Haroldo Augusto da
Silva Teixeira Duarte
Uma saída exótica e contrária ao dogma da separação dos poderes?
A primeira, dogmático-jurídica, é a seguinte: A fusão do
Legislativo com o Executivo, representada e corporificada no Gabinete, não
implicaria o risco de um país parlamentarista se degenerar em uma tirania?
Afinal de contas, não está escrito no preâmbulo da constituição francesa de
1791 que " Toda Sociedade na qual não é assegurada a garantia dos
direitos, nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição"?
Não afirmaram, e afirmam ainda, publicistas de renome que "sem a separação
dos poderes não há senão o devotismo"? Enfim, seria - de algum modo - a
relativização do princípio da separação dos poderes perniciosa ou daninha? Um
flanco aberto na democracia que, em que pese inócuo em regimes consolidados
como o britânico, poderia produzir resultado catastróficos na nossa jovem e
malparada república?
A segunda crítica é a de que esse sistema não se
compatibilizaria com o temperamento nacional. Logo, sua adoção nessas terras
seria algo um tanto artificial ou exótico. A partir de tais questionamentos,
alguns defensores do sistema presidencial chegam a afirmar que nunca se
praticou o governo de Gabinete no Brasil (nem mesmo durante o segundo reinado).
Esse é o suposto dado histórico que pretendemos problematizar na segunda parte
desse trabalho.
PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES.
Primeiro, devemos reconhecer que, de fato, a fusão dos
poderes Executivo e Legislativo é uma importante marca do sistema de
Gabinete.
Mas dito isso, temos que relembrar a seguinte ponderação do
juiz Oliver Wendell Homes Jr.: "Proposições gerais não decidem casos
concretos". Portanto, se se trata de avaliar os prós e contras de um
dado arranjo dos poderes constituídos, dogmas abstratos ? como o da separação
dos poderes ? dificilmente possuirão a força de uma razão conclusiva.
Mas isso não basta para sepultarmos o assunto. É que ainda
se pode perguntar o seguinte: Mesmo que não se trate de um preceito com força
de razão conclusiva, não teria o princípio da separação dos poderes algo de
verdadeiro e útil a ser ao menos levado em conta pelo analista? E, se esse for
o caso, não decorreria daí que se observarmos a questão sob o prisma desse
princípio devemos concluir que o Presidencialismo seria um sistema mais
perfeito do que o governo de Gabinete?
A limitação do Poder pelo Poder.
Pois bem, cremos que existe sim algo de verdadeiro nesse
princípio: A ideia de que a separação dos poderes é menos nociva à liberdade
individual do que a sua concentração. No entanto, isso é verdadeiro pelo
seguinte motivo: Com a divisão do poder, cria-se um ambiente no qual o próprio
poder limitará e fiscalizará o poder. Mas, ainda assim, não vemos como extrair
daí uma censura ao sistema parlamentar, pois em que pese o Gabinete seja o laço
a unir o Executivo e o Legislativo, existem nesse sistema mecanismos que
garantem a limitação do poder pelo poder: o voto de desconfiança, através do
qual o parlamento pode derrubar o Gabinete e a dissolução do parlamento,
através da qual o Gabinete tem a chance de, caso a opinião pública lhe seja
favorável, obter um Legislativo menos arredio ao seu programa de governo.
Além disso, todos os mecanismos de fiscalização e controle
hoje existentes no Congresso, como as Comissões Parlamentares de Inquérito, a
convocação de Ministros e o julgamento das contas do Governo, continuariam a
existir.
Não custa, de todo modo, fazer as seguintes considerações
sobre o histórico do princípio de que cuidamos.
Histórico do dogma da separação dos poderes.
Sua versão moderna foi formulada por Montesquieu no seu O
Espírito das Leis (1748) a partir de reflexões - vejam que ironia - propiciadas
por uma viagem à Inglaterra entre 1729 e 1730. Já então havia, naquele país,
mais liberdade do que na França do antigo regime. E ao analisar as instituições
inglesas no capítulo "A constituição da Inglaterra" o autor concluiu
que isso se devia ao exercício das funções do Estado por diferentes corpos de
agentes públicos. Com o sucesso do livro de Montesquieu, o princípio da
separação dos poderes se estabeleceu, no século XVIII, como uma fórmula contra
a tirania.
Já o sistema Westminster tal como o conhecemos, é dizer,
como um sistema de mecanismos de democracia representativa, só se formaria ao
longo do século seguinte com a organização dos partidos políticos e a
edição de Leis eleitorais que ampliaram progressivamente o sufrágio.
O que significa dizer que a experiência parlamentarista que
exsurgiu na democracia representativa britânica não pode ser validamente
censurada com base no dogma da separação dos poderes. Antes, temos elementos
para, com base na experiência britânica, questionar a autoridade e pertinência
daquele dogma.
Além disso, simplesmente não se verificou, até aqui, um só
país onde existisse uma absoluta separação dos poderes. É disso que trataremos
a seguir.
A separação dos poderes na prática.
Vejamos o caso do Brasil: O Executivo participa do processo
legislativo por meio do veto ou sanção (art. 66 da Constituição Federal - CF),
bem como edita Medidas Provisórias com força de Lei (art. 62 da CF), além de
poder conceder indulto e comutar penas (art. 84, XII da CF), casos nos quais
funciona, na prática, como instância final do Poder Judiciário em matéria de
execução penal. Os tribunais criam normas processuais ao disporem sobre o seu
regimento interno (art. 96, I, "a" da CF) e o Supremo Tribunal
Federal, em particular, exclui do mundo jurídico leis julgadas
inconstitucionais (art. 102, I, "a" e 102, § 2º da CF), bem como
edita súmulas vinculantes (art. 103-A da CF). E o Senado, por fim, funciona
como tribunal ao julgar os crimes de responsabilidade do Presidente da
República (art. 52, I da CF).
E nesse aspecto o Brasil não é uma exceção à regra, mas um
perfeito exemplo do que ocorre ao redor do mundo. Carlos Maximiliano chegou a
afirmar que o princípio da separação dos poderes "caiu em desuso, por
falta de correspondência à realidade objetiva". E continua:
"Tem a
sociedade órgãos distintos, autônomos, até independentes; porém não separados.
Como no corpo do homem, não há no do Estado isolamento de órgãos, e sim, especialização
de funções".
Dito isso, podemos concluir que a experiência política dos
povos, não surpreendentemente, não tem se comprometido rigidamente com o dogma
racionalista da separação absoluta dos poderes. Pelo contrário, o padrão tem
sido o compartilhamento institucional e constitucional de atribuições.
Tudo que foi exposto até aqui, no entanto, diz respeito ao
Direito Público positivo; aos compartilhamentos de competências previstos e
descritos no texto da nossa Constituição escrita. Mas cabe considerarmos,
também, a nossa Constituição não escrita, que se corporifica no que poderíamos
chamar de práticas políticas ou institucionais. É o que faremos na subseção
seguinte.
O Presidencialismo que se tem praticado no Brasil é um
sistema no qual há equilíbrio entre os poderes?
Aqui, o questionamento que nos move é o seguinte: Seriam, as
práticas políticas características do Presidencialismo que se pratica no Brasil
propiciadoras de um equilíbrio harmonioso entre os poderes no que toca
especificamente às funções propriamente de governo, tais como a discussão e
implementação de políticas públicas que demandem ações coordenadas do Executivo
e do Legislativo?
Começaremos analisando a dinâmica do nosso Presidencialismo
de coalizão.
Pois bem, uma vez eleito o Presidente da República com uma
coligação que não lhe garanta uma maioria no parlamento (o que tem sido a
regra), sua primeira tarefa passa a ser a de formar uma base no Congresso
Nacional, atraindo os partidos que não lhe apoiaram durante as eleições com a
distribuição de pastas no ministério e de cargos no segundo e terceiro escalões
da administração. Selado o apoio, o partido assumirá um ministério ou
secretaria e passará a integrar essa entidade que chamamos, no Brasil, de
"base aliada", que é o laço que, no nosso sistema, une o Executivo e
o Legislativo.
Então, podemos perguntar: Por que os presidencialistas se
chocam com a fusão orgânica entre esses poderes quando ela se dá sob o
Parlamentarismo e se corporifica na instituição do Gabinete e não se
escandalizam quando a união se dá sob o Presidencialismo com o nome de base
aliada? Ora, se o gabinete é uma comissão do Legislativo, que exerce as funções
executivas com o comando do primeiro-ministro, a base aliada é, do mesmo modo,
uma comissão de um poder em outro (do Executivo no Legislativo), que exerce as
funções legislativas sob o comando do líder do governo na casa.
E não se diga que a formação de uma base aliada majoritária
no Congresso Nacional, situação na qual se pode afirmar, não sem algum exagero,
reconhecemos, que o Executivo e o Legislativo são um só, e que aquele controla
esse último, pautando-o e direcionando suas ações, seria algo raro ou incomum.
Na verdade, o raro e incomum tem sido as situações nas quais
o governo falha em formar uma maioria congressual simpática aos seus projetos.
O que temos visto na nossa experiência presidencialista pós-1988 é uma sucessão
de governos que formaram coalizões suficientemente sólidas não só para editar
leis em sintonia com suas políticas, mas até mesmo para reformar a Constituição
em pontos sensíveis e polêmicos, como é o caso das emendas constitucionais 20,
de 1998 e 41, de 2003, que reformaram o sistema de previdência dos servidores
públicos; da emenda constitucional 45, de 2004, que criou o Conselho Nacional
de Justiça, e da emenda constitucional 19, de 1998, que avançou uma reforma
administrativa. Portanto, não se trata, a circunstância de que cuidamos, de um
arranjo improvável a demandar uma inusitada conjunção de fatores, mas de algo
bastante corriqueiro. Mas isso não é tudo.
Além de a formação de uma base aliada majoritária no
Congresso Nacional ser a regra no nosso presidencialismo de coalizão, é
importante que se diga que esse estado de coisas não é um luxo do qual o
governo poderia prescindir, mas um requisito de sobrevivência, eis que um
Congresso arredio pode se valer de certos mecanismos (tais como as comissões
parlamentares de inquérito) com o fim de paralisá-lo.
A partir dessas constatações, concluímos que além de não ser
possível extrair do princípio da separação dos poderes razões conclusivas para
se censurar o Parlamentarismo em abstrato; podemos, sim, extrair dele
argumentos para criticar o nosso Presidencialismo de coalizão e o desequilíbrio
de forças que ele enseja; com o Executivo subjugando, aliciando e pautando o
Legislativo, e esse último se apequenando ao vender sua adesão ao preço de
cargos e emendas no orçamento, quando não de mensalões ou outras vantagens
ilícitas, nos casos em que o governo consegue formar uma base aliada
congressual majoritária. E quando não é esse o caso, e o Executivo não forma
uma base aliada confiável, o que temos é o surgimento de um impasse
institucional, um abraço de afogado entre o Executivo e o Legislativo,
conduzindo à anulação mútua desses poderes e à formação de um vácuo que,
naturalmente, leva o Judiciário a se mover e ocupar o espaço deixado.
Mas como esse desequilíbrio dos poderes constituídos influi
na avaliação que os cidadãos fazem das instituições políticas? E em que medida
o descrédito dessas (em especial do Congresso Nacional) influi na discussão
sobre o Parlamentarismo? Trataremos, pois, dessas questões.
O atual descrédito do Congresso Nacional e o
desequilíbrio dos Poderes.
Há as resistências ao governo de Gabinete que se fundam, em
última análise, em uma desconfiança generalizada com relação às instituições
políticas e, em especial, com relação ao Congresso Nacional. Desconfiança que
tem sido mensurada e registrada em diversas pesquisas de opinião.
Nesse ponto, paradoxalmente, o fracasso do nosso sistema
presidencial (e o desprestígio do Congresso, com a sua transformação em um
balcão de negócios é só uma das faces desse fracasso) transforma-se em um óbice
à sua substituição.
Ora, o atual descrédito de nossas instituições políticas, é
certo, não se deve exclusivamente ao sistema que praticamos, mas isso não nos
impede de constatar que a política de aliciamento e de
"toma-lá-dá-cá", que lhes são próprias, contribuem decisivamente para
esse cenário. A simples formação das coalizões tende a ser vista pelos
desavisados não como um imperativo do sistema, mas como uma expressão do
fisiologismo dos partidos cooptados, que parecem ter uma fome sem fim de
cargos; como uma traição do Presidente eleito, que após uma renhida disputa
eleitoral, para a surpresa daqueles - os desavisados - aproxima-se justamente
dos grupos com os quais, a pouco, digladiava-se ou, ainda, e isso é mais
frequente, como corrupção pura e simples. E não se diga que, nesse caso, o
problema não estaria no sistema, mas nas pessoas comuns que não seriam capazes
de entendê-lo. Ora, não são as pessoas que têm que estar à altura do sistema,
mas o sistema que deve estar à altura das pessoas. Despropositada, portanto, a
posição daqueles que fazem odes ao Presidencialismo em abstrato para, logo na
sequência, lamentar que os brasileiros é que não são bons o suficiente para
ele.
Então, embora seja compreensível que o descrédito das
instituições políticas gere uma apatia, quando não uma antipatia, com relação a
toda e qualquer reforma política, não faz sentido que aqueles que defendem a
adoção do governo de Gabinete tenham que se explicar pelos pecados fomentados
ou causados pelo nosso sistema presidencial. Não é razoável que esse descrédito
generalizado acabe se transformando em um argumento pró-Presidencialismo,
quando, insistimos, boa parte dessa desesperança se deve às mazelas desse mesmo
sistema.
Mas vencida essa etapa, passemos à parte histórica do nosso
trabalho, na qual enfrentaremos as críticas dos que afirmam que nunca se
praticou o sistema de Gabinete durante o segundo reinado, eis que o que se
praticava então era o assim chamado "parlamentarismo às avessas".
PARLAMENTARISMO NO SEGUNDO REINADO
De pronto, temos que ponderar que mesmo se restasse
demonstrado nunca se ter praticado o Parlamentarismo no Brasil, daí não
decorreria que não deveríamos começar a praticá-lo, desde que estejamos de
acordo a respeito da sua superioridade quando comparado com o Presidencialismo.
Mas, de qualquer forma, nós enfrentaremos o problema formulado e o faremos a
partir de um caso concreto: A queda do Gabinete Lafaiete.
Gabinete Lafaiete: Um estudo de caso.
Esse gabinete caiu por não ter o necessário apoio do seu
partido na Câmara. E essa falta de apoio sequer chegou a ser materializada na
aprovação de um voto de desconfiança. O gabinete se retirou em 03.06.1884, mas
desde 06.05.1884 que as relações entre o Governo e a Câmara dos Deputados
estavam abaladas em razão da divulgação de carta do Presidente do Conselho de
Ministros direcionada ao até então Ministro Rodrigues Júnior, na qual,
atribuindo-lhe tibieza, era-lhe dito que ele seria afastado da Pasta da Guerra.
Esse mal-estar é registrado nos Anais da Câmara dos Deputados ao longo do mês
de maio.
Foi nesse ambiente que o Governo chegou à sessão do dia
03.06.1884, quando seu candidato à Presidência da Câmara saiu-se vencedor com
uma margem de apenas dois votos. Percebendo a fraqueza do Gabinete, César Zama,
deputado Liberal pela Bahia, pediu que se votasse uma moção de desconfiança, a
qual também foi rejeitada, mas - de novo - por uma apertada margem, dessa vez
de quatro votos. Bastou isso para que Lafaiete percebesse que já não podia
governar, vindo a " no mesmo dia " pedir sua exoneração ao Imperador,
o qual, após reunir-se, em separado, com as maiores lideranças do Partido
Liberal (Saraiva, Afonso Celso, Sinimbu e Dantas) encarregou esse último de
organizar o novo Gabinete.
A queda do Gabinete Lafaiete é, pois, um caso que nos
permite tirar as seguintes conclusões sobre o sistema representativo que se
praticava no Brasil no final do segundo reinado:
1) Naquela altura, a composição do Governo (a demissão e
nomeação de ministros) já era uma atribuição, na prática, privativa do
Presidente do Conselho de Ministros, como se conclui da reação do Imperador ao
?apelo? que lhe fizera o Ministro da Guerra Rodrigues Júnior.
2) A confiança da Câmara era essencial para a manutenção do
Gabinete. E mesmo vitórias apertadas do Governo em questões importantes
poderiam bastar para que esse se retirasse; e
3) Retirado o Gabinete, o Imperador ouvia os principais
líderes políticos antes de convidar um parlamentar a formar um novo ministério.
O Soberano, portanto, não deliberava sobre a questão sozinho e
autoritariamente.
Além disso, os debates que - no ano anterior - suscitara o
assassinato do jornalista Apulcho de Castro, outro evento que abalou a
credibilidade do gabinete Lafaiete, mostram o quão viva era a disputa pelo
convencimento do público. O esforço que o Jornal do Comércio, situacionista,
fazia para repelir as acusações do oposicionista Gazeta de Notícias demonstra
que longe de ser uma comissão ou extensão do Poder Moderador, habilitado a
permanecer no poder enquanto essa manutenção fosse agradável ao Soberano, o
Gabinete conferia peso e importância àquilo que o Visconde de Ouro Preto
designaria de "razão pública". É que se disseminou a opinião
segundo a qual as autoridades responsáveis pela segurança pública da corte
teriam falhado ao tratar dos incidentes que levaram ao assassinato daquele
jornalista. Essas autoridades, lembramos, eram subordinadas ao Ministro da
Guerra.
Os acontecimentos da Rua do Lavradio foram analisados e
esmiuçados em diversas edições da Gazeta de Notícias entre o fim de outubro e
meados de novembro de 1883.
Acusações que foram respondidas pelo próprio Rui Barbosa, o
maior e mais bem equipado polemista do Partido Liberal, no Jornal do
Comércio.
O peso da Opinião Pública.
Ora, qual seria o sentido de se gastar tanto latim, de se
despejar tanta tinta em bom papel para se demonstrar que o Gabinete andou bem
ou mal, foi diligente ou relapso, se o sustentáculo exclusivo ou, quando menos,
preponderante para a manutenção do Governo fosse a pura e simples confiança do
Imperador? Essas arengas públicas indicam, pelo contrário, que naquela altura a
duração e a força dos Gabinetes variavam conforme variava a adesão da opinião
pública, tal como registrada pela Câmara dos Deputados.
Admitimos que durante o segundo reinado a Coroa foi, algumas
vezes, não apenas um árbitro, mas um jogador (e um importante) no tabuleiro
político. Essas atitudes tendenciosas ou dirigistas, como a ostensivamente
tomada para acelerar a implementação da abolição incondicional e sem
indenização, todavia, não foram tão frequentes como se poderia supor. Em
minucioso artigo, Sérgio Ferraz (2013) destrincha, a partir da leitura de
historiadores e fontes primárias, os motivos das quedas dos 37 Gabinetes do segundo
reinado. Nele, o autor chega à conclusão de que em 51,3% das retiradas dos
governos essas se deram por motivos exclusivamente parlamentares e sem qualquer
intromissão da Coroa. E em apenas 27% dos casos o ministério caiu por exclusiva
decisão do Imperador.
Foi a propaganda republicana, e a sua narrativa do
"poder pessoal", responsável por boa parte da desinformação que se
espalhou sobre o segundo reinado. A imagem do tirano que, fingindo conceder
poder e autoridade à Câmara dos Deputados, nada mais fazia senão dirigir com
punho de ferro os destinos da nação, estabelecendo, assim, um
"parlamentarismo às avessas" simplesmente não condiz com a realidade
dos fatos.
Os avanços da Coroa sobre a política partidária, provocando,
em alguns casos, a derrubada de Gabinetes que contavam, ainda, com o apoio da
maioria da Câmara dos Deputados desnaturaria o parlamentarismo,
transformando-o em um outro regime? Se esse for o caso, então temos de
concordar não ter havido Parlamentarismo na Inglaterra até 1835, ano no qual,
de maneira precipitada, Guilherme IV demitiu um governo Whig nas mesmas
condições.
E mais.
O poder que formalmente derivava do Moderador, de dissolver
a Câmara dos Deputados nos casos, em que o exigisse a salvação do Estado (conforme
dispunha o art. 101, inciso V da Constituição do Império) descaracterizaria o
Parlamentarismo praticado no segundo reinado, transformando-o em um terceiro
gênero entre o Presidencialismo e o Parlamentarismo, ou em um
"Parlamentarismo às avessas"? Se também respondermos positivamente a
essa pergunta, então temos que concluir que não se praticou esse sistema na
Inglaterra até o ano de 2011, quando só então, com a Lei dos Parlamentos com
Termo Fixo, extinguiu-se, do ponto de vista formal, essa prerrogativa da
Coroa.
O sistema representativo que se praticou e se consolidou
evolutivamente ao longo do segundo reinado foi o parlamentar. Um
Parlamentarismo que contou com um Soberano que foi, em alguns momentos, mais
ativo e centralizador do que convinha, mas, ainda assim, um Parlamentarismo.
CONCLUSÃO E RESPOSTA AOS DIVERSIONISTAS
Nesse ponto do nosso estudo, podemos concluir o seguinte:
a)
Não é possível se extrair do dogma da separação dos poderes razões conclusivas
contrárias à adoção do sistema parlamentar em abstrato;
b) O fracasso do nosso
Presidencialismo de coalizão, paradoxalmente, tem contribuído decisivamente
para a sua manutenção, eis que tem gerado um ambiente de descrédito
generalizado com relação à política como um todo e de ceticismo ou antipatia
quanto ao avanço de reformas políticas e
c) Praticou-se o sistema de Gabinete
no Império, durante o segundo reinado.
Essas ponderações até aqui apresentadas, todavia, não
enfrentam objeções outras à adoção do governo de Gabinete que, por não ferirem
o mérito da contenda, nós chamamos de diversionistas.
Aqueles que adotam a estratégia diversionista de defesa do
sistema presidencial opõem à discussão sobre a implementação do sistema de
Gabinete no Brasil a necessidade de serem enfrentados muitos e graves problemas
nacionais, tais como a violência urbana, o crítico estado da saúde pública, a
morosidade da justiça, o desequilíbrio fiscal, o crescimento desordenado das
grandes cidades, as diversas tensões que colocam frente a frente diversos
grupos organizados e antagônicos, como ruralistas e ambientalistas;
armamentistas e desarmamentistas; sindicalistas e empresários e etc. São essas,
e muitas outras, o que chamam de "questões de fundo"; ao passo que a
discussão sobre o sistema de governo seria meramente "formal".
Diante de tantas tarefas prementes a serem administradas,
sofismam alguns, não seria a problematização do sistema de governo uma querela
demasiado técnica e, por que não dizer, alheia aos problemas concretos das
pessoas de carne e osso? Seria, enfim, oportuno tratar disso agora?
Bem, esse argumento contra a mera discussão do
Parlamentarismo começa por ser falacioso ao nos propor uma falsa dicotomia. É
ela: Ou bem nos voltamos para o debate da mudança do sistema de governo; ou
abordamos os tais problemas de fundo, eis que tratar das duas coisas ao mesmo
tempo seria impossível. No entanto, isso simplesmente não é verdadeiro. Temas
de forma e de conteúdo podem e devem ser enfrentados simultaneamente nos foros
políticos competentes. Certamente não são os parlamentaristas que obstruem a
discussão e adiam a resolução desses importantes temas (até hoje pendentes
mesmo depois de 126 anos de Presidencialismo, diga-se de passagem).
Além disso, um outro problema da posição diversionista é o
seguinte. É muito forçada a distinção entre conteúdo e forma; e apressada a
descrição do parlamentarista como sendo um mero formalista. Nas palavras de
Raul Pila, em um sistema parlamentarista, em razão da responsabilidade que lhe
é inerente, o que se espera é justamente que "(...) os governantes
enfrentem os problemas nacionais, ou confessem logo não os poder resolver, a
outras mãos mais capazes entregando a árdua tarefa" (1999, p. 320)
Mas é óbvio que não se pode passar da tese de que o
parlamentarista seria indiferente ao enfrentamento dos problemas de fundo à
tese de que seria o parlamentarismo, ele próprio e independentemente de
qualquer outra circunstância, a solução de todos os problemas nacionais,
pois de fato ele não é.
Na verdade, não sustentam os parlamentaristas que a adoção
desse sistema seria a solução definitiva para todos os problemas nacionais.
Antes, defendem a superioridade desse sistema sobre o presidencial que se tem
praticado no Brasil. E mais especificamente, advogam que os institutos das
eleições antecipadas (mediante a dissolução da casa do parlamento perante a
qual o Gabinete responde) e do voto de desconfiança aperfeiçoariam nossa
combalida democracia. Não se trata, portanto, de se chegar ao "melhor dos
mundos", mas de se abandonar um sistema ruim, adotando um outro melhor.
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