"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

domingo, 3 de abril de 2011

A Igreja Católica e o Estado Brasileiro



Quando a sociedade dos homens buscou desvencilhar-se da hegemonia da Igreja na organização do Estado, tivemos, depois das tensões resultantes das divergências entre o poder dos reis e o do clero, ao invés de uma sociedade voltada para a paz, perseguições que em nada diferiam daquelas em que se empenharam setores das Igrejas católica ou reformadas, na eliminação de quantos discordavam daquilo que importava na manutenção de um status quo que se queria paralisado no tempo. 


Num e noutro caso, afastava-se o povo de qualquer participação na organização do Estado. Entretanto, esses embates foram, a pouco e pouco, permitindo o surgimento de uma consciência cidadã que tinha em mira uma verdadeira participação do povo na condução pública de seus problemas. 


Reconheceu-se, então, o papel que as religiões tiveram no aperfeiçoamento da pessoa humana. É a partir daí que podemos ver, nas Constituições políticas dos Estados democráticos, que essa importantíssima contribuição das Igrejas cristãs foi contemplada em dispositivos que desenham os direitos fundamentais do homem e determinam os objetivos do Estado. 


Os direitos da pessoa humana, geralmente ignorados nas antigas civilizações, somente começaram a ser valorizados através do ministério de Jesus Cristo. Amai-vos uns aos outros é a pedra de toque dos Direitos Humanos. Sobretudo, deve-se ter em consideração que o Estado laico, que advém de todas essas lutas e que encontrou sua melhor definição no Iluminismo, não pode ser entendido como o Estado ateu que, como aconteceu no Estado totalitário, seja de esquerda, seja de direita, adota a ratio política da negativa de Deus.

O Estado laico é o Estado que se estrutura segundo normas que, embora não tenham qualificativos religiosos, não podem negar a sua origem nas palavras e escritos que, como vimos, têm seus princípios no Ministério de Cristo. A doutrina social da Igreja, as intervenções dos últimos Papas perante os problemas concretos contemporâneos, o Concilio Vaticano II, a ação dos bispos e as iniciativas de diversos grupos e comunidades revelam o reencontro do catolicismo com os direitos e liberdades fundamentais. 



As Constituições brasileiras, editadas a partir da Primeira República, recolheram, no tocante à estrutura organizatória da República, as ideias do liberalismo positivista. Um dos pontos considerados fundamentais no programa político então aconselhado se constituía na defesa de uma república laica e democrática. 


O laicismo, produto de uma visão individualista e racionalista, desdobra-se em vários postulados como, entre outros, a separação entre o Estado e a Igreja. Mas contempla também a igualdade e a liberdade de cultos e a laicização do ensino. Relativamente à autoridade política, a religião deixa de ser um tema público para se enquadrar na esfera dos assuntos privados, a não ser quanto à vigilância da própria liberdade religiosa.

Assim, uma sociedade politicamente democrática, assente no relativismo político, postula também uma sociedade religiosamente liberal, tolerante para com todos os credos, aceites e praticados pelos cidadãos. Não obstante, é preciso acentuar que, a despeito da coincidência no essencial entre a visão cristã das relações da pessoa com o poder público e o propósito de garantia dos direitos do homem, foi patente nos séculos XVIII e XIX, o grave conflito que opôs os defensores desse propósito e a Igreja católica. 



O conflito adveio de certas circunstâncias históricas, identificáveis no enciclopedismo e nas fundamentações nominalistas e laicistas dos direitos naturais, invioláveis e sagrados, no modo revolucionário como o liberalismo se implantou na Europa e na inserção constantiniana da Igreja desse tempo. 


Contudo, essas tensões iriam desaparecer ou atenuar-se, na medida em que essas circunstâncias iam sendo ultrapassadas e que os direitos do homem e as correspondentes instituições jurídico-objetivas adquiriam dinamismo próprio e, por outro lado, segundo o que também a Igreja procurava libertar-se, ou seja, das amarras do poder e abrir-se em missão cada vez mais para o mundo.

A doutrina social da Igreja, as intervenções dos últimos Papas sobre os problemas concretos contemporâneos, o Concilio Vaticano II, as ações dos bispos e as iniciativas de diversas comunidades revelam o reencontro dos católicos com os direitos e liberdades fundamentais, assim como importantes contribuições para a mudança de mentalidades e de estruturas em numerosos países, sobretudo na América Latina.

Em resumo, a doutrina católica dos direitos do homem afirma:
O direito à vida em quaisquer circunstâncias;
O reconhecimento de consciência de liberdade e dignidade dos homens;


O primado das pessoas sobre as estruturas;


A conexão entre direitos e deveres e entre justiça e caridade;
A opção preferencial pelos pobres;
A relação necessária entre libertação humana e liberdade cristã;
A relação também necessária, na perspectiva do bem comum, entre os princípios da solidariedade de todas as pessoas e da subsidiariedade do Estado;
A função social da propriedade;
A relação, ainda, entre o desenvolvimento integral da cada homem e o desenvolvimento solidário de toda a humanidade.
Constituição de 1988 e o direito à vida.

Muito embora esses princípios se encontrem inscritos nos primeiros artigos da Constituição de 1988, chamada a Constituição Cidadã, como se vê dos fundamentos sobre os quais se assenta a República
(arts, 1º e 2º), de seus objetivos fundamentais (art. 3º) e dos princípios que regem suas relações internacionais (art. 4º) e do rol dos direitos e garantias fundamentais (art. 5º), muitas vezes temos resvalado para um anticlericalismo sectário, alimentado pelo Poder Executivo e que encontra ressonância no Parlamento e até mesmo em nossos tribunais superiores. 



Tomando como exemplo o direito à vida, porque dele decorrem todos os demais, a Constituição de 1988 é enfática ao afirmar a sua inviolabilidade (art. 5º)


No entanto, são recorrentes as iniciativas, muitas delas de inspiração do próprio Poder Executivo, mediante propostas de seus ministérios ou secretarias respaldadas em resoluções adotadas nos encontros promovidos pelo Partido dos Trabalhadores. Por outro lado, a Igreja se vê tolhida na sua atuação em defesa da vida, sendo pura e simplesmente impedida de contribuir, com sua experiência milenar, para um entendimento compatível com as imposições do tempo sem, contudo, deixar de lembrar a relevância da existência humana no plano universal. 


É sabido como, no Congresso Nacional, se organizam as comissões especiais para o estudo e a apresentação de propostas a serem apreciadas pelos plenários da Câmara de Deputados ou do Senado Federal. Se a intenção é a de aprovar determinada matéria, os membros dessas comissões são escolhidos a dedo. Reservam-se alguns assentos àqueles que possam ser contrários, para dar a impressão de que se preserva o direito de participação. 


A esse respeito, um pesquisador poderá levantar nos arquivos do Parlamento brasileiro inúmeros exemplos. Vai daí ser plenamente justificável o temor de representantes da Igreja católica relativamente à aprovação de projetos que objetivam descriminalizar o aborto ou conceder amparo legal à união de pessoas do mesmo sexo. 


Nos dois casos, atenta-se contra o direito à vida. No primeiro, diretamente, e no segundo, por vias transversas, pois não se pode ver na união de pessoas do mesmo sexo a promoção da vida, finalidade da união do homem e da mulher e, portanto, não deixa de ser o seu reconhecimento legal um atentado, ainda que indireto, à vida. 


Ora, o direito à vida vem explicitamente contemplado no mencionado art. 5º da Constituição Federal, considerado o direito do qual todos os outros decorrem. Tenha-se, ainda, em atenção que são considerados direitos fundamentais, na forma do mesmo art. 5º, “os direitos e garantias expressos nesta Constituição que não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. 


Pois bem, o Estado brasileiro ratificou em 1992 a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, subscrita em San Jose da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, ressalvando, entretanto, o reconhecimento da competência jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ressalva essa tornada sem efeito em 10 de dezembro de 1998, quando aquele tratado passou a sujeitar o Brasil em todos os seus termos. 


Estabelece a Convenção Americana, em seu art. 4º, n. 1, que toda pessoa tem direito a que se respeite sua vida. Este direito estará protegido pela lei e, em geral, a partir da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. Trata-se de norma que se insere, nos termos do § 2º do art. 5º, já citado, no rol dos direitos e garantias individuais enunciados pela Constituição brasileira. E, como tal, não pode ser alterado ou tornado sem efeito, sequer por emenda constitucional. 


É uma das chamadas cláusulas pétreas, que não podem ser alteradas. Aliás, a emenda constitucional que pretendeu realizar a reforma do Poder Judiciário, mas que não passou de leve maquiagem, estabelece que os tratados de Direitos Humanos para ganharem o status constitucional devem ser submetidos a processo idêntico àqueles a que se submetem os projetos de emenda constitucional. 


Esse dispositivo mostra, claramente, que se trata de novos tratados, pois os anteriores, editados na versão do § 2º, já se arrolaram dentre os direitos fundamentais, desde que ratificados pelo Congresso Nacional. Com o novo dispositivo os atuais legisladores quiseram dificultar a passagem de um tratado de direitos humanos para o rol dos direitos fundamentais, o que importa em concluir que o Estado brasileiro foge de suas responsabilidades internacionais. 


Se assim é, e sem dúvida o é, não pode ser revogado ou alterado o disposto no art. 4º, n. 1, da Convenção Americana, já incorporado na Constituição Federal. E não pode, porque diz a Constituição, em seu art. 60, §4º, que não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir: IV – os direitos e garantias individuais. Em remate, o Congresso, pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, rejeitará, in limine, proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais. Basta que haja a intenção apreendida, no sentido de abolir um direito, para que, sequer, seja objeto de deliberação. 


Uma proposta nesse sentido, acaso não seja rejeitada in limine, pode suscitar o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 102, I, “a”, c.c. art. 103, IX, ambos da Constituição Federal. Os mesmos argumentos valem para a pretensão de legalizar a união de pessoas do mesmo sexo que, segundo já foi exposto, importa em atentado indireto ao direito à vida. Chegados a este ponto, convém indagar quais os instrumentos legais para se obter, mediante a imposição do cumprimento de obrigações internacionais livremente assumidas, uma vez esgotados os recursos que objetivam sua defesa, a participação dos cidadãos na defesa dos direitos fundamentais. 


Nesse particular, é bom lembrar que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos estabelece que o Sistema Interamericano de Defesa dos Direitos Humanos recebe, pela Comissão Interamericana, denúncias de violações desses direitos, cometidas pelos Estados Partes desse tratado e de outras convenções e protocolos adicionais posteriores, a qual os examina e processa, podendo enviar recomendações ao Estado violador, as quais devem ser cumpridas de boa-fé, na forma do disposto no Direito Internacional dos Direitos Humanos. 


Se não o forem, a Comissão Interamericana poderá levar o caso à Corte Interamericana, cujas decisões devem ser obrigatoriamente cumpridas pelos Estados Partes, na forma do art. 68, n.1, da Convenção Americana. Note-se que não se trata do cumprimento de uma sentença estrangeira, mas de uma decisão de um tribunal internacional, cuja jurisdição foi aceita pelo Estado Parte. 


Assim, essas decisões devem ser cumpridas em nível nacional como se tratasse de uma decisão emanada de seu Poder Judiciário. Em conclusão, se o Estado brasileiro admitir violações dos direitos fundamentais, entre estes, do direito à vida, inscrito em sua Constituição política e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, poderá ser submetido a procedimento perante a Comissão, a qual deverá fazer recomendações com o objetivo de sanar ditas violações e impedir que novas, no mesmo sentido, venham a ser feitas e, se não obedecidas, remeter o caso ao pronunciamento da Corte Interamericana. 


Contudo, hoje em dia, não obstante, no caso brasileiro, a Constituição vigente tenha adotado como um dos fundamentos do Estado a dignidade da pessoa humana (art.1º, III), que entre seus objetivos fundamentais estejam o de construir uma sociedade livre, justa e solidária e de promover o bem de todos, sem prec onceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, I e IV), o que revela a força do fermento cristão, a Igreja católica vem sendo objeto de discriminações que se refletem em posições e atitudes adotadas pelo Governo brasileiro, muitas vezes acoroçoadas pelas manipulações dos meios de comunicação de massas. É nessa linha que prevalecem as ideias da chamada legalização do aborto e do casamento de pessoas do mesmo sexo. 


E procuram impor, mediante apelos a alegados direitos reprodutivos que permitem à mulher livrar-se de filhos indesejados ou de pseudodireitos à constituição de famílias, segundo concepções incompatíveis com o próprio direito natural. 


Se a Igreja ou quaisquer pessoas se voltam contra essas pretensões que, ao contrário de se constituírem em princípios para uma vida digna e construtiva da sociedade humana, comprometem-na desde que desprezam a preservação da vida e a base da comunidade humana que é a Família, são discriminadas e qualificadas de retrógradas. 


E o que é de pasmar, essa discriminação passa pelo Congresso Nacional que, nos debates sobre o problema da vida – problema ínsito na prática do aborto ou na legalização da união de homossexuais – conforma suas comissões temáticas segundo imposições de aguerridas organizações, sejam feministas, sejam quanto à instituição de pseudofamílias. 


E mais ainda. A Presidência da República permite e estimula a atuação, nos ministérios da mulher e da discriminação racial, a apresentação, em nome do Governo, de projetos que, não podendo alterar os termos da Constituição, procuram solapar seus termos mediante normas infra-constitucionais que legalizam, sob os mais variados pretextos, o aborto e a união de pessoas do mesmo sexo. 


Esquecem, com isso, toda a tradição histórica que se alimentou de lições da Igreja, de que o bem supremo a ser preservado em quaisquer condições é o direito à vida, base e fundamento de todos os direitos. E está na Constituição, em seu art. 5º, quando se assegura a inviolabilidade do direito à vida. 


A Igreja católica, que reúne a maioria da população brasileira, vem sendo tolhida, não nas suas manifestações, mas numa atuação em que o Governo (Executivo, Legislativo e Judiciário) possa dizer, em igualdade com outras correntes de pensamento, tudo quanto se faz de mister para o melhor esclarecimento de ideias que não levam à construção, mas ao largo do tempo, à destruição da comunidade dos homens, onde o egoísmo se sobrepõe ao altruísmo. 


Como se vê, à Igreja católica, cuja doutrina penetrou em nossa legislação maior, que elegeu a pessoa humana como o verdadeiro sujeito de direitos, não se concedem os instrumentos para que possa atuar com eficácia, a fim de que princípios eternos não se desvaneçam na fumaça do tempo. 

HÉLIO BICUDO é jurista. É presidente da Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos. Fundador do Partido dos Trabalhadores (PT), foi vice-prefeito de São Paulo na gestão Marta Suplicy.

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