Nos últimos meses, várias novas decisões do Supremo Tribunal Federal aumentaram o tácito acirramento existente com o Congresso Nacional.
Em 7 de março de 2012, o Plenário do STF, por exemplo, por 7 votos a 2, havia declarado a nulidade formal da Lei nº 11.516/07 que criava o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) por julgar inconstitucional o artigo 6º da Resolução nº 1/2002 do Congresso Nacional (ADI nº 4.029, relator ministro Luiz Fux). No dia seguinte, com o anúncio de que sua decisão importaria no risco de nulidade de 560 Medidas Provisórias que haviam sido aprovadas pelo mesmo rito julgado agora inconstitucional, o STF foi obrigado a acatar a questão de ordem do advogado-geral da União e modular os efeitos de sua decisão, validando, as medidas provisórias até então aprovadas.
Em 17de dezembro de 2012, o ministro Luiz Fux deferiu a liminar no Mandado de Segurança nº 31.816 e determinou que a mesa diretora do Congresso Nacional se abstivesse de examinar os vetos da Presidência ao Projeto de Lei 2.565/2011 (acerca das regras de partilha de royalties pela exploração de petróleo).
A decisão estabeleceu que os vetos acumulados deveriam ser analisados em ordem cronológica, antes do exame daqueles objeto do mandado de segurança. Mais uma vez, criou-se dificuldade prática com a perspectiva de o Congresso ter que analisar mais de 3 mil vetos acumulados desde 2001, pendentes de apreciação. Em 27 de fevereiro de 2013, o plenário do Tribunal cassou a liminar, atribuindo à decisão de apreciação cronológica dos vetos efeito ex nunc.
Os casos, longe de servirem como típico exemplo de aplicação do artigo 27 da Lei nº 9.868/99, permitem, em realidade, ponderação acerca dos potenciais equívocos na construção da relação entre STF e Congresso. Não há dúvida de que, em ambos os casos há a presença de “razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social” para fins de modulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade.
Entretanto, porque houve a necessidade de se criar a celeuma política e institucional para que o STF identificasse, com clareza, as dificuldades por trás dos casos? Será que há algum tipo de bloqueio na comunicação entre esferas políticas? Será que onde deveria haver diálogo e abertura, há, em realidade, distância e fechamento?
Não é a primeira vez que o STF é obrigado a se curvar às contingências práticas de decisão passada ou a rever os pressupostos de sua decisão. Caso notório ocorreu no julgamento do Conflito de Competência 7.204 (relator ministro Ayres Britto, DJ 9/12/2005), quando o Tribunal alterou entendimento fixado três meses antes quando apreciou o Recurso Extraordinário nº 438.639 (relator para o acórdão ministro Cezar Peluso, DJ 5/3/2009) acerca da competência para julgar ação de indenização por dano moral quando o fato pudesse ser classificado como acidente do trabalho.
Também não é a primeira vez que há divergências de opinião acerca da regularidade constitucional de práticas do processo legislativo ou da atuação interna do Congresso. Não é rara a declaração de inconstitucionalidade de leis e mesmo de emendas constitucionais com base no aspecto formal.
Apenas para exemplificar, citem-se os emblemáticos julgamentos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.135 (relatora para o acórdão ministra Ellen Gracie, DJ 7/3/2008) e dos Mandados de Segurança 26.441 e 24.849 (relator ministro Celso de Mello, DJs 18/12/2009 e 29/9/2006).
Por fim, não é novidade que, em determinados casos, haja real e legítima discordância de opiniões políticas (ou interpretativas) entre STF e Congresso acerca de determinadas questões, tal como colocado, por exemplo, na atual discussão sobre a interpretação do artigo 55, parágrafo 2º, da Constituição Federal, no que se refere aos mandados dos condenados na Ação Penal 470 (relator ministro Joaquim Barbosa, acórdão pendente de publicação).
Outros exemplos podem ser lembrados, como ocorreu entre o Recurso Extraordinário 153.771 (relator ministro Moreira Alves, DJ 5/9/1997) e a Emenda Constitucional 29/2000 (progressividade do IPTU com eficácia extrafiscal); entre as APs 313, 315 e 319 (relator ministro Moreira Alves, DJ 9/11/2001) e ADI nº 2.797 (relator Ministro Sepúlveda Pertence, DJ 19.12.2006) e a Lei 10.628/2002 (competência especial por prerrogativa após o término do exercício da função pública); e as ADIns 2.626 e 2.628 (relatora para o acórdão ministra Ellen Gracie, DJ 5/3/2004) e ADI 3.685 (relatora Ministra Ellen Gracie, DJ 26/9/2008) e a EC 52/2006 (verticalização nas eleições). Esses são também casos delicados, mas que podem e devem ser resolvidos dentro dos caminhos político-jurídicos previstos no ordenamento constitucional.
Os dois casos inicialmente citados, entretanto, na linha de outros vários, parecem sugerir distanciamento entre o julgador e o julgado, típico do desenho clássico da posição “neutra” e “imparcial” do juiz na relação triangular com as partes no processo jurisdicional. Essa compreensão do fenômeno parece indicar a equivocada noção de que, em temas polêmicos, de discussões políticas, de pleno exercício democrático das funções legiferantes do Congresso, o STF ainda aplica o velho esquema da “lógica jurisdicional”, da figura do onipresente “Estado-juiz”, como se o Congresso fosse também seu jurisdicionado.
O resultado disso é esse asséptico e ilusório distanciamento que apenas prejudica o exercício de sua real função nesse tipo de temática: seu papel de mediador, seja do ponto de vista político-institucional, seja do ponto de vista lingüístico-discursivo.
Essa talvez seja o grande desafio dos próximos anos para a teoria constitucional no Brasil: reinventar-se por meio de novas análises, novos diagnósticos, novas críticas e novas propostas que sirvam para o fortalecimento da democracia e para o rearranjo institucional que aproxime poderes da República.
No período pós-Constituição de 1988 praticamos um discurso constitucional de ênfase na figura do Poder Judiciário. Não há dúvida que esse foi um bom caminho e a maior prova disso é que amadurecemos como República Federativa, evoluímos na defesa e reconhecimento de direitos e impedimos a continuidade de nossa dramática herança de golpes e rupturas constitucionais.
A Constituição de 1988 é hoje uma grata realidade protegida por um exército de constitucionalistas profissionais ou amadores que, a todo tempo, reafirmam a necessidade de sua plena vigência e a obrigação cívica de sua observância. O Poder Judiciário se tornou nesse modelo, a sedes materiae de defesa desses princípios.
Entretanto, a teoria constitucional é – e sempre deverá ser – um projeto inacabado, um espaço para o livre exercício das análises e hipóteses de nosso empreendimento constitucional, laboratório de nossas investigações acerca das possibilidades para o experimentalismo constitucional e institucional.
Já defendo há algum tempo o exaurimento desse modelo discursivo de primazia do Judiciário em tempos de democracia razoavelmente amadurecida. Além dos graves problemas que esse desenho gera na relação serena que deve haver entre Poderes ou Instituições, tem-se ainda que conviver com o seu recrudescimento. Refiro-me ao movimento prestigiado da filosofia constitucional chamado de neoconstitucionalismo. Nas palavras de um dos seus mais nobres representantes, o Professor Prieto Sanchís, “mais princípios do que regras, mais ponderação do que subsunção, onipresença da Constituição em todas as áreas jurídicas e em todos os conflitos minimamente relevantes, em lugar de espaços isentos em favor da opção legislativa ou regulamentar; onipotência judicial em lugar da autonomia do legislador ordinário; e, por último, coexistência de uma constelação plural de valores.”
Com o prestígio desse movimento doutrinário, ampliou-se também, em todas as esferas jurídicas e jurisdicionais, esse certo preconceito, essa hesitação, essa ressalva com o trabalho legislativo que está impregnado no discurso neoconstitucionalista. O STF, como o principal fórum das questões constitucionais, também sofreu os influxos dessa corrente.
O que se discute, entretanto, é o efeito da lógica da “onipotência judicial” em matérias politicamente delicadas que envolvem a relação entre poderes. A primazia do Judiciário não é assegurada sem o desprestígio do Legislativo e das Casas e pensar dessa forma reafirma o modelo equivocado de que o Congresso é jurisdicionado do STF e que, portanto, o julgamento de tais questões envolve algum tipo de “revelação” interpretativa da Constituição que somente os ministros do STF teriam condições de alcançar.
Em realidade, STF e Congresso estão muito próximos na forma como analisam problemas e questões dessa envergadura, especialmente nessa esfera de ascendência política.
Uma maneira bastante honesta de analisar o trabalho do Congresso e do STF, evitando distorções casuísticas e parciais, é tomar por base o modelo de exame de campos do conhecimento utilizado por Robin George Collingwood, o célebre filósofo e historiador inglês de Oxford. Collingwood examinava filosoficamente áreas do conhecimento identificando-as como uma estrutura de perguntas e respostas.
Nessas estruturas, sempre seria possível, dar-se primazia à coluna de perguntas (questões ou dúvidas científicas) ou das respostas (hipóteses ou prováveis soluções), e essa abordagem filosófica definiria as características desse ramo do conhecimento.
Assim, por exemplo, se a ênfase é dada às perguntas, nunca as respostas serão suficientes e sempre serão colocadas em cheque. As respostas seriam proposições vulneráveis e instáveis e apenas conseguiriam levantar novas questões. Já se a importância é dada à coluna das respostas, teríamos o efeito oposto, uma vez que a prioridade passaria a ser a solução, a unidade do sistema, a completude de lacunas e as perguntas, a partir de certo limite, passariam a ser vistas como ameaças a esse sistema, como pontos de instabilidade.
O primeiro modelo teria cunho investigativo, questionador, englobante, dando primazia ao crescimento científico, ao olhar sob todos os ângulos, ao amadurecimento intelectual. O segundo modelo seria essencialmente hermético, fechado, pouco crítico, mas estável, sólido e seguro.
Essa forma para compreender melhor os ramos científicos se tornou tão importante que foi utilizada por Theodor Viehweg em sua reconstrução da tópica como estilo de pensamento adequado ao Direito e que, mais tarde, viria a se tornar método de interpretação constitucional aplaudido por constitucionalistas e juristas.
É dessa lógica original que Viehweg faz a diferenciação entre “zetética” (do grego zetein: perquirir, investigar) e “dogmática” (do grego dokein: ensinar, doutrinar), pontuando que a passagem de um para outro se daria apenas com a mudança de postura do cientista ou jurista em relação ao objeto de estudo. Essa é a idéia chave para o uso da tópica no Direito: a tópica como estilo de pensamento problemático, caótico, aberto passaria a ser instrumento fundamental para o enriquecimento da decisão judicial, cuja natureza é “dogmática”, fechada, de primazia da segurança, de formação de opinião.
Chego ao ponto que me parece fundamental na avaliação da relação entre Congresso e STF: o STF (das respostas) como Estado-juiz de questões constitucionais está em posição dogmática, de prestígio da “lógica jurisdicional”, da idéia de solução de conflito e de estabilidade e segurança do sistema. O Congresso (das perguntas), como órgão central do exercício da democracia, está na posição “zetética”, com prioridade à problematização, ao olhar multifacetado, à riqueza do debate e à inclusão das várias opiniões divergentes.
Para cada caso difícil analisado ou que remeta necessariamente à complexidade das discussões democráticas no Congresso, o STF, assumindo sua função mediadora (e não inquisitorial), precisa se abrir com boa vontade às múltiplas facetas e aspectos do debate político, entendendo que o modelo zetético (ou das perguntas) de tratamento de um tema é também, em regra, o mais democrático.
Há razões políticas que precisam ser consideradas pelo STF quando julga temas com essa conformação ou quando atinge práticas legislativas já consolidadas (como, por exemplo, o procedimento de aprovação das medidas provisórias e a votação dos vetos no Congresso). Isso não quer dizer que tais razões políticas se sustentem ou que tais práticas não possam ser declaradas inconstitucionais. Porém, compreendê-las em um espaço “não-jurisdicional” é um caminho institucionalmente maduro que, a um só tempo, permitiria ao STF antever situações práticas difíceis de serem contornadas e realizar função mediadora-decisória mais útil e funcional para o país.
Rodrigo de Oliveira Kaufmann
Em 7 de março de 2012, o Plenário do STF, por exemplo, por 7 votos a 2, havia declarado a nulidade formal da Lei nº 11.516/07 que criava o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) por julgar inconstitucional o artigo 6º da Resolução nº 1/2002 do Congresso Nacional (ADI nº 4.029, relator ministro Luiz Fux). No dia seguinte, com o anúncio de que sua decisão importaria no risco de nulidade de 560 Medidas Provisórias que haviam sido aprovadas pelo mesmo rito julgado agora inconstitucional, o STF foi obrigado a acatar a questão de ordem do advogado-geral da União e modular os efeitos de sua decisão, validando, as medidas provisórias até então aprovadas.
Em 17de dezembro de 2012, o ministro Luiz Fux deferiu a liminar no Mandado de Segurança nº 31.816 e determinou que a mesa diretora do Congresso Nacional se abstivesse de examinar os vetos da Presidência ao Projeto de Lei 2.565/2011 (acerca das regras de partilha de royalties pela exploração de petróleo).
A decisão estabeleceu que os vetos acumulados deveriam ser analisados em ordem cronológica, antes do exame daqueles objeto do mandado de segurança. Mais uma vez, criou-se dificuldade prática com a perspectiva de o Congresso ter que analisar mais de 3 mil vetos acumulados desde 2001, pendentes de apreciação. Em 27 de fevereiro de 2013, o plenário do Tribunal cassou a liminar, atribuindo à decisão de apreciação cronológica dos vetos efeito ex nunc.
Os casos, longe de servirem como típico exemplo de aplicação do artigo 27 da Lei nº 9.868/99, permitem, em realidade, ponderação acerca dos potenciais equívocos na construção da relação entre STF e Congresso. Não há dúvida de que, em ambos os casos há a presença de “razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social” para fins de modulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade.
Entretanto, porque houve a necessidade de se criar a celeuma política e institucional para que o STF identificasse, com clareza, as dificuldades por trás dos casos? Será que há algum tipo de bloqueio na comunicação entre esferas políticas? Será que onde deveria haver diálogo e abertura, há, em realidade, distância e fechamento?
Não é a primeira vez que o STF é obrigado a se curvar às contingências práticas de decisão passada ou a rever os pressupostos de sua decisão. Caso notório ocorreu no julgamento do Conflito de Competência 7.204 (relator ministro Ayres Britto, DJ 9/12/2005), quando o Tribunal alterou entendimento fixado três meses antes quando apreciou o Recurso Extraordinário nº 438.639 (relator para o acórdão ministro Cezar Peluso, DJ 5/3/2009) acerca da competência para julgar ação de indenização por dano moral quando o fato pudesse ser classificado como acidente do trabalho.
Também não é a primeira vez que há divergências de opinião acerca da regularidade constitucional de práticas do processo legislativo ou da atuação interna do Congresso. Não é rara a declaração de inconstitucionalidade de leis e mesmo de emendas constitucionais com base no aspecto formal.
Apenas para exemplificar, citem-se os emblemáticos julgamentos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.135 (relatora para o acórdão ministra Ellen Gracie, DJ 7/3/2008) e dos Mandados de Segurança 26.441 e 24.849 (relator ministro Celso de Mello, DJs 18/12/2009 e 29/9/2006).
Por fim, não é novidade que, em determinados casos, haja real e legítima discordância de opiniões políticas (ou interpretativas) entre STF e Congresso acerca de determinadas questões, tal como colocado, por exemplo, na atual discussão sobre a interpretação do artigo 55, parágrafo 2º, da Constituição Federal, no que se refere aos mandados dos condenados na Ação Penal 470 (relator ministro Joaquim Barbosa, acórdão pendente de publicação).
Outros exemplos podem ser lembrados, como ocorreu entre o Recurso Extraordinário 153.771 (relator ministro Moreira Alves, DJ 5/9/1997) e a Emenda Constitucional 29/2000 (progressividade do IPTU com eficácia extrafiscal); entre as APs 313, 315 e 319 (relator ministro Moreira Alves, DJ 9/11/2001) e ADI nº 2.797 (relator Ministro Sepúlveda Pertence, DJ 19.12.2006) e a Lei 10.628/2002 (competência especial por prerrogativa após o término do exercício da função pública); e as ADIns 2.626 e 2.628 (relatora para o acórdão ministra Ellen Gracie, DJ 5/3/2004) e ADI 3.685 (relatora Ministra Ellen Gracie, DJ 26/9/2008) e a EC 52/2006 (verticalização nas eleições). Esses são também casos delicados, mas que podem e devem ser resolvidos dentro dos caminhos político-jurídicos previstos no ordenamento constitucional.
Os dois casos inicialmente citados, entretanto, na linha de outros vários, parecem sugerir distanciamento entre o julgador e o julgado, típico do desenho clássico da posição “neutra” e “imparcial” do juiz na relação triangular com as partes no processo jurisdicional. Essa compreensão do fenômeno parece indicar a equivocada noção de que, em temas polêmicos, de discussões políticas, de pleno exercício democrático das funções legiferantes do Congresso, o STF ainda aplica o velho esquema da “lógica jurisdicional”, da figura do onipresente “Estado-juiz”, como se o Congresso fosse também seu jurisdicionado.
O resultado disso é esse asséptico e ilusório distanciamento que apenas prejudica o exercício de sua real função nesse tipo de temática: seu papel de mediador, seja do ponto de vista político-institucional, seja do ponto de vista lingüístico-discursivo.
Essa talvez seja o grande desafio dos próximos anos para a teoria constitucional no Brasil: reinventar-se por meio de novas análises, novos diagnósticos, novas críticas e novas propostas que sirvam para o fortalecimento da democracia e para o rearranjo institucional que aproxime poderes da República.
No período pós-Constituição de 1988 praticamos um discurso constitucional de ênfase na figura do Poder Judiciário. Não há dúvida que esse foi um bom caminho e a maior prova disso é que amadurecemos como República Federativa, evoluímos na defesa e reconhecimento de direitos e impedimos a continuidade de nossa dramática herança de golpes e rupturas constitucionais.
A Constituição de 1988 é hoje uma grata realidade protegida por um exército de constitucionalistas profissionais ou amadores que, a todo tempo, reafirmam a necessidade de sua plena vigência e a obrigação cívica de sua observância. O Poder Judiciário se tornou nesse modelo, a sedes materiae de defesa desses princípios.
Entretanto, a teoria constitucional é – e sempre deverá ser – um projeto inacabado, um espaço para o livre exercício das análises e hipóteses de nosso empreendimento constitucional, laboratório de nossas investigações acerca das possibilidades para o experimentalismo constitucional e institucional.
Já defendo há algum tempo o exaurimento desse modelo discursivo de primazia do Judiciário em tempos de democracia razoavelmente amadurecida. Além dos graves problemas que esse desenho gera na relação serena que deve haver entre Poderes ou Instituições, tem-se ainda que conviver com o seu recrudescimento. Refiro-me ao movimento prestigiado da filosofia constitucional chamado de neoconstitucionalismo. Nas palavras de um dos seus mais nobres representantes, o Professor Prieto Sanchís, “mais princípios do que regras, mais ponderação do que subsunção, onipresença da Constituição em todas as áreas jurídicas e em todos os conflitos minimamente relevantes, em lugar de espaços isentos em favor da opção legislativa ou regulamentar; onipotência judicial em lugar da autonomia do legislador ordinário; e, por último, coexistência de uma constelação plural de valores.”
Com o prestígio desse movimento doutrinário, ampliou-se também, em todas as esferas jurídicas e jurisdicionais, esse certo preconceito, essa hesitação, essa ressalva com o trabalho legislativo que está impregnado no discurso neoconstitucionalista. O STF, como o principal fórum das questões constitucionais, também sofreu os influxos dessa corrente.
O que se discute, entretanto, é o efeito da lógica da “onipotência judicial” em matérias politicamente delicadas que envolvem a relação entre poderes. A primazia do Judiciário não é assegurada sem o desprestígio do Legislativo e das Casas e pensar dessa forma reafirma o modelo equivocado de que o Congresso é jurisdicionado do STF e que, portanto, o julgamento de tais questões envolve algum tipo de “revelação” interpretativa da Constituição que somente os ministros do STF teriam condições de alcançar.
Em realidade, STF e Congresso estão muito próximos na forma como analisam problemas e questões dessa envergadura, especialmente nessa esfera de ascendência política.
Uma maneira bastante honesta de analisar o trabalho do Congresso e do STF, evitando distorções casuísticas e parciais, é tomar por base o modelo de exame de campos do conhecimento utilizado por Robin George Collingwood, o célebre filósofo e historiador inglês de Oxford. Collingwood examinava filosoficamente áreas do conhecimento identificando-as como uma estrutura de perguntas e respostas.
Nessas estruturas, sempre seria possível, dar-se primazia à coluna de perguntas (questões ou dúvidas científicas) ou das respostas (hipóteses ou prováveis soluções), e essa abordagem filosófica definiria as características desse ramo do conhecimento.
Assim, por exemplo, se a ênfase é dada às perguntas, nunca as respostas serão suficientes e sempre serão colocadas em cheque. As respostas seriam proposições vulneráveis e instáveis e apenas conseguiriam levantar novas questões. Já se a importância é dada à coluna das respostas, teríamos o efeito oposto, uma vez que a prioridade passaria a ser a solução, a unidade do sistema, a completude de lacunas e as perguntas, a partir de certo limite, passariam a ser vistas como ameaças a esse sistema, como pontos de instabilidade.
O primeiro modelo teria cunho investigativo, questionador, englobante, dando primazia ao crescimento científico, ao olhar sob todos os ângulos, ao amadurecimento intelectual. O segundo modelo seria essencialmente hermético, fechado, pouco crítico, mas estável, sólido e seguro.
Essa forma para compreender melhor os ramos científicos se tornou tão importante que foi utilizada por Theodor Viehweg em sua reconstrução da tópica como estilo de pensamento adequado ao Direito e que, mais tarde, viria a se tornar método de interpretação constitucional aplaudido por constitucionalistas e juristas.
É dessa lógica original que Viehweg faz a diferenciação entre “zetética” (do grego zetein: perquirir, investigar) e “dogmática” (do grego dokein: ensinar, doutrinar), pontuando que a passagem de um para outro se daria apenas com a mudança de postura do cientista ou jurista em relação ao objeto de estudo. Essa é a idéia chave para o uso da tópica no Direito: a tópica como estilo de pensamento problemático, caótico, aberto passaria a ser instrumento fundamental para o enriquecimento da decisão judicial, cuja natureza é “dogmática”, fechada, de primazia da segurança, de formação de opinião.
Chego ao ponto que me parece fundamental na avaliação da relação entre Congresso e STF: o STF (das respostas) como Estado-juiz de questões constitucionais está em posição dogmática, de prestígio da “lógica jurisdicional”, da idéia de solução de conflito e de estabilidade e segurança do sistema. O Congresso (das perguntas), como órgão central do exercício da democracia, está na posição “zetética”, com prioridade à problematização, ao olhar multifacetado, à riqueza do debate e à inclusão das várias opiniões divergentes.
Para cada caso difícil analisado ou que remeta necessariamente à complexidade das discussões democráticas no Congresso, o STF, assumindo sua função mediadora (e não inquisitorial), precisa se abrir com boa vontade às múltiplas facetas e aspectos do debate político, entendendo que o modelo zetético (ou das perguntas) de tratamento de um tema é também, em regra, o mais democrático.
Há razões políticas que precisam ser consideradas pelo STF quando julga temas com essa conformação ou quando atinge práticas legislativas já consolidadas (como, por exemplo, o procedimento de aprovação das medidas provisórias e a votação dos vetos no Congresso). Isso não quer dizer que tais razões políticas se sustentem ou que tais práticas não possam ser declaradas inconstitucionais. Porém, compreendê-las em um espaço “não-jurisdicional” é um caminho institucionalmente maduro que, a um só tempo, permitiria ao STF antever situações práticas difíceis de serem contornadas e realizar função mediadora-decisória mais útil e funcional para o país.
Rodrigo de Oliveira Kaufmann
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