"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sábado, 23 de junho de 2012

A diferença é o tempo verbal

Uma conversa fictícia entre Euclides da Cunha e Monteiro Lobato sobre a política do Brasil de hoje

Euclides da Cunha e Monteiro Lobato foram dois intelectuais profundamente preocupados com o Brasil. Euclides viveu o período da propaganda republicana, o golpe militar de novembro de 1889 e os primeiros 20 anos do novo regime. Desiludido com a república, acabou morrendo assassinado em 15 de agosto de 1909. Foi um colaborador habitual d'O Estado de S. Paulo. Ficaram célebres especialmente as reportagens sobre a Guerra de Canudos, em 1897, com o título de Diário de uma expedição. As reportagens, além de uma breve estadia com a quarta expedição no cerco do arraial fundado por Antonio Conselheiro, foram fundamentais para a confecção do maior clássico brasileiro, Os sertões.

Monteiro Lobato foi não só um grande escritor, como também um batalhador incansável em defesa da exploração do petróleo. Era um nacionalista anti-estatista, espécie rara no Brasil. Acabou preso no Estado Novo pelos ataques que fez ao general Horta Barbosa, primeiro presidente do Conselho Nacional de Petróleo. Foi também um colaborador contumaz de O Estado de S. Paulo. Foi no Estadão que publicou os também célebres artigos Uma velha praga e Urupês, em 1914.

Euclides e Lobato, caso estivessem vivos, estariam certamente estarrecidos com a conjuntura política brasileira e a falta de perspectivas. Nesta entrevista imaginária, os dois comentam os dilemas do Brasil de outros tempos. A única alteração é no tempo dos verbos. A conversa começa com a discussão sobre a mania que temos de reformar sempre pelo alto, ignorando os fundamentos do Estado, daí passa pelo velho problema da burocracia, da falta de quadros políticos, do fracasso da elite e do nosso futuro.

- Como analisa as reformas políticas?

Euclides da Cunha: O espírito nacional reconstrói-se pelas cimalhas, arriscando-se a ficar nos andaimes altíssimos, luxuosamente armados. Os novos princípios que chegam não têm o abrigo de uma cultura, e ficam no ar, inúteis, como forças admiráveis, mas sem pontos de apoio; e tornam-se frases decorativas sem sentido, ou capazes de todos os sentidos; e reduzem-se a fórmulas irritantes de uma caturrice doutrinária inaturável; e acabam fazendo-se palavras, meras palavras, rijas, secas, desfibradas, disfarçando a pobreza com vestimenta dos mais pretensiosos maiúsculos do alfabeto.

- E a burocracia nacional, como vencê-la?

Monteiro Lobato: O governo que suprimir o Ministério da Agricultura e os casarões que ele ocupa, prestará ao Brasil um serviço tremendo. Um dia Nilo Peçanha, por capadoçagem, lembrou-se de criar aquilo - e nossas desgraças começaram. O parasita foi encorpando, foi emitindo tentáculos, foi imiscuindo-se em tudo - nas culturas, para atrapalhá-las, na criação de porcos, para burocratizá-la; na avicultura; na citricultura, na pomicultura; em tudo que diz respeito a extrair coisas do solo. A ‘assistência’ daquele parasitismo começava a embaraçá-lo seriamente. Depois a ‘assistência’ degenerou em ‘proteção’ - esse tremendo negócio de parasitas que acaba matando o parasitado.

- E o governo, como vai? E o presidente da República?

Monteiro Lobato: Os nossos estadistas dos últimos tempos positivamente pensam com outros órgãos que não o cérebro - com o calcanhar, com o cotovelo, com certos penduricalhos - raramente com os miolos. Daí o desmantelo cada vez maior da administração pública; daí a bancarrota, a miséria horrível do povo. A miséria é tanta em certas zonas, que a grande massa da população rural já está perdendo a forma humana.

Euclides da Cunha: O seu valor absoluto e individual reflete na história a anomalia algébrica das quantidades negativas: cresceu, prodigiosamente, à medida que prodigiosamente diminuiu a energia nacional. Subiu, sem se elevar - porque se lhe operara em torno uma depressão profunda. Destacou-se à frente de um país, sem avançar - porque era o Brasil quem recuava, abandonando o traçado superior das suas tradições...

- Temos uma elite política? E os nossos intelectuais, continuam em silêncio?

Monteiro Lobato: Somos um pântano com 40 milhões de rãs coaxantes, uma a botar culpa na outra do mal-estar que sentiam. Procuram soluções políticas, mudam a forma do governo, derrubam um imperador vitalício para experimentar imperantes quadrienais, fazem revoluções, entrematam-se, insultam-se, acusam-se de mil crimes, inventam que o pântano permanece pântano ‘porque há uma crise moral crônica’. O mal das rãs é julgar que sons resolvem problemas econômicos. Trocam o som ‘monarquia’ pelo som ‘república’, e trocam este som pelo ‘república nova’. Depois inventam sons inéditos - ‘reajustamento’, ‘congelados’, ‘integralismo’. O próprio das rãs é esse excessivo pendor musical, Querem sonoridades apenas. ‘Somos o maior país do mundo’. ‘Temos o maior rio do mundo’. ‘Nossas riquezas são inesgotáveis’, etc. Enchem o ar dessas músicas - e mandam o ministro da Fazenda correr Nova York e Londres de chapéu na mão a pedinchar dinheiro.

Euclides da Cunha: Apresentamos o quadro de uma desordem intelectual que, depois de refletir-se no disparatado de não sei quantas filosofias deceradas, nos impôs, na ordem política, a mais funesta dispersão de idéias, levando-nos aos saltos e ao acaso, do artificialismo da monarquia constitucional para a ilusão metafísica da soberania do povo ou para os exageros da ditadura científica. Para ainda agravescer a crise, os dois ideais da abolição e da República não requeriam mais as emoções estéticas. Resolvidos na ordem moral, estavam entregues à ação quase mecânica dos propagandistas. Estes precipitavam-nos com o desalinho característico da fase revolucionária das doutrinas, em que se conchavam as idéias e os paralelepípedos das ruas, e os melhores argumentos desfecham no desmantelo das barricadas investidas.

- E o povo brasileiro? O que devemos fazer?

Euclides da Cunha: Este país é organicamente inviável. Deu o que podia dar: a escravidão, alguns atos de heroísmo amalucado, uma república hilariante e por fim o que aí está - a bandalheira sistematizada. O melhor serviço a prestar-se nesta terra, no atual momento, consiste sobretudo na seriedade, que é uma forma de heroísmo no meio deste enorme desabamento....

Monteiro Lobato: A pátria (permanece) sempre naquele eterno mutismo de peixe. A ilusão do brasileiro é um caso sério. O mundo já na era do rádio, e o Brasil ainda lasca pedra. Ainda é troglodita. O Brasil dorme. Daqui (dos Estados Unidos) se ouve o seu ressonar. Dorme e é completamente cego.


Marco Antonio Villa

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