"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Governo de gabinete no Brasil



Haroldo Augusto da Silva Teixeira Duarte


Uma saída exótica e contrária ao dogma da separação dos poderes? 

Algumas questões são recorrentes quando se discute a adoção do Parlamentarismo no Brasil. O presente artigo tem por objetivo enfrentar duas dessas objeções; uma dogmática e outra histórica.

A primeira, dogmático-jurídica, é a seguinte: A fusão do Legislativo com o Executivo, representada e corporificada no Gabinete, não implicaria o risco de um país parlamentarista se degenerar em uma tirania? Afinal de contas, não está escrito no preâmbulo da constituição francesa de 1791 que " Toda Sociedade na qual não é assegurada a garantia dos direitos, nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição"? Não afirmaram, e afirmam ainda, publicistas de renome que "sem a separação dos poderes não há senão o devotismo"? Enfim, seria - de algum modo - a relativização do princípio da separação dos poderes perniciosa ou daninha? Um flanco aberto na democracia que, em que pese inócuo em regimes consolidados como o britânico, poderia produzir resultado catastróficos na nossa jovem e malparada república?

A segunda crítica é a de que esse sistema não se compatibilizaria com o temperamento nacional. Logo, sua adoção nessas terras seria algo um tanto artificial ou exótico. A partir de tais questionamentos, alguns defensores do sistema presidencial chegam a afirmar que nunca se praticou o governo de Gabinete no Brasil (nem mesmo durante o segundo reinado). Esse é o suposto dado histórico que pretendemos problematizar na segunda parte desse trabalho.



PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES.

Primeiro, devemos reconhecer que, de fato, a fusão dos poderes Executivo e Legislativo é uma importante marca do sistema de Gabinete.

Mas dito isso, temos que relembrar a seguinte ponderação do juiz Oliver Wendell Homes Jr.: "Proposições gerais não decidem casos concretos". Portanto, se se trata de avaliar os prós e contras de um dado arranjo dos poderes constituídos, dogmas abstratos ? como o da separação dos poderes ? dificilmente possuirão a força de uma razão conclusiva.

Mas isso não basta para sepultarmos o assunto. É que ainda se pode perguntar o seguinte: Mesmo que não se trate de um preceito com força de razão conclusiva, não teria o princípio da separação dos poderes algo de verdadeiro e útil a ser ao menos levado em conta pelo analista? E, se esse for o caso, não decorreria daí que se observarmos a questão sob o prisma desse princípio devemos concluir que o Presidencialismo seria um sistema mais perfeito do que o governo de Gabinete?

 A limitação do Poder pelo Poder.

Pois bem, cremos que existe sim algo de verdadeiro nesse princípio: A ideia de que a separação dos poderes é menos nociva à liberdade individual do que a sua concentração. No entanto, isso é verdadeiro pelo seguinte motivo: Com a divisão do poder, cria-se um ambiente no qual o próprio poder limitará e fiscalizará o poder. Mas, ainda assim, não vemos como extrair daí uma censura ao sistema parlamentar, pois em que pese o Gabinete seja o laço a unir o Executivo e o Legislativo, existem nesse sistema mecanismos que garantem a limitação do poder pelo poder: o voto de desconfiança, através do qual o parlamento pode derrubar o Gabinete e a dissolução do parlamento, através da qual o Gabinete tem a chance de, caso a opinião pública lhe seja favorável, obter um Legislativo menos arredio ao seu programa de governo.

Além disso, todos os mecanismos de fiscalização e controle hoje existentes no Congresso, como as Comissões Parlamentares de Inquérito, a convocação de Ministros e o julgamento das contas do Governo, continuariam a existir.

Não custa, de todo modo, fazer as seguintes considerações sobre o histórico do princípio de que cuidamos.

Histórico do dogma da separação dos poderes.

Sua versão moderna foi formulada por Montesquieu no seu O Espírito das Leis (1748) a partir de reflexões - vejam que ironia - propiciadas por uma viagem à Inglaterra entre 1729 e 1730. Já então havia, naquele país, mais liberdade do que na França do antigo regime. E ao analisar as instituições inglesas no capítulo "A constituição da Inglaterra" o autor concluiu que isso se devia ao exercício das funções do Estado por diferentes corpos de agentes públicos. Com o sucesso do livro de Montesquieu, o princípio da separação dos poderes se estabeleceu, no século XVIII, como uma fórmula contra a tirania.

Já o sistema Westminster tal como o conhecemos, é dizer, como um sistema de mecanismos de democracia representativa, só se formaria ao longo do século seguinte com a organização dos partidos políticos e a edição de Leis eleitorais que ampliaram progressivamente o sufrágio.

O que significa dizer que a experiência parlamentarista que exsurgiu na democracia representativa britânica não pode ser validamente censurada com base no dogma da separação dos poderes. Antes, temos elementos para, com base na experiência britânica, questionar a autoridade e pertinência daquele dogma.

Além disso, simplesmente não se verificou, até aqui, um só país onde existisse uma absoluta separação dos poderes. É disso que trataremos a seguir.

A separação dos poderes na prática.

Vejamos o caso do Brasil: O Executivo participa do processo legislativo por meio do veto ou sanção (art. 66 da Constituição Federal - CF), bem como edita Medidas Provisórias com força de Lei (art. 62 da CF), além de poder conceder indulto e comutar penas (art. 84, XII da CF), casos nos quais funciona, na prática, como instância final do Poder Judiciário em matéria de execução penal. Os tribunais criam normas processuais ao disporem sobre o seu regimento interno (art. 96, I, "a" da CF) e o Supremo Tribunal Federal, em particular, exclui do mundo jurídico leis julgadas inconstitucionais (art. 102, I, "a" e 102, § 2º da CF), bem como edita súmulas vinculantes (art. 103-A da CF). E o Senado, por fim, funciona como tribunal ao julgar os crimes de responsabilidade do Presidente da República (art. 52, I da CF).

E nesse aspecto o Brasil não é uma exceção à regra, mas um perfeito exemplo do que ocorre ao redor do mundo. Carlos Maximiliano chegou a afirmar que o princípio da separação dos poderes "caiu em desuso, por falta de correspondência à realidade objetiva". E continua: 

"Tem a sociedade órgãos distintos, autônomos, até independentes; porém não separados. Como no corpo do homem, não há no do Estado isolamento de órgãos, e sim, especialização de funções".

Dito isso, podemos concluir que a experiência política dos povos, não surpreendentemente, não tem se comprometido rigidamente com o dogma racionalista da separação absoluta dos poderes. Pelo contrário, o padrão tem sido o compartilhamento institucional e constitucional de atribuições.

Tudo que foi exposto até aqui, no entanto, diz respeito ao Direito Público positivo; aos compartilhamentos de competências previstos e descritos no texto da nossa Constituição escrita. Mas cabe considerarmos, também, a nossa Constituição não escrita, que se corporifica no que poderíamos chamar de práticas políticas ou institucionais. É o que faremos na subseção seguinte.


O Presidencialismo que se tem praticado no Brasil é um sistema no qual há equilíbrio entre os poderes?

Aqui, o questionamento que nos move é o seguinte: Seriam, as práticas políticas características do Presidencialismo que se pratica no Brasil propiciadoras de um equilíbrio harmonioso entre os poderes no que toca especificamente às funções propriamente de governo, tais como a discussão e implementação de políticas públicas que demandem ações coordenadas do Executivo e do Legislativo?

Começaremos analisando a dinâmica do nosso Presidencialismo de coalizão.

Pois bem, uma vez eleito o Presidente da República com uma coligação que não lhe garanta uma maioria no parlamento (o que tem sido a regra), sua primeira tarefa passa a ser a de formar uma base no Congresso Nacional, atraindo os partidos que não lhe apoiaram durante as eleições com a distribuição de pastas no ministério e de cargos no segundo e terceiro escalões da administração. Selado o apoio, o partido assumirá um ministério ou secretaria e passará a integrar essa entidade que chamamos, no Brasil, de "base aliada", que é o laço que, no nosso sistema, une o Executivo e o Legislativo.

Então, podemos perguntar: Por que os presidencialistas se chocam com a fusão orgânica entre esses poderes quando ela se dá sob o Parlamentarismo e se corporifica na instituição do Gabinete e não se escandalizam quando a união se dá sob o Presidencialismo com o nome de base aliada? Ora, se o gabinete é uma comissão do Legislativo, que exerce as funções executivas com o comando do primeiro-ministro, a base aliada é, do mesmo modo, uma comissão de um poder em outro (do Executivo no Legislativo), que exerce as funções legislativas sob o comando do líder do governo na casa.

E não se diga que a formação de uma base aliada majoritária no Congresso Nacional, situação na qual se pode afirmar, não sem algum exagero, reconhecemos, que o Executivo e o Legislativo são um só, e que aquele controla esse último, pautando-o e direcionando suas ações, seria algo raro ou incomum.

Na verdade, o raro e incomum tem sido as situações nas quais o governo falha em formar uma maioria congressual simpática aos seus projetos. O que temos visto na nossa experiência presidencialista pós-1988 é uma sucessão de governos que formaram coalizões suficientemente sólidas não só para editar leis em sintonia com suas políticas, mas até mesmo para reformar a Constituição em pontos sensíveis e polêmicos, como é o caso das emendas constitucionais 20, de 1998 e 41, de 2003, que reformaram o sistema de previdência dos servidores públicos; da emenda constitucional 45, de 2004, que criou o Conselho Nacional de Justiça, e da emenda constitucional 19, de 1998, que avançou uma reforma administrativa. Portanto, não se trata, a circunstância de que cuidamos, de um arranjo improvável a demandar uma inusitada conjunção de fatores, mas de algo bastante corriqueiro. Mas isso não é tudo.

Além de a formação de uma base aliada majoritária no Congresso Nacional ser a regra no nosso presidencialismo de coalizão, é importante que se diga que esse estado de coisas não é um luxo do qual o governo poderia prescindir, mas um requisito de sobrevivência, eis que um Congresso arredio pode se valer de certos mecanismos (tais como as comissões parlamentares de inquérito) com o fim de paralisá-lo.

A partir dessas constatações, concluímos que além de não ser possível extrair do princípio da separação dos poderes razões conclusivas para se censurar o Parlamentarismo em abstrato; podemos, sim, extrair dele argumentos para criticar o nosso Presidencialismo de coalizão e o desequilíbrio de forças que ele enseja; com o Executivo subjugando, aliciando e pautando o Legislativo, e esse último se apequenando ao vender sua adesão ao preço de cargos e emendas no orçamento, quando não de mensalões ou outras vantagens ilícitas, nos casos em que o governo consegue formar uma base aliada congressual majoritária. E quando não é esse o caso, e o Executivo não forma uma base aliada confiável, o que temos é o surgimento de um impasse institucional, um abraço de afogado entre o Executivo e o Legislativo, conduzindo à anulação mútua desses poderes e à formação de um vácuo que, naturalmente, leva o Judiciário a se mover e ocupar o espaço deixado.

Mas como esse desequilíbrio dos poderes constituídos influi na avaliação que os cidadãos fazem das instituições políticas? E em que medida o descrédito dessas (em especial do Congresso Nacional) influi na discussão sobre o Parlamentarismo? Trataremos, pois, dessas questões.  

O atual descrédito do Congresso Nacional e o desequilíbrio dos Poderes.

Há as resistências ao governo de Gabinete que se fundam, em última análise, em uma desconfiança generalizada com relação às instituições políticas e, em especial, com relação ao Congresso Nacional. Desconfiança que tem sido mensurada e registrada em diversas pesquisas de opinião.

Nesse ponto, paradoxalmente, o fracasso do nosso sistema presidencial (e o desprestígio do Congresso, com a sua transformação em um balcão de negócios é só uma das faces desse fracasso) transforma-se em um óbice à sua substituição.

Ora, o atual descrédito de nossas instituições políticas, é certo, não se deve exclusivamente ao sistema que praticamos, mas isso não nos impede de constatar que a política de aliciamento e de "toma-lá-dá-cá", que lhes são próprias, contribuem decisivamente para esse cenário. A simples formação das coalizões tende a ser vista pelos desavisados não como um imperativo do sistema, mas como uma expressão do fisiologismo dos partidos cooptados, que parecem ter uma fome sem fim de cargos; como uma traição do Presidente eleito, que após uma renhida disputa eleitoral, para a surpresa daqueles - os desavisados - aproxima-se justamente dos grupos com os quais, a pouco, digladiava-se ou, ainda, e isso é mais frequente, como corrupção pura e simples. E não se diga que, nesse caso, o problema não estaria no sistema, mas nas pessoas comuns que não seriam capazes de entendê-lo. Ora, não são as pessoas que têm que estar à altura do sistema, mas o sistema que deve estar à altura das pessoas. Despropositada, portanto, a posição daqueles que fazem odes ao Presidencialismo em abstrato para, logo na sequência, lamentar que os brasileiros é que não são bons o suficiente para ele.

Então, embora seja compreensível que o descrédito das instituições políticas gere uma apatia, quando não uma antipatia, com relação a toda e qualquer reforma política, não faz sentido que aqueles que defendem a adoção do governo de Gabinete tenham que se explicar pelos pecados fomentados ou causados pelo nosso sistema presidencial. Não é razoável que esse descrédito generalizado acabe se transformando em um argumento pró-Presidencialismo, quando, insistimos, boa parte dessa desesperança se deve às mazelas desse mesmo sistema.

Mas vencida essa etapa, passemos à parte histórica do nosso trabalho, na qual enfrentaremos as críticas dos que afirmam que nunca se praticou o sistema de Gabinete durante o segundo reinado, eis que o que se praticava então era o assim chamado "parlamentarismo às avessas".



 PARLAMENTARISMO NO SEGUNDO REINADO                     

De pronto, temos que ponderar que mesmo se restasse demonstrado nunca se ter praticado o Parlamentarismo no Brasil, daí não decorreria que não deveríamos começar a praticá-lo, desde que estejamos de acordo a respeito da sua superioridade quando comparado com o Presidencialismo. Mas, de qualquer forma, nós enfrentaremos o problema formulado e o faremos a partir de um caso concreto: A queda do Gabinete Lafaiete.

Gabinete Lafaiete: Um estudo de caso.

Esse gabinete caiu por não ter o necessário apoio do seu partido na Câmara. E essa falta de apoio sequer chegou a ser materializada na aprovação de um voto de desconfiança. O gabinete se retirou em 03.06.1884, mas desde 06.05.1884 que as relações entre o Governo e a Câmara dos Deputados estavam abaladas em razão da divulgação de carta do Presidente do Conselho de Ministros direcionada ao até então Ministro Rodrigues Júnior, na qual, atribuindo-lhe tibieza, era-lhe dito que ele seria afastado da Pasta da Guerra. Esse mal-estar é registrado nos Anais da Câmara dos Deputados ao longo do mês de maio.

Foi nesse ambiente que o Governo chegou à sessão do dia 03.06.1884, quando seu candidato à Presidência da Câmara saiu-se vencedor com uma margem de apenas dois votos. Percebendo a fraqueza do Gabinete, César Zama, deputado Liberal pela Bahia, pediu que se votasse uma moção de desconfiança, a qual também foi rejeitada, mas - de novo - por uma apertada margem, dessa vez de quatro votos. Bastou isso para que Lafaiete percebesse que já não podia governar, vindo a " no mesmo dia " pedir sua exoneração ao Imperador, o qual, após reunir-se, em separado, com as maiores lideranças do Partido Liberal (Saraiva, Afonso Celso, Sinimbu e Dantas) encarregou esse último de organizar o novo Gabinete.

A queda do Gabinete Lafaiete é, pois, um caso que nos permite tirar as seguintes conclusões sobre o sistema representativo que se praticava no Brasil no final do segundo reinado:

1) Naquela altura, a composição do Governo (a demissão e nomeação de ministros) já era uma atribuição, na prática, privativa do Presidente do Conselho de Ministros, como se conclui da reação do Imperador ao ?apelo? que lhe fizera o Ministro da Guerra Rodrigues Júnior.

2) A confiança da Câmara era essencial para a manutenção do Gabinete. E mesmo vitórias apertadas do Governo em questões importantes poderiam bastar para que esse se retirasse; e

3) Retirado o Gabinete, o Imperador ouvia os principais líderes políticos antes de convidar um parlamentar a formar um novo ministério. O Soberano, portanto, não deliberava sobre a questão sozinho e autoritariamente.

Além disso, os debates que - no ano anterior - suscitara o assassinato do jornalista Apulcho de Castro, outro evento que abalou a credibilidade do gabinete Lafaiete, mostram o quão viva era a disputa pelo convencimento do público. O esforço que o Jornal do Comércio, situacionista, fazia para repelir as acusações do oposicionista Gazeta de Notícias demonstra que longe de ser uma comissão ou extensão do Poder Moderador, habilitado a permanecer no poder enquanto essa manutenção fosse agradável ao Soberano, o Gabinete conferia peso e importância àquilo que o Visconde de Ouro Preto designaria de "razão pública". É que se disseminou a opinião segundo a qual as autoridades responsáveis pela segurança pública da corte teriam falhado ao tratar dos incidentes que levaram ao assassinato daquele jornalista. Essas autoridades, lembramos, eram subordinadas ao Ministro da Guerra.

Os acontecimentos da Rua do Lavradio foram analisados e esmiuçados em diversas edições da Gazeta de Notícias entre o fim de outubro e meados de novembro de 1883.

Acusações que foram respondidas pelo próprio Rui Barbosa, o maior e mais bem equipado polemista do Partido Liberal, no Jornal do Comércio.

O peso da Opinião Pública.

Ora, qual seria o sentido de se gastar tanto latim, de se despejar tanta tinta em bom papel para se demonstrar que o Gabinete andou bem ou mal, foi diligente ou relapso, se o sustentáculo exclusivo ou, quando menos, preponderante para a manutenção do Governo fosse a pura e simples confiança do Imperador? Essas arengas públicas indicam, pelo contrário, que naquela altura a duração e a força dos Gabinetes variavam conforme variava a adesão da opinião pública, tal como registrada pela Câmara dos Deputados.

Admitimos que durante o segundo reinado a Coroa foi, algumas vezes, não apenas um árbitro, mas um jogador (e um importante) no tabuleiro político. Essas atitudes tendenciosas ou dirigistas, como a ostensivamente tomada para acelerar a implementação da abolição incondicional e sem indenização, todavia, não foram tão frequentes como se poderia supor. Em minucioso artigo, Sérgio Ferraz (2013) destrincha, a partir da leitura de historiadores e fontes primárias, os motivos das quedas dos 37 Gabinetes do segundo reinado. Nele, o autor chega à conclusão de que em 51,3% das retiradas dos governos essas se deram por motivos exclusivamente parlamentares e sem qualquer intromissão da Coroa. E em apenas 27% dos casos o ministério caiu por exclusiva decisão do Imperador.

Foi a propaganda republicana, e a sua narrativa do "poder pessoal", responsável por boa parte da desinformação que se espalhou sobre o segundo reinado. A imagem do tirano que, fingindo conceder poder e autoridade à Câmara dos Deputados, nada mais fazia senão dirigir com punho de ferro os destinos da nação, estabelecendo, assim, um "parlamentarismo às avessas" simplesmente não condiz com a realidade dos fatos.

Os avanços da Coroa sobre a política partidária, provocando, em alguns casos, a derrubada de Gabinetes que contavam, ainda, com o apoio da maioria da Câmara dos Deputados desnaturaria o parlamentarismo, transformando-o em um outro regime? Se esse for o caso, então temos de concordar não ter havido Parlamentarismo na Inglaterra até 1835, ano no qual, de maneira precipitada, Guilherme IV demitiu um governo Whig nas mesmas condições.

E mais.

O poder que formalmente derivava do Moderador, de dissolver a Câmara dos Deputados nos casos, em que o exigisse a salvação do Estado (conforme dispunha o art. 101, inciso V da Constituição do Império) descaracterizaria o Parlamentarismo praticado no segundo reinado, transformando-o em um terceiro gênero entre o Presidencialismo e o Parlamentarismo, ou em um "Parlamentarismo às avessas"? Se também respondermos positivamente a essa pergunta, então temos que concluir que não se praticou esse sistema na Inglaterra até o ano de 2011, quando só então, com a Lei dos Parlamentos com Termo Fixo, extinguiu-se, do ponto de vista formal, essa prerrogativa da Coroa.

O sistema representativo que se praticou e se consolidou evolutivamente ao longo do segundo reinado foi o parlamentar. Um Parlamentarismo que contou com um Soberano que foi, em alguns momentos, mais ativo e centralizador do que convinha, mas, ainda assim, um Parlamentarismo.


CONCLUSÃO E RESPOSTA AOS DIVERSIONISTAS


Nesse ponto do nosso estudo, podemos concluir o seguinte: 

a) Não é possível se extrair do dogma da separação dos poderes razões conclusivas contrárias à adoção do sistema parlamentar em abstrato; 

b) O fracasso do nosso Presidencialismo de coalizão, paradoxalmente, tem contribuído decisivamente para a sua manutenção, eis que tem gerado um ambiente de descrédito generalizado com relação à política como um todo e de ceticismo ou antipatia quanto ao avanço de reformas políticas e 

c) Praticou-se o sistema de Gabinete no Império, durante o segundo reinado.

Essas ponderações até aqui apresentadas, todavia, não enfrentam objeções outras à adoção do governo de Gabinete que, por não ferirem o mérito da contenda, nós chamamos de diversionistas.

Aqueles que adotam a estratégia diversionista de defesa do sistema presidencial opõem à discussão sobre a implementação do sistema de Gabinete no Brasil a necessidade de serem enfrentados muitos e graves problemas nacionais, tais como a violência urbana, o crítico estado da saúde pública, a morosidade da justiça, o desequilíbrio fiscal, o crescimento desordenado das grandes cidades, as diversas tensões que colocam frente a frente diversos grupos organizados e antagônicos, como ruralistas e ambientalistas; armamentistas e desarmamentistas; sindicalistas e empresários e etc. São essas, e muitas outras, o que chamam de "questões de fundo"; ao passo que a discussão sobre o sistema de governo seria meramente "formal".

Diante de tantas tarefas prementes a serem administradas, sofismam alguns, não seria a problematização do sistema de governo uma querela demasiado técnica e, por que não dizer, alheia aos problemas concretos das pessoas de carne e osso? Seria, enfim, oportuno tratar disso agora?

Bem, esse argumento contra a mera discussão do Parlamentarismo começa por ser falacioso ao nos propor uma falsa dicotomia. É ela: Ou bem nos voltamos para o debate da mudança do sistema de governo; ou abordamos os tais problemas de fundo, eis que tratar das duas coisas ao mesmo tempo seria impossível. No entanto, isso simplesmente não é verdadeiro. Temas de forma e de conteúdo podem e devem ser enfrentados simultaneamente nos foros políticos competentes. Certamente não são os parlamentaristas que obstruem a discussão e adiam a resolução desses importantes temas (até hoje pendentes mesmo depois de 126 anos de Presidencialismo, diga-se de passagem).

Além disso, um outro problema da posição diversionista é o seguinte. É muito forçada a distinção entre conteúdo e forma; e apressada a descrição do parlamentarista como sendo um mero formalista. Nas palavras de Raul Pila, em um sistema parlamentarista, em razão da responsabilidade que lhe é inerente, o que se espera é justamente que "(...) os governantes enfrentem os problemas nacionais, ou confessem logo não os poder resolver, a outras mãos mais capazes entregando a árdua tarefa" (1999, p. 320)

Mas é óbvio que não se pode passar da tese de que o parlamentarista seria indiferente ao enfrentamento dos problemas de fundo à tese de que seria o parlamentarismo, ele próprio e independentemente de qualquer outra circunstância, a solução de todos os problemas nacionais, pois de fato ele não é.


Na verdade, não sustentam os parlamentaristas que a adoção desse sistema seria a solução definitiva para todos os problemas nacionais. Antes, defendem a superioridade desse sistema sobre o presidencial que se tem praticado no Brasil. E mais especificamente, advogam que os institutos das eleições antecipadas (mediante a dissolução da casa do parlamento perante a qual o Gabinete responde) e do voto de desconfiança aperfeiçoariam nossa combalida democracia. Não se trata, portanto, de se chegar ao "melhor dos mundos", mas de se abandonar um sistema ruim, adotando um outro melhor.

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