Democracia real supõe oposição verdadeira, semente da alternância no poder.
De sua vez, oposição depende de informação sem manipulação, de transparência, de liberdade de expressão e da erradicação de malfazejas censuras. Fora do quadro divisado, impossível formatar juízo de valor próprio da crítica construtiva, da salutar contestação e de um ambiente democrático, no âmbito do qual se busca a unidade justamente a partir da pluralidade de mentes e de vozes.
Norberto Bobbio (O futuro da democracia. 11ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009, p. 98), ao tratar da democracia e do poder invisível, ensinou que o governo da democracia, num aparente jogo de palavras, pode ser definido como “o governo do público em público”. Segundo o autor, o “público” tem dois significados diversos, conforme venha contraposto a “privado” ou a “secreto”, em cujo caso tem o significado não de pertencente à “coisa pública” ou ao “Estado”, mas de “manifesto”, “evidente”, mais precisamente de “visível”.
Em meio a isso, descortina-se o tema da imunidade parlamentar, um dos mecanismos alicerçados pelo Direito para levar a efeito o desiderato democrático.
Em função das distorções relacionadas ao plano da prática política nacional, imunidade parlamentar, aqui e alhures, é comumente confundida com privilégio. No plano ideal, todavia, não é. Ou não deveria ser. Em linhas gerais, o privilégio fere o princípio da isonomia, ao passo que a prerrogativa não. Esta diz, precisamente, com tratar desigualmente os desiguais, na exata medida da desigualdade, numa visão obsequiosa do texto constitucional.
Quando a Constituição Federal, em seu artigo 53, estabelece que “os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”, não o faz, obviamente, para fomentar impunidades e/ou estimular práticas espúrias, sob o manto de uma amaldiçoada couraça protetora.
Não se trata de licença para promover atividades ilícitas ou mesmo para vilipendiar a honra e o patrimônio alheios. A razão é bem outra. A clara intenção da norma, de status constitucional, diz com a criação de um ambiente genuinamente democrático, fértil e tendente ao debate, à circulação de ideias, ao endereçamento de um consenso possível, na alça de mira da (boa) política, bem exercitada, com compromisso, respeito e responsabilidade.
Demais disso, como advertiu o insigne Geraldo Ataliba (República e Constituição. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 107, 108 e 109), a inviolabilidade é prerrogativa de função, estabelecida para assegurar independência, já que “o parlamentar expressa pensamentos, ideias, angústias, anseios, sentimentos e frustrações dos mandantes, daqueles a quem representa”, sendo certo que “mais vale o risco de eventuais excessos do que o perigo de omitir-se o parlamentar, ou se ser um mau e inadequado porta-voz do pensamento popular”.
Em espaços despóticos, o enfraquecimento da regra da imunidade parlamentar dá azo a mordaças corrosivas da democracia. E a atuação parlamentar não pode ser refém do medo, do temor, do receio de perseguições, mesmo as arquitetadas à luz de fórmulas pretensiosamente jurídicas, mascaradas de uma legalidade puramente semântica, desconectada do justo.
Na Argentina de hoje, por exemplo, segundo o jornal O Globo (de 17 de janeiro de 2013, p. 20), o último dado do Indec, uma espécie de IBGE argentino, o índice oficial da inflação em 2012 foi de 10,8%, cifra bem baixa se comparada à inflação real, calculada por consultorias privadas, na casa dos 25,6%. O índice verdadeiro, intuitivamente o segundo, foi curiosamente batizado de “IPC do Congresso”, depois que a proibição judicial de divulgação —resultado de um processo deflagrado por representantes da Casa Rosada— foi meritoriamente contornada pela heroica ação de parlamentares que, por conta própria, sob o manto da imunidade, trouxeram à tona a verdade, convolando um faz de conta em realidade eloquente. O episódio revela, para a tristeza geral de numerosos inimigos da transparência, a existência de irrigações periféricas sustentáveis no músculo cardíaco da democracia.
O fato, ainda, remete a atenta memória para o chamado “caso Ricúpero”. No livro A Realidade dos Meios de Massas, capítulo 6 (Ricúpero), o saudoso professor alemão Niklas Luhmann, inusitadamente, relembra o episódio em que o então ministro Rubens Ricúpero, da Fazenda, no in off mais falho da história, a propósito do caráter possivelmente eleitoreiro da manutenção do Plano Real para as eleições de outubro de 1994, deixou claramente assentado que, na prática, a explicação pública que dava o governo não correspondia à realidade das suas intenções.
Denotou-se, naquela ocasião, a partir da inadvertida transmissão, por antenas parabólicas (melhor seriam “diabólicas”, no dizer do autor germânico), de uma conversa informal, de conteúdo devastador, entre o ministro e seu cunhado, o prestigiado jornalista da Rede Globo Carlos Monforte, anterior ao início de uma entrevista formal, que iria ao ar pouco tempo depois, o abismo entre o discurso oficial do governo e seus velados escopos. O episódio, conhecido como “escândalo da parabólica”, impulsionou a renúncia do ministro e, relembre-se, promoveu a queda da Bolsa de Valores em mais de 10%.
Nas reflexões deflagradas pelo exame de ambos os casos, forçoso concordar com o magistério de Carlos Ari Sundfeld (Fundamentos de Direito Público. 5ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 177), acerca do princípio da publicidade, para quem a razão de ser do Estado é toda externa. E que tudo que nele se passa, tudo que faz, tudo que possui, tem uma direção exterior.
Em convergência exegética, Giovanni Sartori (Teoría de la democracia. 1. El debate contemporâneo. Madri: Alianza Editorial, 2009, p. 117) revela que o poder eleitoral é a garantia “mecânica” da democracia, mas as condições mercê das quais os cidadãos obtêm as informações e estão expostos às pressões dos fabricantes de opinião são condições da garantia “substantiva”. A seu autorizado sentir, a opinião dos governados é base real de todo governo.
As eleições são meio para um fim, um “governo de opinião”, ou seja, um governo sensível e responsável para com a opinião pública. E eleições livres pressupõem opiniões livres, pois do contrário nada significam, já que um soberano vazio, que não tem nada a dizer, sem opiniões próprias, não passa de um mero sancionador, alguém que se limita a ratificar algo, “um soberano de nada”.
Aduziu o saudoso Geraldo Ataliba (Obra citada, p. 171 e 173) que o quadro constitucional atual e a adoção de instituições republicanas dão azo a um sistema de lealdade do Estado, absolutamente incompatível com a surpresa.
Exsurge daí que a democracia, no seu esplendor, não se coaduna com obscuridade, engodo, ardil, malevolência, sendo certo que, no mundo culto e civilizado, ela não é mais vista como simples forma de governo, mas sim como virtuoso modo de vida, conquistando os predicados de irreversível e inegociável.
E as tentativas de subversão da boa ordem democrática, condenáveis mais do que nunca, podem até impressionar, mas nem de longe têm o condão de tisná-la.
Tarcisio Vieira de Carvalho Neto: é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, subprocurador-geral do Distrito Federal e advogado especializado em Direito Eleitoral.
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