"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Imunidade parlamentar está à serviço da democracia


Democracia real supõe oposição verdadeira, semente da alternância no poder.

De sua vez, oposição depende de informação sem manipulação, de transparência, de liberdade de expressão e da erradicação de malfazejas censuras. Fora do quadro divisado, impossível formatar juízo de valor próprio da crítica construtiva, da salutar contestação e de um ambiente democrático, no âmbito do qual se busca a unidade justamente a partir da pluralidade de mentes e de vozes.

Norberto Bobbio (O futuro da democracia. 11ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009, p. 98), ao tratar da democracia e do poder invisível, ensinou que o governo da democracia, num aparente jogo de palavras, pode ser definido como “o governo do público em público”. Segundo o autor, o “público” tem dois significados diversos, conforme venha contraposto a “privado” ou a “secreto”, em cujo caso tem o significado não de pertencente à “coisa pública” ou ao “Estado”, mas de “manifesto”, “evidente”, mais precisamente de “visível”.

Em meio a isso, descortina-se o tema da imunidade parlamentar, um dos mecanismos alicerçados pelo Direito para levar a efeito o desiderato democrático.

Em função das distorções relacionadas ao plano da prática política nacional, imunidade parlamentar, aqui e alhures, é comumente confundida com privilégio. No plano ideal, todavia, não é. Ou não deveria ser. Em linhas gerais, o privilégio fere o princípio da isonomia, ao passo que a prerrogativa não. Esta diz, precisamente, com tratar desigualmente os desiguais, na exata medida da desigualdade, numa visão obsequiosa do texto constitucional.

Quando a Constituição Federal, em seu artigo 53, estabelece que “os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”, não o faz, obviamente, para fomentar impunidades e/ou estimular práticas espúrias, sob o manto de uma amaldiçoada couraça protetora.

Não se trata de licença para promover atividades ilícitas ou mesmo para vilipendiar a honra e o patrimônio alheios. A razão é bem outra. A clara intenção da norma, de status constitucional, diz com a criação de um ambiente genuinamente democrático, fértil e tendente ao debate, à circulação de ideias, ao endereçamento de um consenso possível, na alça de mira da (boa) política, bem exercitada, com compromisso, respeito e responsabilidade.

Demais disso, como advertiu o insigne Geraldo Ataliba (República e Constituição. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 107, 108 e 109), a inviolabilidade é prerrogativa de função, estabelecida para assegurar independência, já que “o parlamentar expressa pensamentos, ideias, angústias, anseios, sentimentos e frustrações dos mandantes, daqueles a quem representa”, sendo certo que “mais vale o risco de eventuais excessos do que o perigo de omitir-se o parlamentar, ou se ser um mau e inadequado porta-voz do pensamento popular”.

Em espaços despóticos, o enfraquecimento da regra da imunidade parlamentar dá azo a mordaças corrosivas da democracia. E a atuação parlamentar não pode ser refém do medo, do temor, do receio de perseguições, mesmo as arquitetadas à luz de fórmulas pretensiosamente jurídicas, mascaradas de uma legalidade puramente semântica, desconectada do justo.

Na Argentina de hoje, por exemplo, segundo o jornal O Globo (de 17 de janeiro de 2013, p. 20), o último dado do Indec, uma espécie de IBGE argentino, o índice oficial da inflação em 2012 foi de 10,8%, cifra bem baixa se comparada à inflação real, calculada por consultorias privadas, na casa dos 25,6%. O índice verdadeiro, intuitivamente o segundo, foi curiosamente batizado de “IPC do Congresso”, depois que a proibição judicial de divulgação —resultado de um processo deflagrado por representantes da Casa Rosada— foi meritoriamente contornada pela heroica ação de parlamentares que, por conta própria, sob o manto da imunidade, trouxeram à tona a verdade, convolando um faz de conta em realidade eloquente. O episódio revela, para a tristeza geral de numerosos inimigos da transparência, a existência de irrigações periféricas sustentáveis no músculo cardíaco da democracia.

O fato, ainda, remete a atenta memória para o chamado “caso Ricúpero”. No livro A Realidade dos Meios de Massas, capítulo 6 (Ricúpero), o saudoso professor alemão Niklas Luhmann, inusitadamente, relembra o episódio em que o então ministro Rubens Ricúpero, da Fazenda, no in off mais falho da história, a propósito do caráter possivelmente eleitoreiro da manutenção do Plano Real para as eleições de outubro de 1994, deixou claramente assentado que, na prática, a explicação pública que dava o governo não correspondia à realidade das suas intenções.

Denotou-se, naquela ocasião, a partir da inadvertida transmissão, por antenas parabólicas (melhor seriam “diabólicas”, no dizer do autor germânico), de uma conversa informal, de conteúdo devastador, entre o ministro e seu cunhado, o prestigiado jornalista da Rede Globo Carlos Monforte, anterior ao início de uma entrevista formal, que iria ao ar pouco tempo depois, o abismo entre o discurso oficial do governo e seus velados escopos. O episódio, conhecido como “escândalo da parabólica”, impulsionou a renúncia do ministro e, relembre-se, promoveu a queda da Bolsa de Valores em mais de 10%.

Nas reflexões deflagradas pelo exame de ambos os casos, forçoso concordar com o magistério de Carlos Ari Sundfeld (Fundamentos de Direito Público. 5ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 177), acerca do princípio da publicidade, para quem a razão de ser do Estado é toda externa. E que tudo que nele se passa, tudo que faz, tudo que possui, tem uma direção exterior.

Em convergência exegética, Giovanni Sartori (Teoría de la democracia. 1. El debate contemporâneo. Madri: Alianza Editorial, 2009, p. 117) revela que o poder eleitoral é a garantia “mecânica” da democracia, mas as condições mercê das quais os cidadãos obtêm as informações e estão expostos às pressões dos fabricantes de opinião são condições da garantia “substantiva”. A seu autorizado sentir, a opinião dos governados é base real de todo governo.

As eleições são meio para um fim, um “governo de opinião”, ou seja, um governo sensível e responsável para com a opinião pública. E eleições livres pressupõem opiniões livres, pois do contrário nada significam, já que um soberano vazio, que não tem nada a dizer, sem opiniões próprias, não passa de um mero sancionador, alguém que se limita a ratificar algo, “um soberano de nada”.

Aduziu o saudoso Geraldo Ataliba (Obra citada, p. 171 e 173) que o quadro constitucional atual e a adoção de instituições republicanas dão azo a um sistema de lealdade do Estado, absolutamente incompatível com a surpresa.

Exsurge daí que a democracia, no seu esplendor, não se coaduna com obscuridade, engodo, ardil, malevolência, sendo certo que, no mundo culto e civilizado, ela não é mais vista como simples forma de governo, mas sim como virtuoso modo de vida, conquistando os predicados de irreversível e inegociável.

E as tentativas de subversão da boa ordem democrática, condenáveis mais do que nunca, podem até impressionar, mas nem de longe têm o condão de tisná-la.

Tarcisio Vieira de Carvalho Neto: é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, subprocurador-geral do Distrito Federal e advogado especializado em Direito Eleitoral.

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