"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sábado, 18 de janeiro de 2014

O Supremo entre o político e o jurídico


A recente discussão sobre a possibilidade de doação pecuniária por pessoas jurídicas para partidos e campanhas políticas traduz assunto público complexo que, por assim ser, merece profunda reflexão da sociedade brasileira. O primeiro ponto a ser destacado é que as leis que estão sendo impugnadas são uma do ano de 1995 (Lei dos Partidos Políticos) e outra de 1997 (Lei das Eleições).

Ou seja, durante quase duas décadas, tais dispositivos legais valeram e foram tidos por absolutamente constitucionais. No entanto, parece que o passar do tempo, ao invés de estabilizar a lei, gerou efeito inverso, levantando a poeira da dúvida sobre aquilo que era considerado inquestionável. Então, o que mudou, nesse interregno, de lá para cá?

Bem, muita coisa mudou. O Brasil, principalmente após o sucesso do Plano Real, andou para frente em muitos aspectos socioeconômicos, mas, politicamente, além de não avançar, retrocedeu em questões importantes, tais como, por exemplo, na moralidade pública. Dessa forma, diante dos reiterados insucessos éticos da política nacional, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou ação direta de inconstitucionalidade contra as regras que autorizam a contribuição eleitoral por pessoas jurídicas. Em síntese, sustenta-se que tal norma estimula a corrupção e o surgimento de relações espúrias entre o poder e empresas privadas.

A linha lógica do argumento é indiscutivelmente encantadora. E o encanto aumenta quando olhamos para a realidade política brasileira e vemos que os anjos estão cada vez mais distantes desse quadro desolador. No entanto, a bem intencionada iniciativa possui sérios problemas constitucionais. Primeiro, porque torna jurídico algo que é prioritariamente político. Segundo, porque possibilita, após 20 anos de vigência de uma lei, a alteração das regras do jogo democrático por uma decisão jurisdicional, comprometendo, assim, o princípio da legitimidade popular que enseja os atos legislativos republicanos. E terceiro, porque coloca o Supremo Tribunal Federal (STF) em uma situação limite entre o interpretar a norma e o ditar a lei.

Ora, não existe dispositivo constitucional que proíba as empresas de contribuírem eleitoralmente. Tanto é verdade que tal regra está em vigor por mais de 20 anos no Brasil. E a inconstitucionalidade, em controle abstrato, somente pode ser declarada quando o vício legislativo é claro, palpável e inequívoco. Sobre o ponto, a lição lapidar do eminente Pedro Lessa: “Não basta demonstrar que a lei incriminada é injusta, opressora, ou fere direitos naturais, sociais ou políticos. É indispensável convencer de que se trata de uma lei contrária à Constituição, que viola um preceito constitucional, devendo se concluir a oposição entre a lei e o artigo constitucional, de modo inequívoco, nos termos da Constituição”.

Como se vê, em exame de constitucionalidade em tese, o juízo negativo apenas se impõe quando a violência à Constituição é manifesta e inarredável. Trata-se, enfim, de uma questão de conteúdo, não de efeito. Mas se a lei, no plano da eficácia, não é boa ou se mostrou com o tempo ruim? Então, que se mude a lei, nos termos do processo legislativo traçado na Constituição. E processo legislativo não é processo judicial; ambos são notadamente processos, mas de natureza, titularidade e procedimentos distintos.

Logo, o Supremo naquilo que é jurídico pode ir às estrelas do céu constitucional; todavia, naquilo que é político deve respeitar o mármore soberano do Congresso Nacional. Mas dá para confiar no Congresso?

Bem, essa é uma questão política, e a boa política se faz no dia a dia de nossas vidas como cidadãos participativos e conscientes dos deveres de honestidade privada e pública. Infelizmente, o Supremo não é mágico e não pode mudar aquilo que depende de nós. Em outras palavras, a Suprema Corte, embora possa muito, não tem o poder de mudar a política, pois quem muda a política são as pessoas e a sociedade no exercício construtivo de uma cidadania ativa. Ocorre que, diante de um progressivo esvaziamento político do Parlamento e de uma certa preguiça cívica do cidadão, o colendo STF está sendo chamado para completar lacunas democráticas que, antes de uma segura análise jurídica, precisam obrigatoriamente de um sólido debate político de âmbito nacional.

Analisando as perspectivas do controle da constitucionalidade, o catedrático professor Josaphat Marinho apontou letras jurídicas inapagáveis, frutos de sua invulgar sabedoria e cultura: “Justo notar que o Poder Judiciário, em sua tarefa criadora, especialmente através do Supremo Tribunal, não se tem limitado à compreensão larga ou vivificante das regras legisladas. No deslinde de vários problemas, diante de deficiências do direito positivo, formula conceitos e soluções somente depois incorporados aos textos legais”. Resta claro, portanto, que o papel criativo da jurisprudência constitucional atua em favor do aperfeiçoamento da atividade legislativa, levando luzes onde paira a escuridão do ilícito ou retirando pedras do caminho para o livre passar da ordem jurídica justa.

Nesse ambiente institucional construtivo, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário se completam mutuamente em suas respectivas áreas de atuação. São, assim, poderes complementares, jamais de substituição. Aliás, a complementaridade decorre de um fato inquestionável: só há controle de constitucionalidade abstrata com lei, pois, sem lei, o controle constitucional perde a sua necessária concretude.

Dessa forma, se uma dada regra ordinária foi tida durante anos como constitucional e tendo a Constituição se mantido inalterada quanto ao ponto, a eventual perda de eficácia social da regra não se resolve em juízo de validade constitucional.

Ora, sabidamente, é possível termos uma regra constitucional em tese, porém praticamente ineficaz porque nem sempre os planos de validade e eficácia se encontram na hora marcada. A questão é que, quando uma regra válida perde eficácia, temos de duas, uma: ou mudamos as estruturas político-sociais para o resgate da eficácia jurídica perdida; ou mudamos as regras do jogo, atualizando eficazmente o sentido normativo da lei.

Em ambas as situações o caminho é prioritariamente político e, não, judicial. Afinal, quem muda as leis da República é o Poder Legislativo e quem muda as estruturas sociais de um país é a política bem exercida.
Se as atuais regras de financiamento eleitoral são defectivas, é preciso mudar as referidas regras e criar instituições que garantam o fiel cumprimento da lei. Logo, aqui, não é o caso de mudar a interpretação jurídica sobre o que se tem, pois, antes e acima de tudo, é preciso mudar o que se é. Mas o que vale mudar as atuais formas de doação político-partidárias se as contas eleitorais continuarem a ser uma farsa democrática?

Supremo tem função política‏

É público e notório que o egrégio Supremo Tribunal Federal (STF) vem ampliando sua função política na atual quadra evolutiva da democracia brasileira. Sem cortinas, o fenômeno veio para ficar e, se bem executado, poderá contribuir em muito para o progresso institucional da nação. Todavia, como todo fato complexo, há desafios e limites jurídicos a serem observados, sob pena de desnaturar a obrigatória legalidade da decisão jurisdicional em simples ato de discricionariedade política. Nesse contexto de transformações importantes, é oportuno indagar: por que a função política do Supremo tem se destacado no atual panorama institucional brasileiro?

Os motivos são plurais e de diversos matizes; começam por uma saudável estabilidade normativa da Constituição de 1988, passam por um necessário e contínuo aperfeiçoamento hermenêutico das regras constitucionais, chegam a uma sociedade economicamente mais organizada e potencialmente mais capaz de enxergar a vida com o auxílio de atuantes ferramentas tecnológicas, vindo, ao final, a desaguar em uma dramática apatia parlamentar do Congresso Nacional, que, por interesses pequenos, aceita, sem rodeios, os acenos fúteis de um Executivo cada vez mais ganancioso pelo poder. Na outra ponta, temos uma oposição calada, com raras lideranças eminentes, e completamente desarticulada em sua tímida ação política. Com isso, o Congresso desce e o Judiciário sobe como instância pública de dialética e solução de assuntos de interesse da coletividade.

Aqui, chegamos ao coração pulsante da questão: até onde o Supremo poder ir no desempenho de sua inata função política? Bem, entramos em um território em que não há fronteiras fixas, pois cabe à técnica e à sensibilidade do juiz constitucional avaliar as circunstâncias concretas e decidir se o momento é de avanço ou de cautela. Para tanto, não será a inteligência individual, mas a sabedoria colegiada dos “11 velhinhos do Supremo Tribunal”, expressão do bom e velho Baleeiro, e de toda a comunidade jurídica do Brasil, que deverão, juntos, desenvolver os limites para a ação construtiva e vivificante da jurisprudência pátria.
Em sua dimensão constitucional, o Supremo é a ponte que liga o político ao jurídico.

Nas clássicas lições de filosofia do direito de 1912, o inigualável Pedro Lessa ensina que “são de mútua dependência e subordinação as relações do direito com a política”. A justa medida está na compreensão de que a Constituição precisa da lei e a lei, para valer e ser respeitada, precisa de uma jurisdição atuante. Em outras palavras, a Constituição precisa de um Congresso e de um Judiciário que ajam com segurança e firmeza em suas respectivas e complementares áreas de atuação.

O Supremo Tribunal Federal tem feito muito, talvez até demais. Por outro lado, o que tem feito o Congresso Nacional para dignificar sua alta responsabilidade política? A resposta é o começo de um ajuste institucional necessário. O Supremo pode muito, mas não pode mudar a política partidária. Que tal, então, começarmos a fazer a nossa parte?

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr

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