"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Paradoxos da democracia



Na obra 1984, de George Orwell, o Estado totalitário cria a novilíngua (newspeak)


O objetivo é restringir o pensamento a partir da condensação e remoção do sentido das palavras. O controle da linguagem tem como meta o controle do pensamento. Se o vocabulário das pessoas é restrito ao básico e elementar, dificulta-se o pensar: o que não pode ser expressado em palavras, não existe. Portanto, não há como pensar sobre isto. 


novilíngua expele da linguagem palavras que possam representar pensamentos errados, ou seja, críticos ou dissidentes. Se ocorrer, será tratado como uma crimidéia.
Um dos termos da novilíngua é o duplipensar. Esta palavra se refere à capacidade de aceitar crenças contraditórias e de utilizá-las de acordo com a mudança de contextos. Assim, ainda que a nova diretriz do partido seja oposta ao que se afirmava até então, ela é racionalmente aceita a partir da lógica do duplipensar. A realidade, portanto, é amoldada à vontade do Big Brother.
Podemos aplicar o duplipensar à palavra democracia. Eis uma palavra tripudiada na história e utilizada ao bel-prazer dos interesses em disputa. Assim, derrubam-se governos democraticamente eleitos em nome da democracia; ditaduras impostas pelas armas e o apoio econômico e político do Império, falam em democracia e liberdade. 

No Brasil, por exemplo, uma peça de propaganda do Governo do Marechal Costa e Silva (1967-1969), afirmava: “O Brasil pode estar certo de que as Forças Armadas estão capacitadas para assegurar sua proteção contra os inimigos e salvaguardar a democracia, a liberdade e a justiça(grifos nosso).


E foi justamente este governo quem promulgou, em 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional nº 5. O AI 5 cassou parlamentares, fechou o Congresso Nacional, instituiu o Estado de Sítio, com o direito de prorrogá-lo, suspendeu a garantia do habeas-corpus e deu liberdade ao governo federal para intervir nos Estados e municípios.
Eis um dos paradoxos da democracia: sua afirmação enquanto retórica mascara sua negação de fato.
A Constituição Brasileira de 1988, em seu Artigo 1º, parágrafo único, afirma: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. O fundamento do exercício do poder político legítimo é, portanto, o consentimento do povo. Mas, o que é o “povo”? A categoria universal “povo” dissimula uma realidade social desigual e contraditória. 

A democracia afirmada na letra da Carta funda-se sobre a igualdade de direitos: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade…”.
A afirmação da igualdade no plano formal-jurídico obscurece a desigualdade realmente existente entre os indivíduos considerados cidadãos. A cidadania estabelece o reino fictício da igualdade – perante o Estado – mas encobre a desigualdade real no plano econômico e das condições materiais de vida. 


A propaganda do TSE tenta nos convencer de que somos o trabalhador sem-terra é igual ao latifundiário ou empresário do agronegócio, que os operários são iguais aos seus empregadores, que os bancários estão no mesmo pé de igualdade dos banqueiros. O que os tornam iguais? O poder do voto. 


Mas, será que o poder econômico não desequilibra a balança da política? E, por outro lado, em que consiste realmente o “poder do voto”? Por acaso, a maioria dos eleitores têm influência sobre a escolha dos candidatos que se apresentam periodicamente ao sufrágio? Quem escolhe os candidatos? Quem financia suas campanhas?

São as estruturas partidárias quem escolhem os candidatos. E nem sempre por métodos democráticos. Na verdade, é da luta nos bastidores entre os caciques, os quadros mais proeminentes e que controlam os partidos, que saem os candidatos impostos “democraticamente” à massa dos filiados. 


No caso do PT, foi o poder de influência de um único indivíduo que impôs a candidatura da senhora Dilma, até então desconhecida do grande público. Lula criou o seu avatar, o partido abençoou e pede-se aos eleitores que a consagrem. Mesmo nos partidos à esquerda do PT, o processo não é muito diferente. Se não há uma liderança que se imponha, os quadros partidários digladiam-se ‘democraticamente’ para escolher o candidato (a disputa no interior do PSOL, por exemplo, foi ferrenha). E há os eternos candidatos…


Em suma, é-nos dado o direito de escolher entre os escolhidos. Assim, a democracia é a democracia dos partidos. O poder do eleitor é negado no princípio do processo. 


Ele tem a ilusão de decidir, mas sua decisão se limita aos produtosque lhe são oferecidos. Ele é reduzido a um consumidor da política. Quem tem o poder de fato são os líderes e a burocracia dos partidos. O voto nos escolhidos fortalece o poder burocrático e dos que controlam o poder de candidatar-se ou bancar candidatos. O processo retroalimenta-se.
A ênfase no poder do voto individual dilui o poder real de intervenção política. Uma das peças publicitárias do TSE, dirigida aos jovens, apresenta uma passeata sem som, na qual se lêem os slogans “Queremos ser ouvidos” e “Queremos voz”. Ao entrar o áudio, uma voz afirma: “Faça o seu título de eleitor, seja ouvido”.


A idéia apregoada é que sem o título de eleitor não seremos ouvidos. Ora, invertem-se os valores e deforma-se a história. Na verdade, é a voz das ruas, passeatas, protestos, etc., com a participação de jovens, adultos, movimentos sociais organizados, que se faz ouvir. Inclusive para conquistar o direito de votar, o fim da ditadura civil-militar e a democratização do país. 


O sufrágio universal, que inclui os jovens entre 16 e 17 anos, é uma conquista das lutas sociais e não o contrário. A propaganda do TSE reduz a democracia à posse do título, como se esta fosse a única maneira de “ser ouvido”, ou, pelo menos a forma privilegiada.
Outro vídeo do TSE esclarece o significado do voto na legenda e enfatiza que votar em branco é desperdiçar o voto (a imagem mostra o ‘voto’ jogado na lixeira).Desse modo, ainda que no âmbito dos procedimentos exaustivamente classificados como exercício da democracia, deslegitima-se e desrespeita-se a decisão do eleitor em não conceder o seu voto a qualquer dos candidatos apresentados ao seu sufrágio. A legislação não considera o voto em branco (ou nulo) como válido. De qualquer forma, se o voto é um direito, por que desconsiderar o direito do eleitor em votar em branco ou anular?
Na verdade, o voto branco e nulo – consciente ou não – é uma forma de dizer que não concordamos com o sistema político, ou seja, com os políticos e os procedimentos para escolha da representação. Quanto maior a quantidade de votos válidos, maior a legitimação do sistema eleitoral; quanto maior o número de votos brancos e nulos, mais fica claro a crítica às limitações da democracia em voga.
É incoerente propagar os méritos democráticos da eleição, organizada nos moldes atuais, e, simultaneamente, desqualificar o direito democrático do eleitor em não escolher partidos e candidatos à caça do seu voto. Além do mais, o voto é obrigatório. Dessa forma, obriga-se a participar do processo e, ao mesmo tempo, estigmatiza-se o voto em branco (ou nulo), comparado a lixo. A democracia não deveria garantir a liberdade de não votar?
Os políticos não estão nem aí com a quantidade dos votos em branco (e nulos), já que serão eleitos com base nos votos válidos, independente do total. Porém, a insistência em convencer o cidadão a votar revela a preocupação com a legitimação do processo eleitoral. Não se advoga aqui soluções autoritárias, até porque as eleições, ainda que limitada, é uma conquista das lutas pela democratização do país. 


No entanto, é preciso democratizar a democracia, isto é, ir além da esfera eleitoral. Mesmo neste âmbito, faz-se necessário uma reforma política que confira real poder aos eleitores, reduzidos na atualidade a legitimar o domínio dos políticos.
A democracia eleitoral se restringe a periodicamente escolhermos os que irão nos governar. Eis a nossa liberdade! A abstenção, os votos brancos e nulos também expressam a crítica ao sistema político e é um alerta aos políticos em geral quanto à sua legitimidade e a fragilidade da democracia. A não obrigatoriedade dos votos imporia uma dificuldade aos políticos profissionais: ter de convencer os eleitores de que vale a pena participar do processo. 


Não pode ser essencialmente democrático um procedimento que, a despeito de toda propaganda e da pressão pela participação, reduz o eleitor à opção de referendar os candidatos escolhidos pelos caciques e profissionais da política e a periodicamente legitimá-los em sua ânsia de permanecerem no poder. Nestas circunstâncias, qual é o poder real do eleitor?
Em nossa época, a política tende a ser pensada apenas em termos institucionais, isto é, vinculada às instituições do Estado. Nesta perspectiva, a ação política é reconhecida apenas quando direcionada ao Estado. A democracia representativa, por sua vez, constitui-se na forma privilegiada de intermediação entre os cidadãos e o Estado. 


Claro, no Estado de Direito. Fora da política partidária e do sistema eleitoral parece não haver a possibilidade da ação política. A cidadania termina por restringir-se ao direito individual do voto – igualdade jurídica – e a política torna-se a atividade por excelência do especialista, o profissional da política, o político.
Aos representados resta a opção de escolher entre os políticos que se apresentam como seus representantes. Formalmente há a possibilidade de aderir a um partido político e, em seu interior, ser escolhido para ser candidato. 


De fato, porém a classe política pouco se renova. Usando uma expressão cara ao leninismo, diria que a democracia representativa, fundamentada na competição entre os partidos para conquistar os eleitores, termina por formarquadros. São estes que controlam a máquina partidária e, portanto, os que têm mais chance de ocupar os postos do Estado – seja como políticos eleitos ou enquanto burocratas indicados para cargos chaves. Assim, o sistema político retroalimenta-se.
Parece não haver alternativas, mas há. A ação política também se manifesta para além da política institucional, ou seja, da política partidária. Contudo, esta também é tencionada no sentido da sua institucionalização na medida em que suas demandas têm o Estado como referência. Há a tendência à cooptação das lideranças e movimentos sociais, originalmente extra-institucionais e até contra o Estado. 


Paradoxalmente, o processo de fragilização de determinados movimentos sociais, e até mesmo sua ‘morte’, pode ser o resultado da conquista das suas reivindicações, na medida em que se perde a sua razão de existir. 


Devemos considerar, ainda, os casos dos partidos que nascem revolucionários, contra o Estado qualificado de “burguês”, mas que terminam por se adaptarem a este. 


A social-democracia européia é um exemplo clássico.
Este texto é parte de um trabalho maior, elaborado especialmente para a palestra de encerramento do II Simpósio de Ciências Sociais, Campus de Catalão (GO), Universidade Federal de Goiás, em 29 de setembro de 2010. 

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