neste alvorecer do Terceiro Milênio, muito se fala em Democracia Direta mediante o desenvolvimento de novas modalidades de participação popular no controle da Administração Pública e no incremento da gestão participativa dos assuntos estatais, mas muito pouco se fala em Liberdade, sobretudo quanto à efetivação de mecanismos, políticos e sociais, de defesa da Liberdade. Tal situação é extremamente grave, porque o próprio Estado Democrático de Direito não pode subsistir sem que haja um pluralismo ideológico e político, e para que exista tal pluralismo a Liberdade se faz necessária estar sempre presente e cada vez mais forte.
            Por derradeiro, e tendo em vista as digressões feitas acima, vejo que o Liberalismo, enquanto doutrina que se funda na Liberdade, é uma doutrina que não pode e nem deve ser reduzida a essa ou aquela vertente econômica, política ou ideológica. É uma doutrina que será sempre atual, eis que, na sua essência, é a doutrina do Estado pluralista, tanto em termos políticos stricto sensu, quanto em termos culturais e econômicos, e nestes termos, é a doutrina que combate a intolerância política e cultural e a anomia social e econômica. 


In casu, o verdadeiro adepto do Liberalismo, portanto, é aquele fervoroso defensor da sociedade democrática de cidadãos livres, sociedade essa onde existem várias doutrinas religiosas, políticas e filosóficas coexistindo pacificamente e em constantes intercâmbios.

Ricardo Luiz Alveslicenciado em História pela PUC/RJ, bacharel em Direito pelo Centro Integrado de Ensino Superior do Amazonas (CIESA), servidor da Justiça do Trabalho em Manaus (AM)

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