"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Paradoxos atuais e individualismo sem limites pervertem a democracia


Tempos paradoxais

Ao estudarmos as características da civilização atual, aprendemos com Gilles Lypovetsky que os pilares da modernidade estariam hipertrofiados, de modo que vivemos a época do hiperindividualismo, da hiperciência e do hipermercado. Contudo, de outro lado, considerável parcela de pensadores contemporâneos defende leituras diametralmente opostas e postulam a existência de uma crise da subjetividade e da racionalidade moderna, típicas do que se denomina de período pós-moderno.

Assim, a filosofia e a ciência passaram a ser caracterizadas pela complexidade e fragmentação, onde não mais subsiste uma fundamentação metafísica clássica que dê conta do todo. Teria se instaurado um ambiente niilista, no qual a verdade é uma metáfora do intelecto, perdendo sua superioridade ante ao erro.

Nesse contexto, revela-se a impossibilidade de se compreender o humano e explicar o mundo a partir de um único sistema filosófico, de modo que as noções de provisoriedade, temporalidade e comprometimento histórico do saber ganham força, mostrando que vivemos um momento de crise ou de transição paradigmática, conforme terminologia consagrada de Thomas Kuhn.

E os paradoxos multiplicam-se. Em época tão rica, propícia para a criatividade e para a livre de produção de ideias, ou seja, para o exercício da liberdade individual, a dissolução tecnológica da privacidade faz com a essa liberdade sofra grande controle social. Ideias tidas como inconvenientes são ridicularizadas. Reproduzem-se nas redes sociais mensagens e “memes” linchando pessoas e queimando reputações.
Vivemos em um país democrático, mas professores dão aulas medindo palavras, temerosos com as consequências de suas falas. Qualquer mal-entendido ou dissabor ofende e tem potencial para gerar processo judicial. Dissolve-se a autorictas. Tudo é permitido e nada é permitido. Justamente por ser tudo permitido, a ausência de limites aniquila a liberdade do próximo.

Mundo sem limite

Na tentativa de entender esses fenômenos, os psicanalistas, em especial Jean-Pierre Lebrun e Charles Melman, fazem o diagnóstico de que há uma nova formação da economia psíquica, promotora de um mundo sem limite.

Na obra Um mundo sem limite — ensaio para uma clínica psicanalítica do social, Lebrun explica que essa situação é oriunda da perda do que se entende, em psicanálise, por figura do Pai (que não é necessariamente pessoa física, mas antes o lugar do limite, a função da castração que, ao mesmo tempo, institui a ordem psíquica do sujeito e fixa o desejo).

Como decorrência, há um esvaziamento de autoridade que tem proporcionado o que, segundo Melman, pode ser pensado como uma nova economia psíquica, isto é, um modo egocêntrico de pensar, viver, trabalhar, relacionar-se com a família e com as instituições sociais, assentado na exibição do prazer, que é buscado a qualquer preço.

Ora, na leitura psicanalítica clássica, a formação do sujeito se dá com a interdição/limite imposto pelo Outro, negatividade que gera ausência e, ao mesmo tempo, desejo. Nesse processo, baseado no recalque, o sujeito cresce e amadurece socialmente. Já a nova economia psíquica é caracterizada por uma lógica que evita a subjetivação, o desprazer, abrindo o primado das sensações sobre os limites sociais e, assim, inibe a formação para a cidadania.

Em um mundo sem limites, qualquer forma de desprazer (ainda que imediato, temporário e educativo) é rechaçada, pois importa o gozo-espetáculo, o amor midiático e, para alcançá-lo, todos os meios são permitidos, até mesmo o imbróglio, a fraude.Nesse novo quadro, não há mais referenciais éticos que direcionem as condutas das pessoas.

Uma democracia pervertida

No campo sociológico, o individualismo originado da perda da subjetivação clássica gera um forte relativismo ético que se verifica no pluralismo axiológico, multiculturalismo com grande diversidade nas expectativas normativas e o reconhecimento geral do aumento da complexidade sistêmica, formando um conjunto de fatores que consome a possibilidade de tradições estáveis e impede a formação de uma imagem antropológica coerente do homem atual. Daí a resistência ao cumprimento de regras sociais básicas e o excessivo egocentrismo de muitos que possuem grande dificuldade de lidar com o “não”. “O céu está vazio” e “não há mais impossível”, diz Melman.

A partir desses pilares, a nova economia psíquica tem levado a profundas consequências no modo de realizar a democracia. Na obra A perversão comum — vivendo juntos sem o outro, Lebrum conclui que houve a morte da sociedade hierárquica e, nesse contexto, o coletivo não serve mais à castração, ao lugar do Outro. Operou-se, assim, a dissolução entre o singular e o coletivo sem que houvesse novo substituo ao individualismo que ele diagnostica como perverso.

Perverso porque, conforme suas palavras, “a perversão é uma estrutura psíquica que visa essencialmente à satisfação. Ela se serve do outro, sem perguntar o ponto de vista, se estar de acordo, o que quer que seja. Ela desmente também a diferença de sexo ou de geração. Esse é o perverso doente. Mas hoje existe essa noção de perversão que pode também designar sujeitos sem serem doentes, mas organizados por este funcionamento. Trata-se de uma tendência, sem que haja uma patologia” (disponível neste link).

Forma-se, assim, o neosujeito que, ante ao vazio da existência e a ausência de limites, busca grande quantidade de sensações intensas, aderindo de maneira incontrolável à lógica do consumo (da ostentação?).

Essa conduta, uma vez generalizada, ocasiona a perversão comum que solapa as possibilidades de uma democracia forte, já que, com o esfacelamento do coletivo, prevalece o espírito de facção, a defesa irrestrita de próprios interesses, por mais fugazes e imediatos que sejam. Eis uma das chaves da intolerância, da indiferença com as vítimas do sistema, da negação/encobrimento do diverso/diferente. Uma democracia em que se vive junto, sem o outro.

Todavia, essa tensão com o outro é inevitável e imprescindível para uma democracia saudável. Não há possibilidade eficaz de representação legítima em uma sociedade hiperfragmentária formada por neossujeitos, com plena dificuldade de aceitar regras.

Como consequência promove-se grave crise de legitimidade nas instituições e torna-se bastante problemática a adequação das convicções individuais a sistemas normativos gerais, que perdem legitimidade em função da distância entre “ser” e “dever-ser”.

Sem referenciais éticos e limites compartilhados socialmente, prevalece o individualismo — correto é fazer aquilo que eu acredito que seja correto — donde a grande dificuldade da imposição de normas, seja ela a reprovação por insuficiência no rendimento acadêmico, a proibição de se espancar mendigos ou atear fogo em índios ou mesmo a compreensão de que direitos fundamentais também admitem restrições e que, não é porque se tem uma boa causa, que grupos minoritários podem fazer tudo que desejam, causando transtorno e prejuízos a milhares de pessoas.

Daí o desafio da era contemporânea: fazer com que o sujeito encontre seus limites e reconheça seu laço com o coletivo a partir de sua singularidade e sem recorrer à tradicional estrutura hierárquica. É o que Lebrun chama de uma nova responsabilidade sujeito — com os outros, sem perversão — pois a responsabilidade apenas será eficaz se comprometida com a dimensão coletiva e a subjetividade do próximo.

Nesse processo, penso que a reconstrução da legitimidade normativa e o resgate da importância de se observar regras gerais é um sofrimento que não pode ser dispensado.

Confusão de funções e submissão ao Executivo agravam crise do Congresso

Anteriormente procurei apresentar o diagnóstico do modelo atual de organização psíquica “sem limites”. Ele tem formado o neosujeito, que tem dificuldade de lidar com regras em um mundo hiperindividualista, e gerado disfunções na democracia contemporânea.

Anotei que um dos efeitos imediatos desse ambiente de alta fragmentação de valores e complexidade social era a grave crise de legitimidade das instituições, pois aumentou a tensão entre “ser” e “dever ser”, entre a adequação das convicções individuais a sistemas normativos gerais.

Na reflexão de hoje avançarei nessa temática, com especial foco na crise de representação política que atinge de modo mais intenso o Congresso Nacional, enquanto locus de materialização normativa da vontade democrática em um sistema político e eleitoral que tenta aliar presidencialismo de coalizão com as exigências de bem-estar social constitucionalmente determinadas.

Descrença nas instituições

A democracia representativa liberal clássica apresenta sinais de esgotamento. Partidos políticos parecem ter perdido o controle da agenda política e do atendimento das demandas públicas. É notável sua dificuldade de agregar e canalizar os votos recebidos de modo a organizar as lutas sociais com objetivos de transformação. Por isso, revelam-se necessários urgentes mecanismos de renovação e oxigenação.

Mesmo os sindicatos têm sofrido questionamentos contundentes acerca de sua representatividade. Tem se tornado comum a chamada “quartelada sindical”, isto é, a ação de grupos de pessoas sindicalizadas, em geral minoritários, que, na defesa de seus interesses, não seguem as deliberações coletivas. Agem da maneira que melhor lhes convém — vale tudo em nome do seu/meu direito —, não raro em prejuízo da manutenção de serviços essenciais à população, gerando impasses na solução de conflitos e tornando impraticável a negociação entre o setores envolvidos, o que prejudica os próprios trabalhadores.

Nesse contexto, a crise de legitimidade do Congresso Nacional brasileiro completa um perigoso quadro de descrença nas instituições que pode servir de pretexto para a ascensão de ideias autoritárias.

Podemos notar os sinais dessa crise i) no acesso ao Poder Legislativo (o sistema proporcional combinado com grande número de partidos e permissão de coligação tem sofrido severos questionamentos); ii) na análise dos extratos sociais e econômicos dos representantes em relação aos representados (o que de imediato revela a baixa representação da comunidade negra e das mulheres); iii) no funcionamento da instituição em si, no âmbito do sistema político nacional.

Cada um desses tópicos de investigação demanda estudos profundos. Por ora, farei um novo recorte: enfatizarei o terceiro ponto, relativo ao exercício satisfatório de suas competências constitucionais.

O Parlamento moderno possui funções básicas de controle e fiscalização, além da atividade legislativa propriamente dita. Em geral, no Estado de Direito cabe ao Legislativo: i) aprovar e controlar o orçamento público e sua execução; ii) fiscalizar a aplicação dos recursos financeiros, combatendo a corrupção; iii) atuar como juiz em situações atípicas (p.ex. impeachment do Presidente da República); iv) promover investigações parlamentares (p. ex. CPIs); v) discutir grandes temas nacionais, levando demandas populares ao Executivo ; vi) inovar legislativamente no sistema constitucional, considerada sua função típica.

Já há aqui um primeiro apontamento em relação à transformação dos representantes parlamentares em legisladores. O cientista politico Giovanni Sartori lembra que na origem do Parlamento moderno, a ideia de onipotência do legislador não significava grande discricionariedade na criação de leis. Tanto no modelo ingles do rule of law quanto na democracia francesa de índole rousseauniana, o Legislativo deveria concretizar o direito previamente existente por meio de leis que seriam muito mais reveladas do que propriamente criadas — inclusive, a fase do law making era precedida de uma etapa mais teórica, do law finding.

Na visão do professor italiano, além de sobrecarga das demandas normativas — que se não forem atendidas levam à insatisfação e à falta de legitimidade da instituição —, o câmbio de paradigma sobre o significado do papel legislativo do Parlamento causou grande confusão de funções e perda da eficácia do que é especificamente a função parlamentar.

Para o autor, essa mudança promoveu efeitos negativos. Os parlamentos absorveram a função de criar o direito e promoveram inflação legislativa, permitindo a afirmação de uma concepção voluntarista do fenômeno jurídico aliada à ideia de que governar é igual a legislar: “O Parlamento adquiriu a atribuição de legislar sobre uma enorme quantidade de procedimentos de natureza particular, administrativa ou mesmo meramente regulamentar. Daí o governo se sente obrigado a governar legislando – prática que equivale a mal governar e mal legislar”.

Assim, conclui que “o princípio de governo controlado e submetido às leis se transformou no princípio bem distinto de governar por meio de leis, multiplicando-as e inflacionando-as”.

Dominação da agenda pelo Executivo

Além do potencial de crise gerado pela sobrecarga de funções e confusão de seu papel institucional, o presidencialismo brasileiro (considerado de coalizão), combinado com um modelo político típico de Estado de Bem-Estar Social, fez com que o modo de produção legislativa se adaptasse às exigências do projeto constitucional instituído em 1988 e tornasse necessária grande participação do Chefe do Executivo na produção legislativa.

A Constituição de 1988 estabeleceu um leque muito abrangente de direitos fundamentais de natureza social, além daqueles da clássica concepção liberal. Tais direitos sociais envolvem direitos de participação e obrigações que o Estado deve prestar à população. Isso faz com que haja maior demanda de atuação positiva do Executivo na realização de políticas públicas que garantam a eficácia desses direitos.

Assim, em oposição ao Estado liberal, com maior centralidade do Poder Legislativo, o Estado de Bem-Estar social legitima a atuação preponderante do Executivo, atribuindo grande responsabilidade governamental ao Presidente da República, que passa a participar do processo legislativo fazendo uso do amplo rol de competências exclusivas na iniciativa de leis (art. 84 da Constituição) e das medidas provisórias (artigo 62).

Além disso, por meio das coalizões partidárias, o presidente utiliza os partidos aliados e o seu próprio como instrumentos de aprovação dos projetos de leis que atendam aos interesses governamentais.

A pauta do Parlamento passa, então, a ser dominada pela agenda do Executivo e, se o Congresso exercer constantemente seu poder de veto, instaura-se uma grave crise de governabilidade, com impasses entre os poderes e paralisação da máquina estatal.

Para que isso não ocorra, por vezes temos presenciado estratégias de cooptação parlamentar que ultrapassam as razões públicas – mais um motivo para a crise de legitimidade — mas que têm garantido ao Executivo alto controle da elaboração normativa, tanto em relação à taxa de sucesso (isto é, percentual de projetos de interesse do governo aprovados pelo Congresso Nacional) quanto em relação à taxa de dominância da agenda política (relativo ao índice de aprovação dos projetos de iniciativa do governo em comparação àqueles de iniciativa de outros atores políticos levados à deliberação e à votação).

Nos cálculos de Limongi relativa ao período de 20 anos contados a partir do fim do regime militar, “A disciplina média da base do governo — proporção de deputados filiados a partidos que receberam pastas ministeriais que votaram em acordo com a indicação expressa do líder do governo — é de 87,4% nas 842 votações ocorridas no período. A variação entre presidentes é pequena: a menor média foi registrada sob Sarney, com 78,4%, e a maior, 90,7%, no segundo governo de Fernando Henrique. O governo Lula, para dissipar falsas imagens, contou com apoio médio de 89,1% dos deputados da base do governo em 164 votações.” (Disponível aqui)

Estudos do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da USP — NUPPs, em especial a análise dos dados pesquisados por José Álvaro Moisés, mostram resultados semelhantes: a taxa de dominância ultrapassa 85% e a taxa de sucesso é ainda mais alta. (Disponível aqui)

No contexto brasileiro, a sobrecarga (e confusão) de funções é um dos fatores que fazem com que o papel de controle e fiscalização não seja adequadamente cumprido e, no plano legislativo, prevalece a dominação da agenda parlamentar pelo Executivo.

Daí a crise da função legislativa do Parlamento que deixou, há muito, de ser o locus adequado de produção normativa legítima e democrática, dando lugar forma de governo calcada no Poder do Executivo.

As estratégias de cooptação parlamentar não raro oportunistas e baseadas em pactos nada republicanos, contribuem para esse quadro de descrença e ausência de legitimidade institucional.

Isso não significa, porém, sua inutilidade ou a defesa da implantação de democracia direta e plebiscitária. Repensar mecanismos de aproximação e diálogo com a sociedade e resgatar a complementaridade entre democracia participativa e representativa são caminhos mais promissores.

Marco Aurélio Marrafon é presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst, Professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Advogado.

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