"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quinta-feira, 25 de julho de 2013

É preciso ter humildade constitucional: o caso alemão

Entre alguns constitucionalistas alemães, é popular a visão de que a Constituição deve funcionar como uma ordem-moldura (Rahmenordnung). Sob essa perspectiva, a Constituição seria como a moldura de um quadro ou de uma tela. 

A moldura fixa e delineia limites; estabelece uma área do que é admissível.

Dentro da moldura, o legislador ordinário e infraconstitucional é livre para fazer escolhas por meio do processo democrático. Há algumas coisas que a Constituição proíbe e outras que ela exige. Para todas as outras, não há uma resposta constitucional pré-determinada. Já se chamou isso e outras coisas, no Brasil, de humildade constitucional (sobre o conceito, clique aqui).

Essa visão sobre a finalidade do texto constitucional é particularmente relevante no caso de Constituições como a brasileira, a americana, a alemã, a sul-africana etc. O constituinte brasileiro desejou, como os povos em geral desejam, de tudo um pouco. Ele quis adotar o rol mais amplo e belo de direitos e garantias, mas sem especificar, em pormenor, como eles deveriam ser aplicados.

Não é, por exemplo, porque a Constituição possui um capítulo que garante a proteção à família, que ela contém a resposta para todos os problemas de Direito de Família (ou das famílias). Não obstante, o lema de alguns juristas, inclusive de muitos civilistas, parece ser: “Só a Constituição salva!” É puro dogmatismo...

Os termos explícitos da Constituição criam, com frequência, conflitos entre dois ou mais valores que são igualmente constitucionais, sem que tais conflitos sejam resolvidos pelo texto constitucional.

Quando é que a liberdade de expressão deve ceder à proteção da privacidade, e vice-versa? Um membro da religião rastafári, por exemplo, pode ser condenado por usar maconha durante práticas religiosas? Casos análogos a esse — envolvendo o uso de drogas ilícitas e a liberdade religiosa — foram decididos de maneira diferente pela Suprema Corte dos EUA e pela Corte Constitucional da África do Sul. Há notícia de um caso semelhante no Brasil.

Nesse contexto, ao menos duas decisões do Tribunal Constitucional Federal alemão (doravante, BVerfG) merecem atenção: Cannabis e Kopftuch.

Na decisão sobre a proibição da maconha (Cannabis-Beschluss), o BVerfG disse que fazia parte da margem de ação (Spielraum) do legislador criminalizar o uso dessa substância. O BVerfG entendeu que “não lhe cabe aferir, se a decisão do legislador é a mais correta, a mais racional ou a mais justa”; cumpre-lhe apenas verificar, se ela é compatível com as decisões fundamentais e basilares contidas na Lei Fundamental alemã. A margem de julgamento do legislador é ampla. A proporcionalidade serve apenas para coibir o que é excessivo (übermässig).

A criminalização do uso de maconha não é nem exigida, nem proibida pela Lei Fundamental. A proibição do excesso (Übermassverbot) comporta, em princípio, as duas soluções. Em tese, o mesmo vale para outras drogas. Afinal, não há, na Lei Fundamental, um direito à intoxicação (Ein ‘Recht auf Rausch’ gibt es nicht).

Também se registrou, na decisão, que o legislador possui uma margem de apreciação quanto aos fatos ou prognoses que toma por verdadeiros. Portanto, se a ciência discorda acerca dos efeitos maléficos da cânabis em geral ou da maconha, sobretudo em relação às outras drogas, prevalecerá a decisão do legislador.

Perceba-se, inclusive, que o BVerfG afastou a alegação de que a isonomia teria sido desrespeitada. Argumentou-se, perante o BVerfG, que o álcool e o cigarro não eram proibidos como a maconha e que isso feriria a máxima da igualdade. Na decisão em apreço, prevaleceu que as diferenciações feitas pelo legislador são, em geral, admissíveis. Elas apenas violam a isonomia, se se mostrarem arbitrárias (willkürlich). Trata-se, tão-somente, de saber se a distinção é desarrazoada (sachfremd) ou defensável (vertretbar). Basta ser meramente defensável para que seja constitucional.

Ademais, ainda que se admita que o álcool e o cigarro causam o mesmo mal à saúde que a maconha, esse não precisa ser o único critério para a criminalização de uma substância química.

No caso Kopftuch (Kopftuchurteil), uma professora de escola pública fora proibida de lecionar, uma vez que, por ser muçulmana, usava o véu em sala de aula. O BVerfG entendeu que a proibição, levada a efeito por membros da administração pública estadual de Baden-Württemberg, era inconstitucional, porque não havia lei formal que a autorizasse. Sem lei, trata-se de limitação a um direito fundamental que implica a sua violação; com lei, a limitação ao direito fundamental passa a ser admissível.

Entendeu-se que a margem de apreciação do legislador é ampla; que nem toda limitação ou restrição a direito fundamental importa a sua violação; e que enxergar um símbolo de opressão, no uso do véu por muçulmanas — professoras de escolha pública ou não —, é uma simplificação grosseira. O uso do véu também pode ser fruto de genuína autodeterminação.

Há uma tensão entre a liberdade religiosa da professora e a neutralidade religiosa e ideológica (weltanschaulich) que se impõe ao Estado. Portanto, diante da colisão de dois valores igualmente constitucionais, deve ter-se deferência para com os parlamentos estaduais, que são competentes para legislar sobre a matéria na Alemanha.

Em uma comunidade tolerante, não existe direito fundamental a não ser exposto a visões religiosas minoritárias, diversificadas ou plurais. Todavia, a questão toma outra forma, quando o Estado, por meio de seus agentes, manifesta opinião em favor de uma religião. O BVerfG frisou, igualmente, o papel paradigmático que uma professora desempenha perante crianças de pouca idade em uma escola pública.

Em apertada síntese, é possível extrair algumas conclusões das decisões brevemente analisadas.

Primeiramente, nota-se que, em um estado que se diz democrático, questões essenciais devem ser decididas pelo parlamento, independentemente de se concordar com as decisões que ele toma. Entender a Constituição como ordem-moldura, entre a demasia e a insuficiência, entre o Übermassverbot e o Untermassverbot, significa ser deferente ao parlamento, sem anular a superioridade hierárquica da Constituição em face das normas infraconstitucionais.

A Constituição e a jurisdição constitucional devem funcionar como uma navalha de Ockham. Os constitucionalistas não têm a resposta para todos os problemas morais, sociais, econômicos, políticos etc.

Com efeito, tão necessário quanto evitar uma subconstitucionalização do Direito é impedir uma hiperconstitucionalização do Direito. Basta a constitucionalização do Direito; basta a ordem-moldura.

Essa constatação vale, notadamente, para a isonomia. Na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP), há elevadores exclusivos para professores. Isso pode ser declarado inconstitucional com base na assim chamada “eficácia horizontal” dos direitos fundamentais? As premissas defendidas por muitos, de maneira irracional, levam a asseverar que sim. Contudo, parece evidente que isso é um contrassenso, pois a Constituição não possui uma teoria completa e infalível da igualdade, que contenha todas as diferenciações imagináveis que sejam “corretas” ou “erradas”. A isonomia inscrita na Constituição é compatível com diversas respostas.

Se a Constituição é vista como ordem-moldura, amplia-se a democracia e diminui-se a suscetibilidade ao panprincipiologismo (sobre o abuso dos princípios e seu caráter autoritário clique aqui para ler artigo escrito nesta coluna por Marcelo Neves).

Há, ainda, três outras cruciais consequências da visão de Constituição como ordem-moldura.

Em primeiro lugar, aceita-se que a Constituição simplesmente não proíbe, nem exige inúmeras coisas (discricionariedade estrutural). Nesses casos, cabe ao legislador exercer seu juízo decisório sobre os fins a perseguir, sobre os meios para fazê-lo, bem como lhe compete definir o equilíbrio adequado entre esses fins e esses meios.

Em segundo lugar, como visto na decisão sobre a criminalização do uso da maconha, respeitam-se os fatos legislativos e os prognósticos que o legislador toma por verdadeiros (discricionariedade epistêmica de tipo empírico). Se se exigisse absoluta certeza quanto às premissas fáticas e empíricas de que parte o legislador, todas as limitações legais a interesses constitucionais seriam inconstitucionais.

Em terceiro lugar, quando não houver muita clareza quanto ao que a Constituição proíbe ou deixa de proibir (discricionariedade epistêmica de tipo normativo), a dúvida favorece o legislador. A incerteza cognitiva quanto aos limites da discricionariedade estrutural privilegia a atividade legislativa. Ou seja, na incerteza de até aonde vão os limites da moldura, a decisão é do parlamento.

Há algumas coisas que a Constituição proíbe e outras que ela exige. Para todas as outras, não há uma resposta pré-fixada. A Constituição é uma moldura. Ter consciência disso é ter humildade constitucional.

João Costa Neto 

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