Tempos paradoxais
Ao estudarmos as características da civilização atual, aprendemos com Gilles Lypovetsky que os pilares da modernidade estariam hipertrofiados, de modo que vivemos a época do hiperindividualismo, da hiperciência e do hipermercado. Contudo, de outro lado, considerável parcela de pensadores contemporâneos defende leituras diametralmente opostas e postulam a existência de uma crise da subjetividade e da racionalidade moderna, típicas do que se denomina de período pós-moderno.
Assim, a filosofia e a ciência passaram a ser caracterizadas pela complexidade e fragmentação, onde não mais subsiste uma fundamentação metafísica clássica que dê conta do todo. Teria se instaurado um ambiente niilista, no qual a verdade é uma metáfora do intelecto, perdendo sua superioridade ante ao erro.
Nesse contexto, revela-se a impossibilidade de se compreender o humano e explicar o mundo a partir de um único sistema filosófico, de modo que as noções de provisoriedade, temporalidade e comprometimento histórico do saber ganham força, mostrando que vivemos um momento de crise ou de transição paradigmática, conforme terminologia consagrada de Thomas Kuhn.
E os paradoxos multiplicam-se. Em época tão rica, propícia para a criatividade e para a livre de produção de ideias, ou seja, para o exercício da liberdade individual, a dissolução tecnológica da privacidade faz com a essa liberdade sofra grande controle social. Ideias tidas como inconvenientes são ridicularizadas. Reproduzem-se nas redes sociais mensagens e “memes” linchando pessoas e queimando reputações.
Vivemos em um país democrático, mas professores dão aulas medindo palavras, temerosos com as consequências de suas falas. Qualquer mal-entendido ou dissabor ofende e tem potencial para gerar processo judicial. Dissolve-se a autorictas. Tudo é permitido e nada é permitido. Justamente por ser tudo permitido, a ausência de limites aniquila a liberdade do próximo.
Mundo sem limite
Na tentativa de entender esses fenômenos, os psicanalistas, em especial Jean-Pierre Lebrun e Charles Melman, fazem o diagnóstico de que há uma nova formação da economia psíquica, promotora de um mundo sem limite.
Na obra Um mundo sem limite — ensaio para uma clínica psicanalítica do social, Lebrun explica que essa situação é oriunda da perda do que se entende, em psicanálise, por figura do Pai (que não é necessariamente pessoa física, mas antes o lugar do limite, a função da castração que, ao mesmo tempo, institui a ordem psíquica do sujeito e fixa o desejo).
Como decorrência, há um esvaziamento de autoridade que tem proporcionado o que, segundo Melman, pode ser pensado como uma nova economia psíquica, isto é, um modo egocêntrico de pensar, viver, trabalhar, relacionar-se com a família e com as instituições sociais, assentado na exibição do prazer, que é buscado a qualquer preço.
Ora, na leitura psicanalítica clássica, a formação do sujeito se dá com a interdição/limite imposto pelo Outro, negatividade que gera ausência e, ao mesmo tempo, desejo. Nesse processo, baseado no recalque, o sujeito cresce e amadurece socialmente. Já a nova economia psíquica é caracterizada por uma lógica que evita a subjetivação, o desprazer, abrindo o primado das sensações sobre os limites sociais e, assim, inibe a formação para a cidadania.
Em um mundo sem limites, qualquer forma de desprazer (ainda que imediato, temporário e educativo) é rechaçada, pois importa o gozo-espetáculo, o amor midiático e, para alcançá-lo, todos os meios são permitidos, até mesmo o imbróglio, a fraude.Nesse novo quadro, não há mais referenciais éticos que direcionem as condutas das pessoas.
Uma democracia pervertida
No campo sociológico, o individualismo originado da perda da subjetivação clássica gera um forte relativismo ético que se verifica no pluralismo axiológico, multiculturalismo com grande diversidade nas expectativas normativas e o reconhecimento geral do aumento da complexidade sistêmica, formando um conjunto de fatores que consome a possibilidade de tradições estáveis e impede a formação de uma imagem antropológica coerente do homem atual. Daí a resistência ao cumprimento de regras sociais básicas e o excessivo egocentrismo de muitos que possuem grande dificuldade de lidar com o “não”. “O céu está vazio” e “não há mais impossível”, diz Melman.
A partir desses pilares, a nova economia psíquica tem levado a profundas consequências no modo de realizar a democracia. Na obra A perversão comum — vivendo juntos sem o outro, Lebrum conclui que houve a morte da sociedade hierárquica e, nesse contexto, o coletivo não serve mais à castração, ao lugar do Outro. Operou-se, assim, a dissolução entre o singular e o coletivo sem que houvesse novo substituo ao individualismo que ele diagnostica como perverso.
Perverso porque, conforme suas palavras, “a perversão é uma estrutura psíquica que visa essencialmente à satisfação. Ela se serve do outro, sem perguntar o ponto de vista, se estar de acordo, o que quer que seja. Ela desmente também a diferença de sexo ou de geração. Esse é o perverso doente. Mas hoje existe essa noção de perversão que pode também designar sujeitos sem serem doentes, mas organizados por este funcionamento. Trata-se de uma tendência, sem que haja uma patologia” (disponível neste link).
Forma-se, assim, o neosujeito que, ante ao vazio da existência e a ausência de limites, busca grande quantidade de sensações intensas, aderindo de maneira incontrolável à lógica do consumo (da ostentação?).
Essa conduta, uma vez generalizada, ocasiona a perversão comum que solapa as possibilidades de uma democracia forte, já que, com o esfacelamento do coletivo, prevalece o espírito de facção, a defesa irrestrita de próprios interesses, por mais fugazes e imediatos que sejam. Eis uma das chaves da intolerância, da indiferença com as vítimas do sistema, da negação/encobrimento do diverso/diferente. Uma democracia em que se vive junto, sem o outro.
Todavia, essa tensão com o outro é inevitável e imprescindível para uma democracia saudável. Não há possibilidade eficaz de representação legítima em uma sociedade hiperfragmentária formada por neossujeitos, com plena dificuldade de aceitar regras.
Como consequência promove-se grave crise de legitimidade nas instituições e torna-se bastante problemática a adequação das convicções individuais a sistemas normativos gerais, que perdem legitimidade em função da distância entre “ser” e “dever-ser”.
Sem referenciais éticos e limites compartilhados socialmente, prevalece o individualismo — correto é fazer aquilo que eu acredito que seja correto — donde a grande dificuldade da imposição de normas, seja ela a reprovação por insuficiência no rendimento acadêmico, a proibição de se espancar mendigos ou atear fogo em índios ou mesmo a compreensão de que direitos fundamentais também admitem restrições e que, não é porque se tem uma boa causa, que grupos minoritários podem fazer tudo que desejam, causando transtorno e prejuízos a milhares de pessoas.
Daí o desafio da era contemporânea: fazer com que o sujeito encontre seus limites e reconheça seu laço com o coletivo a partir de sua singularidade e sem recorrer à tradicional estrutura hierárquica. É o que Lebrun chama de uma nova responsabilidade sujeito — com os outros, sem perversão — pois a responsabilidade apenas será eficaz se comprometida com a dimensão coletiva e a subjetividade do próximo.
Nesse processo, penso que a reconstrução da legitimidade normativa e o resgate da importância de se observar regras gerais é um sofrimento que não pode ser dispensado.
Confusão de funções e submissão ao Executivo agravam crise do Congresso
Anotei que um dos efeitos imediatos desse ambiente de alta fragmentação de valores e complexidade social era a grave crise de legitimidade das instituições, pois aumentou a tensão entre “ser” e “dever ser”, entre a adequação das convicções individuais a sistemas normativos gerais.
Na reflexão de hoje avançarei nessa temática, com especial foco na crise de representação política que atinge de modo mais intenso o Congresso Nacional, enquanto locus de materialização normativa da vontade democrática em um sistema político e eleitoral que tenta aliar presidencialismo de coalizão com as exigências de bem-estar social constitucionalmente determinadas.
Descrença nas instituições
A democracia representativa liberal clássica apresenta sinais de esgotamento. Partidos políticos parecem ter perdido o controle da agenda política e do atendimento das demandas públicas. É notável sua dificuldade de agregar e canalizar os votos recebidos de modo a organizar as lutas sociais com objetivos de transformação. Por isso, revelam-se necessários urgentes mecanismos de renovação e oxigenação.
Mesmo os sindicatos têm sofrido questionamentos contundentes acerca de sua representatividade. Tem se tornado comum a chamada “quartelada sindical”, isto é, a ação de grupos de pessoas sindicalizadas, em geral minoritários, que, na defesa de seus interesses, não seguem as deliberações coletivas. Agem da maneira que melhor lhes convém — vale tudo em nome do seu/meu direito —, não raro em prejuízo da manutenção de serviços essenciais à população, gerando impasses na solução de conflitos e tornando impraticável a negociação entre o setores envolvidos, o que prejudica os próprios trabalhadores.
Nesse contexto, a crise de legitimidade do Congresso Nacional brasileiro completa um perigoso quadro de descrença nas instituições que pode servir de pretexto para a ascensão de ideias autoritárias.
Podemos notar os sinais dessa crise i) no acesso ao Poder Legislativo (o sistema proporcional combinado com grande número de partidos e permissão de coligação tem sofrido severos questionamentos); ii) na análise dos extratos sociais e econômicos dos representantes em relação aos representados (o que de imediato revela a baixa representação da comunidade negra e das mulheres); iii) no funcionamento da instituição em si, no âmbito do sistema político nacional.
Cada um desses tópicos de investigação demanda estudos profundos. Por ora, farei um novo recorte: enfatizarei o terceiro ponto, relativo ao exercício satisfatório de suas competências constitucionais.
O Parlamento moderno possui funções básicas de controle e fiscalização, além da atividade legislativa propriamente dita. Em geral, no Estado de Direito cabe ao Legislativo: i) aprovar e controlar o orçamento público e sua execução; ii) fiscalizar a aplicação dos recursos financeiros, combatendo a corrupção; iii) atuar como juiz em situações atípicas (p.ex. impeachment do Presidente da República); iv) promover investigações parlamentares (p. ex. CPIs); v) discutir grandes temas nacionais, levando demandas populares ao Executivo ; vi) inovar legislativamente no sistema constitucional, considerada sua função típica.
Já há aqui um primeiro apontamento em relação à transformação dos representantes parlamentares em legisladores. O cientista politico Giovanni Sartori lembra que na origem do Parlamento moderno, a ideia de onipotência do legislador não significava grande discricionariedade na criação de leis. Tanto no modelo ingles do rule of law quanto na democracia francesa de índole rousseauniana, o Legislativo deveria concretizar o direito previamente existente por meio de leis que seriam muito mais reveladas do que propriamente criadas — inclusive, a fase do law making era precedida de uma etapa mais teórica, do law finding.
Na visão do professor italiano, além de sobrecarga das demandas normativas — que se não forem atendidas levam à insatisfação e à falta de legitimidade da instituição —, o câmbio de paradigma sobre o significado do papel legislativo do Parlamento causou grande confusão de funções e perda da eficácia do que é especificamente a função parlamentar.
Para o autor, essa mudança promoveu efeitos negativos. Os parlamentos absorveram a função de criar o direito e promoveram inflação legislativa, permitindo a afirmação de uma concepção voluntarista do fenômeno jurídico aliada à ideia de que governar é igual a legislar: “O Parlamento adquiriu a atribuição de legislar sobre uma enorme quantidade de procedimentos de natureza particular, administrativa ou mesmo meramente regulamentar. Daí o governo se sente obrigado a governar legislando – prática que equivale a mal governar e mal legislar”.
Assim, conclui que “o princípio de governo controlado e submetido às leis se transformou no princípio bem distinto de governar por meio de leis, multiplicando-as e inflacionando-as”.
Dominação da agenda pelo Executivo
Além do potencial de crise gerado pela sobrecarga de funções e confusão de seu papel institucional, o presidencialismo brasileiro (considerado de coalizão), combinado com um modelo político típico de Estado de Bem-Estar Social, fez com que o modo de produção legislativa se adaptasse às exigências do projeto constitucional instituído em 1988 e tornasse necessária grande participação do Chefe do Executivo na produção legislativa.
A Constituição de 1988 estabeleceu um leque muito abrangente de direitos fundamentais de natureza social, além daqueles da clássica concepção liberal. Tais direitos sociais envolvem direitos de participação e obrigações que o Estado deve prestar à população. Isso faz com que haja maior demanda de atuação positiva do Executivo na realização de políticas públicas que garantam a eficácia desses direitos.
Assim, em oposição ao Estado liberal, com maior centralidade do Poder Legislativo, o Estado de Bem-Estar social legitima a atuação preponderante do Executivo, atribuindo grande responsabilidade governamental ao Presidente da República, que passa a participar do processo legislativo fazendo uso do amplo rol de competências exclusivas na iniciativa de leis (art. 84 da Constituição) e das medidas provisórias (artigo 62).
Além disso, por meio das coalizões partidárias, o presidente utiliza os partidos aliados e o seu próprio como instrumentos de aprovação dos projetos de leis que atendam aos interesses governamentais.
A pauta do Parlamento passa, então, a ser dominada pela agenda do Executivo e, se o Congresso exercer constantemente seu poder de veto, instaura-se uma grave crise de governabilidade, com impasses entre os poderes e paralisação da máquina estatal.
Para que isso não ocorra, por vezes temos presenciado estratégias de cooptação parlamentar que ultrapassam as razões públicas – mais um motivo para a crise de legitimidade — mas que têm garantido ao Executivo alto controle da elaboração normativa, tanto em relação à taxa de sucesso (isto é, percentual de projetos de interesse do governo aprovados pelo Congresso Nacional) quanto em relação à taxa de dominância da agenda política (relativo ao índice de aprovação dos projetos de iniciativa do governo em comparação àqueles de iniciativa de outros atores políticos levados à deliberação e à votação).
Nos cálculos de Limongi relativa ao período de 20 anos contados a partir do fim do regime militar, “A disciplina média da base do governo — proporção de deputados filiados a partidos que receberam pastas ministeriais que votaram em acordo com a indicação expressa do líder do governo — é de 87,4% nas 842 votações ocorridas no período. A variação entre presidentes é pequena: a menor média foi registrada sob Sarney, com 78,4%, e a maior, 90,7%, no segundo governo de Fernando Henrique. O governo Lula, para dissipar falsas imagens, contou com apoio médio de 89,1% dos deputados da base do governo em 164 votações.” (Disponível aqui)
Estudos do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da USP — NUPPs, em especial a análise dos dados pesquisados por José Álvaro Moisés, mostram resultados semelhantes: a taxa de dominância ultrapassa 85% e a taxa de sucesso é ainda mais alta. (Disponível aqui)
No contexto brasileiro, a sobrecarga (e confusão) de funções é um dos fatores que fazem com que o papel de controle e fiscalização não seja adequadamente cumprido e, no plano legislativo, prevalece a dominação da agenda parlamentar pelo Executivo.
Daí a crise da função legislativa do Parlamento que deixou, há muito, de ser o locus adequado de produção normativa legítima e democrática, dando lugar forma de governo calcada no Poder do Executivo.
As estratégias de cooptação parlamentar não raro oportunistas e baseadas em pactos nada republicanos, contribuem para esse quadro de descrença e ausência de legitimidade institucional.
Isso não significa, porém, sua inutilidade ou a defesa da implantação de democracia direta e plebiscitária. Repensar mecanismos de aproximação e diálogo com a sociedade e resgatar a complementaridade entre democracia participativa e representativa são caminhos mais promissores.
Marco Aurélio Marrafon é presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst, Professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Advogado.
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