Durante o Império, nunca chegamos a ter o que hoje poderíamos chamar de um sistema partidário. Na verdade, a Constituição de 1824, ao se omitir em relação aos partidos políticos, que na forma como hoje são concebidos constituem uma realidade do fim do Séc. XIX, terminou implantando o regime da liberdade de organização partidá-ria.
Os partidos políticos do Império, pelo menos até 1868, quando os liberais organizam a “Liga Progressista” e o “Centro Liberal”,ou talvez 1870, quando os republicanos lançam o Manifesto de Itu e fundam o Partido Republicano, não eram instituições, não tinham estatutos nem se revestiam de qualquer forma de organização jurídica.
Eram, na verdade, vontades concorrentes, uma simples convergência de interesses e afinidades – ou ideológicas e de convicções, ou mesmo de simples interesses, acima das convicções.
Não parece justa, portanto, como veremos, a sentença terrível de Oliveira Viana que em sua obra "A queda do Império" diz serem eles apenas “simples agregados de clãs organizados para a exploração em comum das vantagens do poder”.
Como lembra Oliveira Lima, e como confirma Américo Brasiliense em seu Os programas dos artidos e o Segundo Império, os partidos brasileiros datam da Regência: o Liberal nascido em torno das idéias reformistas propiciadas pela Revolução de Sete de Abril, e o Conservador surgido da reação a esse sentimento exaltado, com a estrondosa passagem do mais famoso líder do liberalismo do primeiro Império para as fileiras do conservadorismo: Bernardo Pereira de Vasconcelos, com o seu movimento “regressista”.
Oliveira Lima mostra como e em torno de que interesses se agrupava a elite política dessa época:
“( ... ) o soberano fazia as vezes de eixo do Estado. O pessoal político girava em redor dele, atraídos uns pelo seu magnetismo, afastados outros pelo seu caráter desigual, sem se agruparem em bandos disciplinados.
A tendência comum era democrática, portanto antiautocrática, mas simpatias e antipatias visavam diretamente o monarca e os princípios mais se regulavam pelos sentimentos assim manifestados.”É claro que o Sete de Abril, a abdicação do monarca e a instalação da Regência modificariam ensivelmente esse panorama. O triunfo das idéias liberais, o fim do absolutismo voluntarioso de D. Pedro I e o recuo amedrontado de seus áulicos, fizeram surgir um nítido movimento de idéias em torno de reformas políticas e institucionais que se tornaram inevitáveis.
A partir daí, é ainda Oliveira Lima quem diz:“Predominaram idéias e paixões: os republicanos uniram-se quase todos aos avançados que foram mais tarde os liberais, certo número permanecendo fiel ao federalismo; os constitucionais fundiram-se com os moderados e rodearam a bandeira conservadora, quando as aspirações dos radicais foram parcialmente satisfeitas pelo Ato Adicional, um momento de transação e conciliação entre as elites, para evitar o que ameaçava se transformar em insurreição permanente.
Como disse Evaristo na Câmara, foi preciso ‘fazer parar o carro da revolução’.”O que significava o liberalismo, então? Segundo Oliveira Lima, de quem nos valemos para traçar esse quadro, o sentimento liberal predominante “abrangida a Monarquia federativa; a abolição do Poder Moderador; a eleição bienal da Câmara; o Senado eletivo e temporário; a supressão do Conselho de Estado; Assembléias Legislativas provinciais com duas Câmaras; intendentes municipais desempenhando nas comunas o papel dos Presidentes nas Províncias”.
O Ato Adicional no entanto, como momento de transação entre os dois extremos, um que desejava tudo modificar, e o outro que nada admitia mudar, terminou apenas abrandando o rigorismo centralista e instituindo Assembléias Legislativas Provinciais, em lugar dos Conselhos Gerais de Província, que na verdade eram simples órgãos consultivos, sem poderes.
As demais aspirações liberais terminaram, na verdade, umas adiadas e nunca realizadas; outras colocadas em ação pela força dos costumes, mas sem se mexer na Constituição, e outras momentaneamente apenas realizadas. Enquanto os liberais exaltados achavam que nada se tinha conseguido, os conservadores radicais acreditavam que se tinha ido longe demais...
Liberais e Conservadores
Na verdade, porém, se o Ato Adicional não atendeu às aspirações dos liberais exaltados, e extrapolou de muito o que concediam os conservadores radicais, foi em torno desse confronto que se criou o sistema partidário do Império. Em 1837, com a renúncia de Feijó e a eleição de Pedro de Araújo Lima, funda-se de fato o Partido Conservador, no momento em que Bernardo Pereira de Vasconcelos, a maior figura do liberalismo exaltado, ao tempo de D. Pedro I, passa com enorme estrondo e seu antológico discurso para a reação conservadora.
Esse predomínio conservador, no entanto, dura pouco, pois sucumbe ao golpe parlamentar da maioridade, quando os liberais, à margem da Constituição, conseguem elevar ao trono o seu herdeiro, então com 14 anos de idade, quatro antes dos dezoito previstos na Carta de 1824. As revoltas liberais de Minas e São Paulo, em 1842, e a Praieira, em Pernambuco, em 1848, determinam um longo ostracismo para o partido que em 1840 fez a maioridade. É a fase do longo predomínio conservador que, no poder, recria por lei o Conselho de Estado, banido da Constituição pelo AtoAdicional, faz votar a lei interpretativa do Ato Adicional, travando as conquistas liberais e muda o Código de Processo Penal para reforçar o poder de autoridade.
Os vinte anos que se seguem, entre 1848 e 1868, com o pequeno intervalo da “Conciliação” do Marquês de Paraná, marcam um novo confronto de idéias e posições entre as concepções dos liberais e a dos conservadores. Nesse jogo de posições, em que coube aos liberais pregar as reformas e aos conservadores efetiválas, quando no governo, se esgota a política partidária.
“Os liberais admitiam o direito de resistência armada, toda vez que o Governo cometesse arbitrariedades e ofendesse as leis e a Constituição do Império; os conservadores repudiavam como ilegal qualquer revolução, visto que era livre toda propaganda doutrinária, e que a imprensa, as urnas e os Tribunais ofereciam meios suficientes de reparar os abusos das autoridades e emendar os atos contrários ao interesse público.
Os liberais permaneciam aditos ao princípio da descentralização administrativa, queriam reduzir ao mínimo a ação da polícia e pregavam a eleição popular dos magistrados, agentes judiciais que deviam ser de livre escolha da Nação e não instrumentos do poder; os conservadores julgavam a centralização política indispensável à integridade do Império, e a independência e inamovibilidade do Poder Judiciário, arredado dos favores do sufrágio, necessárias à dignidade de sua missão protetora dos direitos dos cidadãos e organizadora da resistência legal.”Era em torno de questões assim concebidas, segundo o testemunho de Oliveira Lima, que o Partido Liberal se opunha ao Conservador e que este resistia às investidas daquele.
O Marquês de Paraná morre em 1856, como Presidente do Conselho, mas a “Conciliação” que ele moldou continuou lentamente a produzir frutos. Abrandam-se os radicalismos dos dois partidos existentes e é na crista de uma onda arrebatadora que ressurge, renascido e renovado, o novo liberalismo, representado pela eleição irrefutável pelo município da Corte da grande tríade liberal: Teófilo Otoni, Francisco Otaviano e Saldanha Marinho. Oito anos depois, quando da queda imotivada do Gabinete Zacarias, por causa do incidente com Caxias, a Liga Progressista e depois o Centro Liberal são apenas expressões que antecipam o que viria dois anos mais tarde: a fundação do Partido Republicano, em 1870.
O programa liberal de 1868, redigido por Nabuco, lembra os liberais exaltados de 1831: ele prega a descentralização política e administrativa, defende a abolição do Poder Moderador e advoga um Senado eletivo e vitalício. Quer que a escolha dos Presidentes seja feita pelos eleitores de cada Província, antecipando a Federação, preconiza a liberdade do ensino e postula uma polícia eleita pelos cidadãos. Defende o fim da Guarda Nacional e dos alistamentos compulsórios, propõe o voto direto e a sujeição dos Magistrados apenas ao julgamento dos Tribunais superiores, tornando-os imunes à ação do Executivo.
Vinte anos depois, quando a República tornou-se inevitável, todas as propostas liberais, com exceção talvez da Federação, que seria fatalmente concedida, não fora o golpe militar, estavam atendidas. Até mesmo a questão crucial da escravidão que os liberais, de início, tão timidamente enfrentaram. O que foram, no entanto, os partidos, sob a Constituição do Império, em seus 65 anos de duração?
Partidos, todos de ocasião
Oliveira Lima, invocando o testemunho de Nabuco, diz que ele, que era “sobretudo um legista e professava em matéria política um ceticismo de bom quilate, não descobria mesmo lugar no Brasil para partidos profundos”. Nabuco baseava-se no fato de que “nada dividia essencialmente a sociedade brasileira, tão homogênea, onde o feudalismo não deixava vestígios e se achavam completamente fora de lugar as quimeras políticas e os programas abstratos”.
Para ele, “os partidos, como os Ministérios, duravam ou deviam durar o tempo que duravam as idé-ias que os legitimavam. Os partidos seriam, portanto, todos de ocasião, liberais ou conservadores, de acordo com as circunstâncias e os interesses, não de acordo com princípios de doutrina ou escola, ou com tradições históricas. A ausência de privilégios condenava os partidos a defenderem somente princípios de atualidade, idéias ondeantes, as quais não podiam sobreviver”.
Se isto foi um bem ou um mal, só a crítica histórica poderá dizer.
Mas, quem olha o panorama partidário da vida política contemporânea do Brasil, fatalmente há de concordar que, deixando a questão partidária ao livre jogo dos arbítrios dos homens, a Constituição de 1824 nada mais fez do que atender a irremovível pressão da realidade brasileira.
Octaciano Nogueira
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