Em um artigo sobre inefetividade da lei na América Latina, de autoria do saudoso cientista político argentino Guillermo O’Donnell, encontra-se o seguinte trecho: “Quando um empresário de reputação duvidosa disse recentemente na Argentina que ‘ser poderoso é ter impunidade’, ele expressou um sentimento presumivelmente disseminado de que, em primeiro lugar, cumprir voluntariamente a lei é algo que só idiotas fazem e, em segundo, estar sujeito à lei não é ser portador de direitos efetivos, mas, sim, um sinal seguro de fraqueza social”.
Tal afirmação, com certeza, seria perfeitamente compreensível se fosse feita em relação ao contexto brasileiro. E não surpreenderia se fosse estendida a agentes públicos.
Do outro lado do Atlântico, em obra de um sociólogo nitidamente antimoralista, o alemão Niklas Luhmann, destaca-se a seguinte passagem: “agora, sabotagens de código tornam-se o problema moral — tal como a corrupção na política e no Direito ou o doping no esporte ou a compra de amor ou a fraude de dados na pesquisa empírica.” Mas, para ele, essa questão “moral” diria respeito a patologias. Embora tal restrição possa ser plausível lá, aqui na América Latina, especialmente no Brasil, pode-se falar, ironicamente, de “patologia da normalidade”.
Não se trata, no caso brasileiro, de uma corrupção eventual, momentânea, aqui e acolá, com sobrecarga de risco para quem a pratica. Trata-se de uma corrupção no plano estrutural da estabilização das expectativas, denominada de corrupção sistêmica: a sobrecarga recai sobre os que pretendem combatê-la.
A corrupção sistêmica não deve ser compreendida em termos penais, nem simplesmente no campo da conduta individual. Ela decorre de uma sobreposição destrutiva de critérios de uma esfera de ação sobre outras.
No campo do Direito, isso envolve não só a compra de sentença ou a troca de benefícios econômicos por um julgamento, mas também a decisão judicial definida primariamente por determinação do poder político conforme a diferença entre governo e oposição, das boas relações, da troca de favores, da parentela, da amizade etc.
E a corrupção sistêmica não tem conceitualmente a ver com a quantidade dos que, direta ou indiretamente, nela atuam e dela se beneficiam. Pode ser um número pequeno. A questão é que, por força de um conjunto de acomodações sociais, para combatê-la corre-se risco, exigindo-se, às vezes, sacrifícios e uma certa postura “heróica”.
Os poderes públicos no Brasil, em grande parte, atuam à margem da lei e da Constituição. Nessa medida, eles estão envolvidos na corrupção sistêmica. O Judiciário não é exceção.
No sentido contrário à corrupção sistêmica, a atuação do Conselho Nacional de Justiça, nos mandatos dos corregedores-nacionais de Justiça Gilson Dipp e Eliana Calmon, causou certa esperança eufórica de amplos setores da sociedade. Contra isso, surgiu um movimento corporativista, que procurou envolver o Supremo Tribunal Federal em sua trama.
Embora seja criticável, essa atitude corporativa é compreensível. O que beira o absurdo é a reação favorável em algumas decisões de magistrados do próprio Supremo.
É surpreendente, como já chamei atenção nesta coluna em outra oportunidade, que um ministro do Supremo Tribunal Federal tenha concedido liminar afirmando que houve quebra do sigilo bancário no ato em que a Corregedoria Nacional de Justiça solicitou, para facilitar a estratégia investigatória, informações genéricas ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) sobre movimentações financeiras atípicas no universo de cerca de “216.000 servidores e magistrados”, sem identificação de nome.
A legislação é clara no sentido de que a quebra do sigilo bancário envolve a “identificação dos titulares das operações”. Trata-se de um tipo penal, que não pode ser ampliado arbitrariamente. E extinguir o Coaf, como foi insinuado por outro Ministro, seria desviar-se de acordos internacionais em que o Brasil se comprometeu a lutar contra a lavagem de dinheiro e a criminalidade financeira em geral.
Também é surpreendente a concessão de uma liminar com base no argumento da função disciplinar subsidiária do Conselho Nacional de Justiça em face das corregedorias dos tribunais, para favorecer a demanda de dez magistrados aposentados compulsoriamente, por força de decisão unânime do Conselho Nacional de Justiça. Isso porque, no caso, foi a própria corregedoria local que solicitou a intervenção do CNJ, demonstrando incapacidade de atuar diante de poderosos. Portanto, não caberia falar de quebra da subsidiariedade, mesmo se esta fosse aplicável.
A concessão de liminares desse tipo, o que se tornou uma prática habitual de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, constitui realmente postura irresponsável em desrespeito à atuação investigatória e disciplinar do Conselho Nacional de Justiça.
A decisão histórica do Supremo Tribunal de Federal, no julgamento da ADI 4.638/DF, em 2 de fevereiro de 2012, embora tomada por maioria apertada, constitui um marco fundamental para a efetivação do Estado de Direito no Brasil. Foi um acerto Supremo. O STF decidiu acertadamente em sentido contrário à corrupção sistêmica no país, ao julgar favoravelmente à competência originária do Conselho Nacional de Justiça em matéria disciplinar.
Com base nessa decisão, a excelente corregedora, a corajosa e ilibada Eliana, junto com os seus bravos auxiliares, pôde continuar a exercer constitucionalmente sua relevante função investigatória e disciplinar.
Persiste, porém, o problema: no campo do combate à corrupção judicial, ainda permanecemos muito dependentes do “heroísmo” ou mesmo dos “excessos” de pessoas concretas, não tendo ocorrido a consolidação institucional — inclusive no âmbito do CNJ, ao contrário do que pensei em certa altura — de procedimentos e métodos investigatórios e punitivos que não ponham em risco ou não sobrecarreguem pessoalmente (ou, por outro lado, não tornem estrelas) os agentes públicos que atuem com firmeza contra a corrupção no Judiciário.
Marcelo Neves é professor titular de Direito Público da Universidade de Brasília
Tal afirmação, com certeza, seria perfeitamente compreensível se fosse feita em relação ao contexto brasileiro. E não surpreenderia se fosse estendida a agentes públicos.
Do outro lado do Atlântico, em obra de um sociólogo nitidamente antimoralista, o alemão Niklas Luhmann, destaca-se a seguinte passagem: “agora, sabotagens de código tornam-se o problema moral — tal como a corrupção na política e no Direito ou o doping no esporte ou a compra de amor ou a fraude de dados na pesquisa empírica.” Mas, para ele, essa questão “moral” diria respeito a patologias. Embora tal restrição possa ser plausível lá, aqui na América Latina, especialmente no Brasil, pode-se falar, ironicamente, de “patologia da normalidade”.
Não se trata, no caso brasileiro, de uma corrupção eventual, momentânea, aqui e acolá, com sobrecarga de risco para quem a pratica. Trata-se de uma corrupção no plano estrutural da estabilização das expectativas, denominada de corrupção sistêmica: a sobrecarga recai sobre os que pretendem combatê-la.
A corrupção sistêmica não deve ser compreendida em termos penais, nem simplesmente no campo da conduta individual. Ela decorre de uma sobreposição destrutiva de critérios de uma esfera de ação sobre outras.
No campo do Direito, isso envolve não só a compra de sentença ou a troca de benefícios econômicos por um julgamento, mas também a decisão judicial definida primariamente por determinação do poder político conforme a diferença entre governo e oposição, das boas relações, da troca de favores, da parentela, da amizade etc.
E a corrupção sistêmica não tem conceitualmente a ver com a quantidade dos que, direta ou indiretamente, nela atuam e dela se beneficiam. Pode ser um número pequeno. A questão é que, por força de um conjunto de acomodações sociais, para combatê-la corre-se risco, exigindo-se, às vezes, sacrifícios e uma certa postura “heróica”.
Os poderes públicos no Brasil, em grande parte, atuam à margem da lei e da Constituição. Nessa medida, eles estão envolvidos na corrupção sistêmica. O Judiciário não é exceção.
No sentido contrário à corrupção sistêmica, a atuação do Conselho Nacional de Justiça, nos mandatos dos corregedores-nacionais de Justiça Gilson Dipp e Eliana Calmon, causou certa esperança eufórica de amplos setores da sociedade. Contra isso, surgiu um movimento corporativista, que procurou envolver o Supremo Tribunal Federal em sua trama.
Embora seja criticável, essa atitude corporativa é compreensível. O que beira o absurdo é a reação favorável em algumas decisões de magistrados do próprio Supremo.
É surpreendente, como já chamei atenção nesta coluna em outra oportunidade, que um ministro do Supremo Tribunal Federal tenha concedido liminar afirmando que houve quebra do sigilo bancário no ato em que a Corregedoria Nacional de Justiça solicitou, para facilitar a estratégia investigatória, informações genéricas ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) sobre movimentações financeiras atípicas no universo de cerca de “216.000 servidores e magistrados”, sem identificação de nome.
A legislação é clara no sentido de que a quebra do sigilo bancário envolve a “identificação dos titulares das operações”. Trata-se de um tipo penal, que não pode ser ampliado arbitrariamente. E extinguir o Coaf, como foi insinuado por outro Ministro, seria desviar-se de acordos internacionais em que o Brasil se comprometeu a lutar contra a lavagem de dinheiro e a criminalidade financeira em geral.
Também é surpreendente a concessão de uma liminar com base no argumento da função disciplinar subsidiária do Conselho Nacional de Justiça em face das corregedorias dos tribunais, para favorecer a demanda de dez magistrados aposentados compulsoriamente, por força de decisão unânime do Conselho Nacional de Justiça. Isso porque, no caso, foi a própria corregedoria local que solicitou a intervenção do CNJ, demonstrando incapacidade de atuar diante de poderosos. Portanto, não caberia falar de quebra da subsidiariedade, mesmo se esta fosse aplicável.
A concessão de liminares desse tipo, o que se tornou uma prática habitual de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, constitui realmente postura irresponsável em desrespeito à atuação investigatória e disciplinar do Conselho Nacional de Justiça.
A decisão histórica do Supremo Tribunal de Federal, no julgamento da ADI 4.638/DF, em 2 de fevereiro de 2012, embora tomada por maioria apertada, constitui um marco fundamental para a efetivação do Estado de Direito no Brasil. Foi um acerto Supremo. O STF decidiu acertadamente em sentido contrário à corrupção sistêmica no país, ao julgar favoravelmente à competência originária do Conselho Nacional de Justiça em matéria disciplinar.
Com base nessa decisão, a excelente corregedora, a corajosa e ilibada Eliana, junto com os seus bravos auxiliares, pôde continuar a exercer constitucionalmente sua relevante função investigatória e disciplinar.
Persiste, porém, o problema: no campo do combate à corrupção judicial, ainda permanecemos muito dependentes do “heroísmo” ou mesmo dos “excessos” de pessoas concretas, não tendo ocorrido a consolidação institucional — inclusive no âmbito do CNJ, ao contrário do que pensei em certa altura — de procedimentos e métodos investigatórios e punitivos que não ponham em risco ou não sobrecarreguem pessoalmente (ou, por outro lado, não tornem estrelas) os agentes públicos que atuem com firmeza contra a corrupção no Judiciário.
Marcelo Neves é professor titular de Direito Público da Universidade de Brasília
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