Uma conversa fictícia entre Euclides da Cunha e Monteiro Lobato sobre a política do Brasil de hoje
Euclides da Cunha e Monteiro Lobato foram dois intelectuais profundamente preocupados com o Brasil. Euclides viveu o período da propaganda republicana, o golpe militar de novembro de 1889 e os primeiros 20 anos do novo regime. Desiludido com a república, acabou morrendo assassinado em 15 de agosto de 1909. Foi um colaborador habitual d'O Estado de S. Paulo. Ficaram célebres especialmente as reportagens sobre a Guerra de Canudos, em 1897, com o título de Diário de uma expedição. As reportagens, além de uma breve estadia com a quarta expedição no cerco do arraial fundado por Antonio Conselheiro, foram fundamentais para a confecção do maior clássico brasileiro, Os sertões.
Monteiro Lobato foi não só um grande escritor, como também um batalhador incansável em defesa da exploração do petróleo. Era um nacionalista anti-estatista, espécie rara no Brasil. Acabou preso no Estado Novo pelos ataques que fez ao general Horta Barbosa, primeiro presidente do Conselho Nacional de Petróleo. Foi também um colaborador contumaz de O Estado de S. Paulo. Foi no Estadão que publicou os também célebres artigos Uma velha praga e Urupês, em 1914.
Euclides e Lobato, caso estivessem vivos, estariam certamente estarrecidos com a conjuntura política brasileira e a falta de perspectivas. Nesta entrevista imaginária, os dois comentam os dilemas do Brasil de outros tempos. A única alteração é no tempo dos verbos. A conversa começa com a discussão sobre a mania que temos de reformar sempre pelo alto, ignorando os fundamentos do Estado, daí passa pelo velho problema da burocracia, da falta de quadros políticos, do fracasso da elite e do nosso futuro.
- Como analisa as reformas políticas?
Euclides da Cunha: O espírito nacional reconstrói-se pelas cimalhas, arriscando-se a ficar nos andaimes altíssimos, luxuosamente armados. Os novos princípios que chegam não têm o abrigo de uma cultura, e ficam no ar, inúteis, como forças admiráveis, mas sem pontos de apoio; e tornam-se frases decorativas sem sentido, ou capazes de todos os sentidos; e reduzem-se a fórmulas irritantes de uma caturrice doutrinária inaturável; e acabam fazendo-se palavras, meras palavras, rijas, secas, desfibradas, disfarçando a pobreza com vestimenta dos mais pretensiosos maiúsculos do alfabeto.
- E a burocracia nacional, como vencê-la?
Monteiro Lobato: O governo que suprimir o Ministério da Agricultura e os casarões que ele ocupa, prestará ao Brasil um serviço tremendo. Um dia Nilo Peçanha, por capadoçagem, lembrou-se de criar aquilo - e nossas desgraças começaram. O parasita foi encorpando, foi emitindo tentáculos, foi imiscuindo-se em tudo - nas culturas, para atrapalhá-las, na criação de porcos, para burocratizá-la; na avicultura; na citricultura, na pomicultura; em tudo que diz respeito a extrair coisas do solo. A ‘assistência’ daquele parasitismo começava a embaraçá-lo seriamente. Depois a ‘assistência’ degenerou em ‘proteção’ - esse tremendo negócio de parasitas que acaba matando o parasitado.
- E o governo, como vai? E o presidente da República?
Monteiro Lobato: Os nossos estadistas dos últimos tempos positivamente pensam com outros órgãos que não o cérebro - com o calcanhar, com o cotovelo, com certos penduricalhos - raramente com os miolos. Daí o desmantelo cada vez maior da administração pública; daí a bancarrota, a miséria horrível do povo. A miséria é tanta em certas zonas, que a grande massa da população rural já está perdendo a forma humana.
Euclides da Cunha: O seu valor absoluto e individual reflete na história a anomalia algébrica das quantidades negativas: cresceu, prodigiosamente, à medida que prodigiosamente diminuiu a energia nacional. Subiu, sem se elevar - porque se lhe operara em torno uma depressão profunda. Destacou-se à frente de um país, sem avançar - porque era o Brasil quem recuava, abandonando o traçado superior das suas tradições...
- Temos uma elite política? E os nossos intelectuais, continuam em silêncio?
Monteiro Lobato: Somos um pântano com 40 milhões de rãs coaxantes, uma a botar culpa na outra do mal-estar que sentiam. Procuram soluções políticas, mudam a forma do governo, derrubam um imperador vitalício para experimentar imperantes quadrienais, fazem revoluções, entrematam-se, insultam-se, acusam-se de mil crimes, inventam que o pântano permanece pântano ‘porque há uma crise moral crônica’. O mal das rãs é julgar que sons resolvem problemas econômicos. Trocam o som ‘monarquia’ pelo som ‘república’, e trocam este som pelo ‘república nova’. Depois inventam sons inéditos - ‘reajustamento’, ‘congelados’, ‘integralismo’. O próprio das rãs é esse excessivo pendor musical, Querem sonoridades apenas. ‘Somos o maior país do mundo’. ‘Temos o maior rio do mundo’. ‘Nossas riquezas são inesgotáveis’, etc. Enchem o ar dessas músicas - e mandam o ministro da Fazenda correr Nova York e Londres de chapéu na mão a pedinchar dinheiro.
Euclides da Cunha: Apresentamos o quadro de uma desordem intelectual que, depois de refletir-se no disparatado de não sei quantas filosofias deceradas, nos impôs, na ordem política, a mais funesta dispersão de idéias, levando-nos aos saltos e ao acaso, do artificialismo da monarquia constitucional para a ilusão metafísica da soberania do povo ou para os exageros da ditadura científica. Para ainda agravescer a crise, os dois ideais da abolição e da República não requeriam mais as emoções estéticas. Resolvidos na ordem moral, estavam entregues à ação quase mecânica dos propagandistas. Estes precipitavam-nos com o desalinho característico da fase revolucionária das doutrinas, em que se conchavam as idéias e os paralelepípedos das ruas, e os melhores argumentos desfecham no desmantelo das barricadas investidas.
- E o povo brasileiro? O que devemos fazer?
Euclides da Cunha: Este país é organicamente inviável. Deu o que podia dar: a escravidão, alguns atos de heroísmo amalucado, uma república hilariante e por fim o que aí está - a bandalheira sistematizada. O melhor serviço a prestar-se nesta terra, no atual momento, consiste sobretudo na seriedade, que é uma forma de heroísmo no meio deste enorme desabamento....
Monteiro Lobato: A pátria (permanece) sempre naquele eterno mutismo de peixe. A ilusão do brasileiro é um caso sério. O mundo já na era do rádio, e o Brasil ainda lasca pedra. Ainda é troglodita. O Brasil dorme. Daqui (dos Estados Unidos) se ouve o seu ressonar. Dorme e é completamente cego.
Marco Antonio Villa
Euclides da Cunha e Monteiro Lobato foram dois intelectuais profundamente preocupados com o Brasil. Euclides viveu o período da propaganda republicana, o golpe militar de novembro de 1889 e os primeiros 20 anos do novo regime. Desiludido com a república, acabou morrendo assassinado em 15 de agosto de 1909. Foi um colaborador habitual d'O Estado de S. Paulo. Ficaram célebres especialmente as reportagens sobre a Guerra de Canudos, em 1897, com o título de Diário de uma expedição. As reportagens, além de uma breve estadia com a quarta expedição no cerco do arraial fundado por Antonio Conselheiro, foram fundamentais para a confecção do maior clássico brasileiro, Os sertões.
Monteiro Lobato foi não só um grande escritor, como também um batalhador incansável em defesa da exploração do petróleo. Era um nacionalista anti-estatista, espécie rara no Brasil. Acabou preso no Estado Novo pelos ataques que fez ao general Horta Barbosa, primeiro presidente do Conselho Nacional de Petróleo. Foi também um colaborador contumaz de O Estado de S. Paulo. Foi no Estadão que publicou os também célebres artigos Uma velha praga e Urupês, em 1914.
Euclides e Lobato, caso estivessem vivos, estariam certamente estarrecidos com a conjuntura política brasileira e a falta de perspectivas. Nesta entrevista imaginária, os dois comentam os dilemas do Brasil de outros tempos. A única alteração é no tempo dos verbos. A conversa começa com a discussão sobre a mania que temos de reformar sempre pelo alto, ignorando os fundamentos do Estado, daí passa pelo velho problema da burocracia, da falta de quadros políticos, do fracasso da elite e do nosso futuro.
- Como analisa as reformas políticas?
Euclides da Cunha: O espírito nacional reconstrói-se pelas cimalhas, arriscando-se a ficar nos andaimes altíssimos, luxuosamente armados. Os novos princípios que chegam não têm o abrigo de uma cultura, e ficam no ar, inúteis, como forças admiráveis, mas sem pontos de apoio; e tornam-se frases decorativas sem sentido, ou capazes de todos os sentidos; e reduzem-se a fórmulas irritantes de uma caturrice doutrinária inaturável; e acabam fazendo-se palavras, meras palavras, rijas, secas, desfibradas, disfarçando a pobreza com vestimenta dos mais pretensiosos maiúsculos do alfabeto.
- E a burocracia nacional, como vencê-la?
Monteiro Lobato: O governo que suprimir o Ministério da Agricultura e os casarões que ele ocupa, prestará ao Brasil um serviço tremendo. Um dia Nilo Peçanha, por capadoçagem, lembrou-se de criar aquilo - e nossas desgraças começaram. O parasita foi encorpando, foi emitindo tentáculos, foi imiscuindo-se em tudo - nas culturas, para atrapalhá-las, na criação de porcos, para burocratizá-la; na avicultura; na citricultura, na pomicultura; em tudo que diz respeito a extrair coisas do solo. A ‘assistência’ daquele parasitismo começava a embaraçá-lo seriamente. Depois a ‘assistência’ degenerou em ‘proteção’ - esse tremendo negócio de parasitas que acaba matando o parasitado.
- E o governo, como vai? E o presidente da República?
Monteiro Lobato: Os nossos estadistas dos últimos tempos positivamente pensam com outros órgãos que não o cérebro - com o calcanhar, com o cotovelo, com certos penduricalhos - raramente com os miolos. Daí o desmantelo cada vez maior da administração pública; daí a bancarrota, a miséria horrível do povo. A miséria é tanta em certas zonas, que a grande massa da população rural já está perdendo a forma humana.
Euclides da Cunha: O seu valor absoluto e individual reflete na história a anomalia algébrica das quantidades negativas: cresceu, prodigiosamente, à medida que prodigiosamente diminuiu a energia nacional. Subiu, sem se elevar - porque se lhe operara em torno uma depressão profunda. Destacou-se à frente de um país, sem avançar - porque era o Brasil quem recuava, abandonando o traçado superior das suas tradições...
- Temos uma elite política? E os nossos intelectuais, continuam em silêncio?
Monteiro Lobato: Somos um pântano com 40 milhões de rãs coaxantes, uma a botar culpa na outra do mal-estar que sentiam. Procuram soluções políticas, mudam a forma do governo, derrubam um imperador vitalício para experimentar imperantes quadrienais, fazem revoluções, entrematam-se, insultam-se, acusam-se de mil crimes, inventam que o pântano permanece pântano ‘porque há uma crise moral crônica’. O mal das rãs é julgar que sons resolvem problemas econômicos. Trocam o som ‘monarquia’ pelo som ‘república’, e trocam este som pelo ‘república nova’. Depois inventam sons inéditos - ‘reajustamento’, ‘congelados’, ‘integralismo’. O próprio das rãs é esse excessivo pendor musical, Querem sonoridades apenas. ‘Somos o maior país do mundo’. ‘Temos o maior rio do mundo’. ‘Nossas riquezas são inesgotáveis’, etc. Enchem o ar dessas músicas - e mandam o ministro da Fazenda correr Nova York e Londres de chapéu na mão a pedinchar dinheiro.
Euclides da Cunha: Apresentamos o quadro de uma desordem intelectual que, depois de refletir-se no disparatado de não sei quantas filosofias deceradas, nos impôs, na ordem política, a mais funesta dispersão de idéias, levando-nos aos saltos e ao acaso, do artificialismo da monarquia constitucional para a ilusão metafísica da soberania do povo ou para os exageros da ditadura científica. Para ainda agravescer a crise, os dois ideais da abolição e da República não requeriam mais as emoções estéticas. Resolvidos na ordem moral, estavam entregues à ação quase mecânica dos propagandistas. Estes precipitavam-nos com o desalinho característico da fase revolucionária das doutrinas, em que se conchavam as idéias e os paralelepípedos das ruas, e os melhores argumentos desfecham no desmantelo das barricadas investidas.
- E o povo brasileiro? O que devemos fazer?
Euclides da Cunha: Este país é organicamente inviável. Deu o que podia dar: a escravidão, alguns atos de heroísmo amalucado, uma república hilariante e por fim o que aí está - a bandalheira sistematizada. O melhor serviço a prestar-se nesta terra, no atual momento, consiste sobretudo na seriedade, que é uma forma de heroísmo no meio deste enorme desabamento....
Monteiro Lobato: A pátria (permanece) sempre naquele eterno mutismo de peixe. A ilusão do brasileiro é um caso sério. O mundo já na era do rádio, e o Brasil ainda lasca pedra. Ainda é troglodita. O Brasil dorme. Daqui (dos Estados Unidos) se ouve o seu ressonar. Dorme e é completamente cego.
Marco Antonio Villa
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