"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Mandado de segurança contra ato do Congresso e equilíbrio entre os poderes


A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal fez do mandado de segurança contra alguns tipos de atos das mesas das duas casas do Congresso Nacional, e de suas comissões, um importante instrumento de proteção das prerrogativas parlamentares contra violações pela maioria. Desde então, o uso desse instrumento por parlamentares individuais para esse fim tornou-se elemento essencial para a preservação das funções constitucionais do próprio Congresso Nacional.

No entanto, em função de mudanças naturais na composição da Suprema Corte, algumas decisões têm indicado uma possível revisão dessa tradição constitucional trintenária. A título de exemplo, citamos os acórdãos dos MS 31.816 e 32.033, ambos redigidos pelo ministro Teori Zavascki, nos quais o uso desse instrumento processual pelos parlamentares para a proteção de direito líquido e certo foi assimilado a uma espécie de controle judicial preventivo de constitucionalidade, o que não se permite no direito brasileiro.

O objetivo dessa coluna não é criticar essas sinalizações revisionistas, até porque o impacto desse posicionamento ainda não parece ter repercutido suficientemente nos meios jurídicos, senão propor uma interpretação do uso do mandado de segurança por parlamentares segundo a qual esse instrumento impediria ingerências indevidas do Poder Executivo sobre o Poder Legislativo e, logo, preservaria o equilíbrio entre os poderes da República.

1) O desvirtuamento do “Presidencialismo de Coalizão”: construção de bases parlamentares após as eleições e sem afinidades ideológicas

O sistema de governo no Brasil é conhecido, desde o clássico texto de Sérgio Abranches, como “presidencialismo de coalizão”. Para manter sua dinâmica virtuosa, o modelo proposto por Abranches, dependeria de algumas condições, entre elas, a efetiva partilha do governo entre os partidos da coalizão. Com efeito, o governo de coalizão, composto por diversos partidos, deveria ser exercido tanto pelo partido que elegeu o chefe do Executivo, quanto por partidos com representação exclusivamente parlamentar. Isso implicaria em uma partilha do processo decisório efetivo, e não simplesmente a ocupação dos cargos na base do “do ut des”, onde o apoio parlamentar seria obtido após a eleição e mediante a distribuição de benefícios administrativos, ainda que legais, pelo Poder Executivo aos parlamentares.

Esse seria o “presidencialismo de coalizão” em sua forma virtuosa.

Ocorre que, frequentemente, nosso sistema de governo apresenta uma dinâmica distante da idealizada por Abranches. Nessa versão desvirtuada, o Poder Executivo utiliza-se de instrumentos de que dispõe legalmente para cooptar parlamentares que, não necessariamente, têm afinidades políticas com os programas do governo. Entre esses instrumentos estão: as nomeações para cargos no Executivo, a execução de emendas ao orçamento, nomeações para cargos em empresas estatais, e outros.

Essa cooptação pelo Executivo, com o consequente favorecimento a parlamentares que tenham aderido à base ou que pertençam a determinados partidos políticos, torna o apoio do Governo Federal um fator de desequilíbrio na eleição dos parlamentares. As recentes disputas dentro da base do atual governo, e entre a base e o Governo, ilustram o argumento, principalmente, as muitas dificuldades que o Executivo enfrentou com os deputados federais do PMDB, nos últimos meses. Essas dificuldades teriam sido motivadas pela constatação de que o partido do Governo (PT) estaria utilizando-se de instrumentos da administração pública para ganhar cadeiras parlamentares em prejuízo do seu parceiro de chapa na eleição presidencial.

Com o uso desses instrumentos pelo Poder Executivo, a sobrevivência parlamentar de diversos partidos e de seus congressistas passaria a depender, pelo menos em parte, da simpatia do Governo. Para o parlamentar e seu partido, a forma de conseguir essa simpatia seria através da hipoteca de apoio quase incondicional ao Executivo, o que significaria abrir mão do exercício independente das prerrogativas parlamentares inerentes a seu cargo. Em outras palavras: pelo peso que a máquina administrativa federal tem no processo eleitoral como um todo (e não apenas nas eleições) torna-se vantajoso para o parlamentar tornar-se um representante do Executivo, e não apenas do eleitor.

Essa forma de fidelização não programática de parlamentares ao governo afeta negativamente o desempenho do Congresso Nacional no exercício de suas funções típicas: a legislativa e a fiscalização da Administração Pública.

2) Os poderes conferidos à maioria formada pelo Executivo e o prejuízo ao exercício das funções legislativa e de fiscalização

A função legislativa exerce-se através da tramitação regular de proposições legislativas (Propostas de Emenda à Constituição, Projetos de Lei em geral, Medidas Provisórias, Decretos Legislativos e Resoluções — artigo 59 da CF). Cada uma dessas proposições tem trâmites específicos, que devem ser respeitados para que ela se torne norma jurídica válida. Há regras sobre isso na Constituição Federal, em Leis infraconstitucionais, no Regimento Interno de cada Casa Legislativa, e até em precedentes das Casas. No entanto, considerável envergadura decisória é concedida às Mesas das Casas, como, por exemplo, para a apreciação de questões de ordem apresentadas por parlamentares contra eventuais violações ao trâmite regular das proposições legislativas. Também têm bastante poder, os relatores das proposições em questão.

A função de fiscalização, por outro lado, exerce-se por meio da análise e julgamento das contas do Executivo pelas duas Casas do Congresso, com o auxílio do Tribunal de Contas da União (artigo 49, IX e X, e artigo 71, da CF); por meio do funcionamento das Comissões Permanentes, notadamente no que toca à requisição de informações e à convocação de Ministros de Estado (artigo 50, caput e §2º, e artigo 58, §2º, III, da CF); e por meio da instalação e do funcionamento de Comissões Parlamentares de Inquérito (artigo 58, §3º, CF, e Regimento). No plano sociológico-político, a função de fiscalização depende consideravelmente da atuação efetiva das minorias parlamentares, ou oposições. São essas agremiações, que não participam do condomínio governista, que têm interesse em investigar as contas do governo, interpelar Ministros de Estado e de realizar inquéritos parlamentares (não à toa, a Constituição confere à minoria de 1/3 dos parlamentares de cada Casa a possibilidade de requerer a instalação de CPI — lógica confirmada em diversas decisões do STF). Aqui também sobra bastante margem decisória para as Mesas das duas Casas do Congresso e de suas Comissões.

A amplitude do poder decisório deixado às Mesas, das Casas e das Comissões, e aos relatores de proposições e de votos em comissões, equivale a dar às maiorias um poder largo o bastante até para contornar os obstáculos regimentais, e, às vezes, legais e constitucionais, que deveriam regular os procedimentos internos de cada Casa. Com isso, a depender da desproporção entre maioria e minoria, as regras do processo legislativo e da atividade de fiscalização podem ser abandonadas em prol da maioria, o que significa, a se dar crédito ao que dissemos sobre a cooptação, a fragilizar as normas que regulam o exercício das funções do Legislativo em benefício do que quer o Poder Executivo.

Conclusão

Portanto, temos uma situação que combina uma forma deturpada do presidencialismo de coalizão, uma maioria construída, de forma muitas vezes artificial, pelo Executivo (uma quase bancada de representação desse Poder no Legislativo) e uma soma considerável de poderes decisórios em mãos de cargos tipicamente ocupados por essa maioria que, muitas vezes, age como mandatária do Governo Federal.

Esse cenário faz com que violações às normas regimentais, legais e constitucionais que garantem o exercício das prerrogativas do Parlamento não sejam, sempre, questões interna corporis do Parlamento, mas o resultado de uma colonização do Legislativo pelo Executivo, com sérias implicações sobre o equilíbrio entre os três poderes da República.

O mais grave disso é que o Executivo, que tem interesse em ver-se aliviado dos controles e da fiscalização pelo Legislativo, bem como das limitações impostas pelo princípio da legalidade estrita, pode utilizar-se dessa influência justamente para inviabilizar o exercício da prestação de contas de sua atuação perante o Parlamento (accountability), um elemento essencial do Princípio Republicano, além de impor uma agenda, um tempo e um rito que não se harmonizam com o que se espera da deliberação parlamentar.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal relativamente ao cabimento de Mandado de Segurança para a proteção de direito líquido e certo de parlamentares violado por ato das Mesas das Casas do Congresso, ou de suas Comissões, deve ser analisada, assim, sob o aspecto da proteção do Legislativo contra a influência indevida do Executivo. Trata-se, nesse caso, de uma autêntica defesa do equilíbrio entre os poderes.

Evidentemente, o ideal seria que o Legislativo pudesse não só opor uma resistência autônoma às ingerências do Executivo, mas também exercer efetivamente sua função de manter o Governo sempre sob sua vigilância, notadamente em função da hegemonia que o Executivo já adquiriu no nosso panorama institucional. Para isso, seria preciso fortalecer não só o próprio Legislativo, como os partidos políticos e os parlamentares. Até que isso aconteça, no entanto, a já trintenária tradição inaugurada pelo Mandado de Segurança 20.257, oferece um remédio bastante seguro para a manutenção do equilíbrio entre os poderes e a preservação das funções típicas do Congresso Nacional.

Eliardo Teles Filho é advogado, professor de Direito do Centro Universitário de Brasília (UNICEUB) e doutorando em Direito pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), de Paris.

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