Há temas que persistem. São duradouros, perenes. Parece não se antever qualquer solução no horizonte, jamais. Um desses temas diz respeito à relação existente entre o Poder Judiciário e o Poder Legislativo, além do Executivo. E, naturalmente, o clímax dessa discussão reside no controle de constitucionalidade.
Tomo por ponto de partida um comentário, que li, ao excelente texto publicado na coluna do Observatório Constitucional, desta ConJur, intitulado Entre a Dignidade e o Fundamentalismo da Jurisdição, de Rodrigo Kaufmann.
O autor do referido artigo, em resumo, critica a visão judicialista predominante na doutrina brasileira e opõe-se à fé com que muitos juristas têm se apegado ao discurso judicial e à razão jurídica, enaltecidos à condição transcendente de legitimação das decisões do Poder Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal.
Um dos comentaristas ao referido texto, por sua vez, discordou da crítica, partindo de um argumento jurídico-dogmático, para defender que “a palavra final da Constituição é do STF”, algo que me chamou, e muito, a atenção.
É que tal compreensão é largamente compartilhada por muitos colegas, que, quase à unanimidade e automaticamente, quando a matéria em questão é interpretação da Constituição, são categóricos em reconhecer a supremacia do Supremo. E sempre às custas de uma demasiada e excessiva ênfase à intepretação (quase que literal) do artigo 102, caput, da Constituição, caso do estimado comentarista.
No entanto, não consigo identificar uma premissa lógico-normativa que valide esse raciocínio silogístico cuja proposição final é compreender o STF como a autoridade de proferir a última palavra sobre a Constituição. Certo, alguns prontamente diriam e insistiriam: “E o artigo 102, caput, da Constituição?”. Respondo desde logo e, a seguir, me justificarei melhor: o citado dispositivo constitucional atribui ao STF precipuamente a “guarda da Constituição”. O advérbio “precipuamente” é crucial, pois condiciona a amplitude da ação que outorga a competência do Supremo, dentre outras, a do controle de constitucionalidade das leis e atos normativos.
Com isso, acho importante discutir um pouco sobre a noção de “guarda da Constituição”, sob dois pontos de vista. O primeiro, concernente à sua dimensão subjetiva, diz respeito à própria legitimidade ou competência de quem pode realizar a guarda da Constituição. O segundo aspecto relaciona-se ao conteúdo da expressão “guarda da Constituição”.
Com algumas considerações sobre o tópico, penso ser possível expor uma visão fundamentada normativamente que, por um lado, rejeite a ideia de que o Supremo Tribunal Federal seja o único ente legitimado ao exercício da jurisdição constitucional ou de interpretar a Constituição em última instância, tendo o monopólio da “última palavra”, em matéria constitucional e, de outro lado, argumentar que os demais poderes (Legislativo e Executivo) são igualmente legitimados a interpretarem a Constituição, o que nos remeterá a uma terceira questão a ser suscitada no final do presente artigo.
A expressão “guarda da Constituição” pressupõe a noção de supremacia constitucional, ou seja, de um dualismo hierárquico normativo entre lei ordinária e Constituição. A supremacia constitucional exige que sejam estruturados mecanismos institucionais para preservar a superioridade jurídica da Constituição contra as ameaças a que está sujeita, sejam elas provenientes dos particulares, sejam elas perpetradas pelo poder público. Qual instituição deve ser investida com esta atribuição de guarda é algo que somente a história política e constitucional de cada país responderá.
O sistema de controle de constitucionalidade, instituído pela Carta de 1988, estabeleceu um riquíssimo e complexo mecanismo de salvaguarda constitucional, que não se confina ao Poder Judiciário. Tanto o Poder Executivo, quanto o Poder Legislativo têm ativa e relevante participação nele.
O Presidente da República, por exemplo, pode exercer diretamente o controle de constitucionalidade através de, pelo menos, dois modos distintos, os quais estão previstos na própria Constituição. O primeiro deles, denominado “veto jurídico”, realiza-se por meio da recusa da sanção aos projetos de lei, conforme previsão do artigo 66, parágrafo 1º, da Constituição, em face de sua contrariedade.
O segundo modo envolve a possibilidade de o chefe do Poder Executivo deixar de cumprir leis por manifesta incompatibilidade com a Constituição, cujo fundamento jurídico reside no disposto no artigo 2º, que estabelece a independência e a harmonia entre si dos três poderes da União, e no artigo 78, que impõe ao Presidente da República o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição.
O próprio Supremo Tribunal Federal, em precedente ainda não superado, proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade 221 MC/DF (relator ministro Moreira Alves, julgada em 29 de março de 1990), admitiu excepcionalmente a competência de os Poderes Executivo e Legislativo, por seus respectivos chefes, recusarem-se a aplicar leis ou atos normativos com força de lei por considerarem-nos inconstitucionais. Difícil, pois, sustentar o argumento de que cabe apenas ao STF interpretar a Constituição.
Já em relação ao Poder Legislativo, um leque ainda mais amplo de alternativas ao exercício do controle de constitucionalidade se abre. Talvez, a mais rotineira de todas as formas seja aquela exercitada através da Comissão de Constituição e Justiça, em cuja competência se inclui a manifestação acerca da constitucionalidade ou não das propostas legislativas, em trâmite no Senado e na Câmara dos Deputados.
No entanto, podemos ainda enumerar a prerrogativa de rejeitar o veto presidencial (artigo 66, parágrafo 4º), a sustação de atos normativos do Poder Executivo (artigo 49, V); o juízo prévio sobre os pressupostos constitucionais para a válida edição de medidas provisórias (artigo 62), a suspensão da execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF (artigo 52, X) e a simples revogação da lei tida por inconstitucional.
Isso nos permite concluir que o Poder Legislativo não só tem a competência para exercer o controle de constitucionalidade, como também é um poder cuja atividade inerente pressupõe a interpretação da Constituição. E, não raro, concentra seus atos no objetivo único de reverter uma interpretação constitucional, realizada pelo STF.
São exemplos, dessa prática, a Emenda Constitucional 29, que autorizou a cobrança do “IPTU progressivo”, a EC 39, que previu a contribuição de iluminação pública, e, mais recentemente, a EC 56, de 2008, que convalidou a criação de municípios, cujas leis tenham sido editadas até 31 de dezembro de 2006, promulgada em resposta às decisões do STF, na ADI 3.682/MT (relator ministro Gilmar Mendes, julgada em 09 de maio de 2007), nas ADIs 2.240/BA, 3.316, 3.489/SC, todas relatadas pelo ministro Eros Grau e julgadas em 9 de maio de 2007, e na ADI 3.689/PA, também relatada pelo ministro Eros Grau e julgada em 10 de maio de 2007. Se sua interpretação é a mais adequada ou não, é uma outra questão a ser examinada, caso a caso.
O certo é que as decisões do STF no exercício do controle de constitucionalidade, que constituem atos de interpretação constitucional, embora vinculantes para todos os demais órgãos do Poder Judiciário e para o Poder Executivo, não o são para o Poder Legislativo.
E isso é expressamente estabelecido na própria Constituição, que, no artigo 102, parágrafo 2º, não incluiu o Poder Legislativo no rol dos destinatários vinculados pela decisão da Suprema Corte. Ademais, ao julgar a Reclamação 2.617 AgR/MG (relator ministro Cezar Peluso, julgada em 23 de fevereiro de 2005), o STF reconheceu que o Legislativo não está adstrito à decisão de inconstitucionalidade, sendo, por conseguinte, livre para editar lei com o mesmo teor daquela por ele declarada inconstitucional.
Nesse contexto de confronto entre as interpretações judicial e legislativa, somos conduzidos à seguinte indagação: quem poderá, então, interpretar por último a Constituição? A quem caberá dizer a “última palavra” em matéria de interpretação da Constituição? Como conciliar a tradição do constitucionalismo com a da democracia?
Para essa pergunta, no entanto, não há uma resposta predefinida. Porém, a própria expressão normativa “guarda da Constituição” traz indícios de uma história constitucional, que pode ajudar-nos nesta breve reflexão. Não para traçar uma linha temporal contínua que revelasse o “verdadeiro” sentido da norma constitucional de hoje. Isso seria inviável, até porque nem todas as Constituições brasileiras previram-na. Mas, ao contrário, apenas para jogar luzes sobre uma outra forma de ler a cláusula da “guarda da Constituição”.
Com efeito, a primeira aparição dessa cláusula em nossa ordem jurídica data da Constituição do Império, de 1824, que, no artigo 15, IX, atribuiu à Assembleia Geral o dever de “velar na guarda da Constituição”. Sobre ela, o saudoso mestre de direito constitucional da Faculdade de Direito do Recife, Otacílio Alecrim, observava que sua origem ligava-se ao constitucionalismo francês, que encontrou na pena de Sieyès o mais talentoso defensor de uma instituição voltada à proteção da Constituição contra as ameaças que se lhe dirigiam. Só que, para Sieyès, esse órgão, por ele denominado Jurie Constitutionnaire, deteria natureza política, sendo estranho à estrutura do Judiciário, já que o pensamento francês pós-revolucionário — por hipótese alguma — aceitaria um sistema no qual os juízes (agentes do Estado) controlassem os atos dos legisladores (representantes do povo).
A Constituição da República do Brasil, de 1891, a primeira a consagrar entre nós o controle judicial de constitucionalidade, promoveu diversas rupturas com a Carta Imperial, mas, nesse ponto específico, manteve parcialmente a disposição, revelando certo continuísmo. No artigo 35, 1º, previu incumbir ao Congresso, “mas não privativamente”, “velar na guarda Constituição”. As demais Constituições (1934, 1937, 1946 e 1967/69), entretanto, não consignaram em seus respectivos textos enunciado similar, que foi resgatado na Constituição de 1988.
Uma conclusão é possível extrair, pois: a “guarda da Constituição” não se vincula necessariamente à ideia de um controle judicial das leis, tampouco ao controle judicial privativo ou exclusivo de uma Corte. Ela é fruto de uma decisão política, que há muitos séculos caracteriza a teoria do poder, que se debate em torno da definição sobre quem deveria possuir a prerrogativa de dar a “última palavra” em matéria de interpretação do direito ou da Constituição: o rei, o imperador, o presidente, o legislador, o juiz?
E, por décadas, a riqueza de nossa história constitucional o revela, essa prerrogativa não esteve com os juízes ou a Suprema Corte. Antes, sempre dependeu de posições e ideologias políticas, que foram se cristalizando nas Constituições.
Como e por que se passou a compartilhar com o STF e os juízes tal prerrogativa é algo que merece um exame à parte, não sendo possível adentrar neste assunto agora. Mas, o fato é que, para o bem ou para o mal, é esse o estágio em que nos encontramos. Destarte, o controle de constitucionalidade é uma prática institucional, que pressupõe a supremacia constitucional, mas não necessariamente uma corte ou tribunal, hierarquicamente superior aos demais órgãos e Poderes, para exercitá-lo. A Constituição, de 1988, afirma-o expressamente, conforme visto, ao criar um riquíssimo sistema de controle e calibrações recíprocas entre os Poderes. Supremacia constitucional não se confunde com supremacia judicial.
E, assim, encaminho-me à finalização do texto, voltando à terceira questão acima aludida: sendo todos os poderes legitimados à intepretação da Constituição e lembrando o silêncio dela nesse ponto específico, a quem pertenceria o direito de proferir a “última palavra” em matéria constitucional?
A meu ver, nenhum dos três poderes seria o dono da prerrogativa de dizer a “última palavra” sobre o que a Constituição verdadeiramente significa (se é que ela poderia ter sentido único, verdadeiro e indiscutível?), ainda que a autocompreensão do STF e a prática judicial brasileira tendam a contrariar esta opinião. A defesa de um STF como “dono”, “senhor” ou “monopolizador” da interpretação constitucional não encontra amparo na Constituição, equivale a defender uma competência privativa da Corte, que é inexistente, e forja uma noção de supremacia judicial que não se ajusta ao nosso sistema constitucional democrático.
Em vez de procurar respostas definitivas à sempre e inevitável relação de tensão entre os Poderes, em meio a uma interminável disputa pela titularidade exclusiva da interpretação constitucional, penso ser mais produtivo entrever-se no exercício da jurisdição constitucional, consoante modernamente se têm acenado, um instrumento de estabelecimento de diálogo institucional, no qual a autoridade de definir o sentido da Constituição reside numa relação dinâmica, circular e reflexiva, não fixando domicílio em nenhum órgão ou instituição.
Por mais insuficiente que possa aparentar, entendo que essa não é uma opinião ingênua e, além do mais, tem o condão de respeitar os limites da concretização da Constituição e compreender sua complexidade inerente, ao levar em consideração que ela funde estruturalmente as relações entre Direito e Política, Judiciário e Legislativo/Executivo.
Destarte, a legitimidade da interpretação constitucional, em “última instância”, resolve-se curiosamente fora do texto da Constituição, resvalando para o contexto político das relações concretamente travadas entre os atores políticos de cada um dos três poderes. Somente diante do caso concreto, das circunstâncias e das especificidades envolvidas, conseguiremos identificar qual é a interpretação constitucional que deve prevalecer na comunidade política.
Não há como sustentar-se aprioristicamente que a interpretação da Constituição pelo STF será sempre a melhor, a mais racional e a mais adequada e a do Legislativo, sempre a pior. Ambas as instituições são representadas por homens, que são falíveis e corruptíveis, conforme reconheceu axiomaticamente Montesquieu: “é uma experiência eterna que todo o homem que tem poder é levado a abusar dele; vai até encontrar limites”.
Portanto, a categórica afirmação de que o Supremo Tribunal Federal é que teria o poder de dar a “última palavra” sobre o que significa a Constituição ou que seria a instituição a quem caberia “zelar na guarda da Constituição”, para mim, não encontra fundamento nem dentro, nem fora, nem antes, nem depois da nossa Constituição de 1988.
Marcelo Casseb Continentino é procurador do estado de Pernambuco, doutorando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB)/Università degli Studi di Firenze.
Tomo por ponto de partida um comentário, que li, ao excelente texto publicado na coluna do Observatório Constitucional, desta ConJur, intitulado Entre a Dignidade e o Fundamentalismo da Jurisdição, de Rodrigo Kaufmann.
O autor do referido artigo, em resumo, critica a visão judicialista predominante na doutrina brasileira e opõe-se à fé com que muitos juristas têm se apegado ao discurso judicial e à razão jurídica, enaltecidos à condição transcendente de legitimação das decisões do Poder Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal.
Um dos comentaristas ao referido texto, por sua vez, discordou da crítica, partindo de um argumento jurídico-dogmático, para defender que “a palavra final da Constituição é do STF”, algo que me chamou, e muito, a atenção.
É que tal compreensão é largamente compartilhada por muitos colegas, que, quase à unanimidade e automaticamente, quando a matéria em questão é interpretação da Constituição, são categóricos em reconhecer a supremacia do Supremo. E sempre às custas de uma demasiada e excessiva ênfase à intepretação (quase que literal) do artigo 102, caput, da Constituição, caso do estimado comentarista.
No entanto, não consigo identificar uma premissa lógico-normativa que valide esse raciocínio silogístico cuja proposição final é compreender o STF como a autoridade de proferir a última palavra sobre a Constituição. Certo, alguns prontamente diriam e insistiriam: “E o artigo 102, caput, da Constituição?”. Respondo desde logo e, a seguir, me justificarei melhor: o citado dispositivo constitucional atribui ao STF precipuamente a “guarda da Constituição”. O advérbio “precipuamente” é crucial, pois condiciona a amplitude da ação que outorga a competência do Supremo, dentre outras, a do controle de constitucionalidade das leis e atos normativos.
Com isso, acho importante discutir um pouco sobre a noção de “guarda da Constituição”, sob dois pontos de vista. O primeiro, concernente à sua dimensão subjetiva, diz respeito à própria legitimidade ou competência de quem pode realizar a guarda da Constituição. O segundo aspecto relaciona-se ao conteúdo da expressão “guarda da Constituição”.
Com algumas considerações sobre o tópico, penso ser possível expor uma visão fundamentada normativamente que, por um lado, rejeite a ideia de que o Supremo Tribunal Federal seja o único ente legitimado ao exercício da jurisdição constitucional ou de interpretar a Constituição em última instância, tendo o monopólio da “última palavra”, em matéria constitucional e, de outro lado, argumentar que os demais poderes (Legislativo e Executivo) são igualmente legitimados a interpretarem a Constituição, o que nos remeterá a uma terceira questão a ser suscitada no final do presente artigo.
A expressão “guarda da Constituição” pressupõe a noção de supremacia constitucional, ou seja, de um dualismo hierárquico normativo entre lei ordinária e Constituição. A supremacia constitucional exige que sejam estruturados mecanismos institucionais para preservar a superioridade jurídica da Constituição contra as ameaças a que está sujeita, sejam elas provenientes dos particulares, sejam elas perpetradas pelo poder público. Qual instituição deve ser investida com esta atribuição de guarda é algo que somente a história política e constitucional de cada país responderá.
O sistema de controle de constitucionalidade, instituído pela Carta de 1988, estabeleceu um riquíssimo e complexo mecanismo de salvaguarda constitucional, que não se confina ao Poder Judiciário. Tanto o Poder Executivo, quanto o Poder Legislativo têm ativa e relevante participação nele.
O Presidente da República, por exemplo, pode exercer diretamente o controle de constitucionalidade através de, pelo menos, dois modos distintos, os quais estão previstos na própria Constituição. O primeiro deles, denominado “veto jurídico”, realiza-se por meio da recusa da sanção aos projetos de lei, conforme previsão do artigo 66, parágrafo 1º, da Constituição, em face de sua contrariedade.
O segundo modo envolve a possibilidade de o chefe do Poder Executivo deixar de cumprir leis por manifesta incompatibilidade com a Constituição, cujo fundamento jurídico reside no disposto no artigo 2º, que estabelece a independência e a harmonia entre si dos três poderes da União, e no artigo 78, que impõe ao Presidente da República o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição.
O próprio Supremo Tribunal Federal, em precedente ainda não superado, proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade 221 MC/DF (relator ministro Moreira Alves, julgada em 29 de março de 1990), admitiu excepcionalmente a competência de os Poderes Executivo e Legislativo, por seus respectivos chefes, recusarem-se a aplicar leis ou atos normativos com força de lei por considerarem-nos inconstitucionais. Difícil, pois, sustentar o argumento de que cabe apenas ao STF interpretar a Constituição.
Já em relação ao Poder Legislativo, um leque ainda mais amplo de alternativas ao exercício do controle de constitucionalidade se abre. Talvez, a mais rotineira de todas as formas seja aquela exercitada através da Comissão de Constituição e Justiça, em cuja competência se inclui a manifestação acerca da constitucionalidade ou não das propostas legislativas, em trâmite no Senado e na Câmara dos Deputados.
No entanto, podemos ainda enumerar a prerrogativa de rejeitar o veto presidencial (artigo 66, parágrafo 4º), a sustação de atos normativos do Poder Executivo (artigo 49, V); o juízo prévio sobre os pressupostos constitucionais para a válida edição de medidas provisórias (artigo 62), a suspensão da execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF (artigo 52, X) e a simples revogação da lei tida por inconstitucional.
Isso nos permite concluir que o Poder Legislativo não só tem a competência para exercer o controle de constitucionalidade, como também é um poder cuja atividade inerente pressupõe a interpretação da Constituição. E, não raro, concentra seus atos no objetivo único de reverter uma interpretação constitucional, realizada pelo STF.
São exemplos, dessa prática, a Emenda Constitucional 29, que autorizou a cobrança do “IPTU progressivo”, a EC 39, que previu a contribuição de iluminação pública, e, mais recentemente, a EC 56, de 2008, que convalidou a criação de municípios, cujas leis tenham sido editadas até 31 de dezembro de 2006, promulgada em resposta às decisões do STF, na ADI 3.682/MT (relator ministro Gilmar Mendes, julgada em 09 de maio de 2007), nas ADIs 2.240/BA, 3.316, 3.489/SC, todas relatadas pelo ministro Eros Grau e julgadas em 9 de maio de 2007, e na ADI 3.689/PA, também relatada pelo ministro Eros Grau e julgada em 10 de maio de 2007. Se sua interpretação é a mais adequada ou não, é uma outra questão a ser examinada, caso a caso.
O certo é que as decisões do STF no exercício do controle de constitucionalidade, que constituem atos de interpretação constitucional, embora vinculantes para todos os demais órgãos do Poder Judiciário e para o Poder Executivo, não o são para o Poder Legislativo.
E isso é expressamente estabelecido na própria Constituição, que, no artigo 102, parágrafo 2º, não incluiu o Poder Legislativo no rol dos destinatários vinculados pela decisão da Suprema Corte. Ademais, ao julgar a Reclamação 2.617 AgR/MG (relator ministro Cezar Peluso, julgada em 23 de fevereiro de 2005), o STF reconheceu que o Legislativo não está adstrito à decisão de inconstitucionalidade, sendo, por conseguinte, livre para editar lei com o mesmo teor daquela por ele declarada inconstitucional.
Nesse contexto de confronto entre as interpretações judicial e legislativa, somos conduzidos à seguinte indagação: quem poderá, então, interpretar por último a Constituição? A quem caberá dizer a “última palavra” em matéria de interpretação da Constituição? Como conciliar a tradição do constitucionalismo com a da democracia?
Para essa pergunta, no entanto, não há uma resposta predefinida. Porém, a própria expressão normativa “guarda da Constituição” traz indícios de uma história constitucional, que pode ajudar-nos nesta breve reflexão. Não para traçar uma linha temporal contínua que revelasse o “verdadeiro” sentido da norma constitucional de hoje. Isso seria inviável, até porque nem todas as Constituições brasileiras previram-na. Mas, ao contrário, apenas para jogar luzes sobre uma outra forma de ler a cláusula da “guarda da Constituição”.
Com efeito, a primeira aparição dessa cláusula em nossa ordem jurídica data da Constituição do Império, de 1824, que, no artigo 15, IX, atribuiu à Assembleia Geral o dever de “velar na guarda da Constituição”. Sobre ela, o saudoso mestre de direito constitucional da Faculdade de Direito do Recife, Otacílio Alecrim, observava que sua origem ligava-se ao constitucionalismo francês, que encontrou na pena de Sieyès o mais talentoso defensor de uma instituição voltada à proteção da Constituição contra as ameaças que se lhe dirigiam. Só que, para Sieyès, esse órgão, por ele denominado Jurie Constitutionnaire, deteria natureza política, sendo estranho à estrutura do Judiciário, já que o pensamento francês pós-revolucionário — por hipótese alguma — aceitaria um sistema no qual os juízes (agentes do Estado) controlassem os atos dos legisladores (representantes do povo).
A Constituição da República do Brasil, de 1891, a primeira a consagrar entre nós o controle judicial de constitucionalidade, promoveu diversas rupturas com a Carta Imperial, mas, nesse ponto específico, manteve parcialmente a disposição, revelando certo continuísmo. No artigo 35, 1º, previu incumbir ao Congresso, “mas não privativamente”, “velar na guarda Constituição”. As demais Constituições (1934, 1937, 1946 e 1967/69), entretanto, não consignaram em seus respectivos textos enunciado similar, que foi resgatado na Constituição de 1988.
Uma conclusão é possível extrair, pois: a “guarda da Constituição” não se vincula necessariamente à ideia de um controle judicial das leis, tampouco ao controle judicial privativo ou exclusivo de uma Corte. Ela é fruto de uma decisão política, que há muitos séculos caracteriza a teoria do poder, que se debate em torno da definição sobre quem deveria possuir a prerrogativa de dar a “última palavra” em matéria de interpretação do direito ou da Constituição: o rei, o imperador, o presidente, o legislador, o juiz?
E, por décadas, a riqueza de nossa história constitucional o revela, essa prerrogativa não esteve com os juízes ou a Suprema Corte. Antes, sempre dependeu de posições e ideologias políticas, que foram se cristalizando nas Constituições.
Como e por que se passou a compartilhar com o STF e os juízes tal prerrogativa é algo que merece um exame à parte, não sendo possível adentrar neste assunto agora. Mas, o fato é que, para o bem ou para o mal, é esse o estágio em que nos encontramos. Destarte, o controle de constitucionalidade é uma prática institucional, que pressupõe a supremacia constitucional, mas não necessariamente uma corte ou tribunal, hierarquicamente superior aos demais órgãos e Poderes, para exercitá-lo. A Constituição, de 1988, afirma-o expressamente, conforme visto, ao criar um riquíssimo sistema de controle e calibrações recíprocas entre os Poderes. Supremacia constitucional não se confunde com supremacia judicial.
E, assim, encaminho-me à finalização do texto, voltando à terceira questão acima aludida: sendo todos os poderes legitimados à intepretação da Constituição e lembrando o silêncio dela nesse ponto específico, a quem pertenceria o direito de proferir a “última palavra” em matéria constitucional?
A meu ver, nenhum dos três poderes seria o dono da prerrogativa de dizer a “última palavra” sobre o que a Constituição verdadeiramente significa (se é que ela poderia ter sentido único, verdadeiro e indiscutível?), ainda que a autocompreensão do STF e a prática judicial brasileira tendam a contrariar esta opinião. A defesa de um STF como “dono”, “senhor” ou “monopolizador” da interpretação constitucional não encontra amparo na Constituição, equivale a defender uma competência privativa da Corte, que é inexistente, e forja uma noção de supremacia judicial que não se ajusta ao nosso sistema constitucional democrático.
Em vez de procurar respostas definitivas à sempre e inevitável relação de tensão entre os Poderes, em meio a uma interminável disputa pela titularidade exclusiva da interpretação constitucional, penso ser mais produtivo entrever-se no exercício da jurisdição constitucional, consoante modernamente se têm acenado, um instrumento de estabelecimento de diálogo institucional, no qual a autoridade de definir o sentido da Constituição reside numa relação dinâmica, circular e reflexiva, não fixando domicílio em nenhum órgão ou instituição.
Por mais insuficiente que possa aparentar, entendo que essa não é uma opinião ingênua e, além do mais, tem o condão de respeitar os limites da concretização da Constituição e compreender sua complexidade inerente, ao levar em consideração que ela funde estruturalmente as relações entre Direito e Política, Judiciário e Legislativo/Executivo.
Destarte, a legitimidade da interpretação constitucional, em “última instância”, resolve-se curiosamente fora do texto da Constituição, resvalando para o contexto político das relações concretamente travadas entre os atores políticos de cada um dos três poderes. Somente diante do caso concreto, das circunstâncias e das especificidades envolvidas, conseguiremos identificar qual é a interpretação constitucional que deve prevalecer na comunidade política.
Não há como sustentar-se aprioristicamente que a interpretação da Constituição pelo STF será sempre a melhor, a mais racional e a mais adequada e a do Legislativo, sempre a pior. Ambas as instituições são representadas por homens, que são falíveis e corruptíveis, conforme reconheceu axiomaticamente Montesquieu: “é uma experiência eterna que todo o homem que tem poder é levado a abusar dele; vai até encontrar limites”.
Portanto, a categórica afirmação de que o Supremo Tribunal Federal é que teria o poder de dar a “última palavra” sobre o que significa a Constituição ou que seria a instituição a quem caberia “zelar na guarda da Constituição”, para mim, não encontra fundamento nem dentro, nem fora, nem antes, nem depois da nossa Constituição de 1988.
Marcelo Casseb Continentino é procurador do estado de Pernambuco, doutorando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB)/Università degli Studi di Firenze.
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