Existe uma palavra-chave inerente ao conceito de democracia nem sempre reverenciada: participação. Ao contrário, é deixada de lado no mais das vezes, pois somos levados intuitivamente, ou por indução, a prestar mais atenção no resultado em si do que nas fórmulas que levam a esse resultado.
É normalmente assim na vida comum. Quando entramos em um comércio, chama mais a nossa atenção a decoração do lugar do que a estrutura do prédio que abriga os artefatos do ambiente. Ao entrar no ônibus, no metrô ou no avião nossos olhos procuram enxergar a limpeza do local, se os assentos estão disponíveis ou se existe espaço suficiente entre as poltronas. Essas informações são captadas em átimos e processadas na nossa mente para construir sensações de conforto, de estética ou de satisfações subjetivas. Mas não é comum indagar-se, primeiramente, se o veículo é seguro, se passou por manutenção ou qual a técnica de engenharia empregada nas mencionadas máquinas. Talvez um profissional da área se preocupe com este último aspecto, mas essa exceção ajuda a confirmar a regra.
Algo semelhante ocorre com o processo de formação dos direitos em regimes com características democráticas as quais, para os fins editorais deste texto, são resumidas na noção de poder de participação. Tal poder se destina à elaboração das regras de convivência. É condição elementar à compreensão de democracia que seja reconhecido o direito de participar de decisões que, enfim, constituirão nossos paradigmas morais. Tais paradigmas serão fundamentos para a criação de constituições, leis e outras normas que indicarão direitos como à vida, educação, saúde, segurança pública, moradia, trabalho, segurança alimentar, cultura, meio ambiente e lazer, para ficar com os exemplos mais lembrados.
Se tais direitos são efetivados a todos, nossas expectativas em torno do padrão ideal de igualdade são naturalmente reduzidas, o que não significa dizer que tais direitos possam conceder satisfações pessoais plenas. Mas se tais direitos, previstos em constituições ou em leis não são aplicados — e existindo garantias de liberdade de expressão e de ação dentro da legalidade — a tendência é a reivindicação de tais direitos.
Por outro lado, mesmo quando esses direitos são regulamentados, o processo de sua efetivação poderá ser tenso, pois nem todos concordam com a extensão de sua aplicação. Para alguns seus custos são muito elevados. Para outros, nem todos deveriam recebê-los. Alguns acreditam que o mercado poderá se encarregar de ofertar tais direitos a depender do esforço individual de cada um. O ponto encontradiço é que mesmo quando os direitos de alto peso moral são previstos, divergências podem ocorrer de modo que é difícil dizer com segurança intelectual quem está certo e quem não está. Questões como aborto, liberdade religiosa, cotas para minorias, desmatamento frente ao agronegócio e, mais recentemente, revisão da Lei de Anistia são difíceis de serem solucionadas idealmente e seduzem parte da população a um debate exaustivo, ainda que necessário e indispensável. Essa sedução — justificável pela relevância de cada tema — é o que mais atrai.
Em geral, prestamos mais atenção nos meios de oferta ou na negativa de tais direitos e isso é o que passa a importar. Deixamos de lado o que levou à construção desses direitos e como foram criados. O importante é que tais direitos existem e se existe tensão em torno de sua aplicação, instituições devem ser acionadas para resolver quem tem razão. Modernamente, tem-se em geral recorrido à Suprema Corte para definir, afinal, quem fica com o que em matéria de dilemas morais. Será essa a solução ideal na democracia? Talvez. Quero chamar a atenção, porém, para o poder de participação. Se foi possível sermos capazes de nos organizar para criar direitos, seremos também uma sociedade com habilidades para solver possíveis dilemas dessa criação.
Participar, pois, é votar em condições de igualdade em representantes. Mas é também aperfeiçoar mecanismos de participação que permitam a solução de questões difíceis sobre direitos tão caros a nossa convivência. Não quero dizer com isso que o Parlamento se transformaria em outro Poder Judiciário. Não é isso. A Suprema Corte deve continuar a interpretar a Constituição Federal papel que, aliás, no Brasil, tem desempenhado muito bem.
Por isso, os grandes temas que dividem a sociedade quando a questão é a distribuição de direitos socialmente relevantes poderiam ser alvo de novas deliberações por instrumentos que garantissem a participação dos eleitores, sempre em igualdade de condições. Será duro desacostumar nosso modo de pensar, pois acreditamos que as instituições formais, especialmente a Suprema Corte, substituirá facilmente nosso poder de participação, como se o problema se resolvesse com a simples aplicação dos direitos, doa a quem doer. Temos nos preocupado muito com a aparência do ambiente e deixado à segurança da edificação para que outros se preocupem por nós.
Cleucio Santos Nunes
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