"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Duas perspectivas sobre o porvir brasileiro


Bolívar Lamounier 

Toda filosofia política que se preze parte de um contraste entre dois extremos da conduta humana. De um lado, o altruísmo generalizado, que leva ao ideal do bem comum postulado por Aristóteles e Santo Tomás de Aquino; do outro, a figura do “homem lobo do homem”, que leva à luta de todos contra todos, ponto de partida da filosofia de Thomas Hobbes.

Na vida real, exemplos do polo altruísta são raros e efêmeros: o que mais se aproxima é o sentimento de unidade nacional que se configurou em função da guerra; a Grã-Bretanha de Winston Churchill talvez seja o melhor exemplo. No polo hobbesiano, os exemplos abundam. O extremo do extremo é o pretorianismo – aquela situação em que a ordem é precária e só se mantém graças à ação de uma guarda assassina e mercenária, ligada diretamente ao soberano. Descontados os elementos de ficção, é o que vemos no filme O Gladiador, esplêndida reconstrução da época do imperador romano Cômodo, 180-192 d.C. Retratando de forma oblíqua a situação que se prenunciava na Itália, o cineasta Federico Fellini focalizou o mesmo fenômeno por um prisma poético em seu belíssimo Ensaio de Orquestra, de 1978.

Descrever os dois extremos é uma tarefa relativamente fácil. Bem mais difícil é tentar entender os deslocamentos num sentido ou noutro que podem acontecer em qualquer país: o que ofereço em seguida é apenas um exercício com vista a tal objetivo. Não me atrevo a especular sobre a extensão do fenômeno, mas dou por assentado que, em certa medida, o Brasil se deslocou para o polo hobbesiano nos últimos 15 ou 20 anos.

Primeiro, ao liberar as forças sociais represadas desde o rápido crescimento econômico dos anos 1970, as elites políticas vivenciaram o que se pode apropriadamente denominar um embalo de sábado à noite. Imaginaram que a redemocratização e a convocação da Constituinte, resultando numa Carta generosa no que tocava à criação de direitos, reforçadas pelo eventual controle da inflação e a retomada do crescimento, confeririam ao sistema político um alto grau de legitimidade, facilitando a formação de coalizões governativas eficazes.

Mas a realidade subjacente a essa fantasia era bem outra: as instituições eram débeis; a classe política, impedida de se renovar durante os 21 anos do ciclo militar, perdera o pouco de organicidade que tivera em outros tempos; e a sociedade, sacudida por mudanças estruturais aceleradas, tornara-se muito mais difícil de governar. Tornou-se muito mais plebiscitária, quero dizer, atomística e sem identidades grupais estáveis.

Em segundo lugar, ao consumar-se o retorno ao regime civil, era fácil prever que a estrutura partidária dualista (Arena versus MDB) se iria esfacelar, deixando o caminho aberto para uma intensa fragmentação. A reforma partidária de 1979 já dera sinais nesse sentido. Mas a Constituinte e os demais dirigentes políticos relevantes daquele período, em vez de acionar engrenagens institucionais cautelares, “anticíclicas”, fizeram o oposto. Deixaram o processo correr solto e em vários aspectos até o incentivaram. Dessa forma, o “centro”, que em tese poderia reforçar a estabilidade do sistema político, rapidamente se liquefez. Esse quadro deveria ter causado preocupação, mas o que se viu foi outro equívoco.

Tomando a nuvem por Juno, as elites e grande parte das classes médias avaliaram que Lula e o Partido dos Trabalhadores (PT) caminhavam para o centro, com potencial para substituir o centro que se desfizera. Não compreenderam que a ideologia petista não favorecia tal mudança de perfil, ou seja, que o PT permaneceria numa faixa semidemocrática, com um pezinho dentro e outro fora do sistema – ora mais para dentro e ora mais para fora, conforme suas conveniências político-eleitorais.

Contra esse pano de fundo, o governo Fernando Henrique Cardoso deve ser entendido como um interregno de estabilidade e racionalidade. Bem ou mal, conseguiu-se, então, implementar algumas reformas dificilmente reversíveis, por meio do saneamento do sistema financeiro, da privatização de algumas empresas públicas que representavam um peso morto, ou pelo menos não realizavam seu potencial, e o estabelecimento de um regime de política econômica baseado no câmbio flutuante e nas metas de inflação.

Mas tais reformas não foram suficientes para sobrestar a recidiva populista que se iria materializar a partir da ascensão de Lula e, como hoje sabemos, na nuvem de gafanhotos que se abateria sobre o Estado e a economia, devorando implacavelmente os ganhos realizados na gestão das contas públicas e na concepção dos principais serviços sociais, como a educação e a saúde.

Arrastando-se por treze e meio longos anos, a dinâmica acima descrita ganhou velocidade, como um processo de fissão nuclear. Atritou entre si os três ramos do governo e dividiu cada um deles num grau jamais visto no País. Atomizada e desprovida de representação partidária adequada do ponto de vista eleitoral, os diferentes setores da sociedade não obstante se organizaram para a defesa de seus interesses, acentuando até o limite o espírito corporativista existente desde havia muito no País.


O resultado está aí, à vista de todos; nada garante que seja uma danse sur place, um país que se mantém num equilíbrio precário, mas sempre no mesmo lugar. Pode ser um país que pouco a pouco desliza para um equilíbrio cada vez pior. E o pior dessa hipótese pessimista é que ao cidadão comum restará apenas o consolo de dizer – com Fellini, mais uma vez – que “la nave và”, mesmo não sabendo para onde vai essa nave tresloucada.

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