Transformar em realidade o sonho de independência de Tiradentes, mantendo o país unido, não foi obra fácil. A comemoração dos 170 anos de nossa Independência, neste mês de setembro (1992), é uma boa oportunidade para revermos a ótica unidimensional e não raro distorcida com que é freqüentemente apresentado o personagem principal daquele 7 de Setembro de 1822 Pedro I.
Sua história tem o fascínio dos romances dos cavaleiros andantes, daqueles que em sua passagem abrem novos horizontes e criam novos mundos. O nascimento, em 1798, na sala Dom Quixote, do Palácio de Queluz, próximo a Lisboa, era já prenúncio de suas múltiplas andanças. Muito jovem ainda, com apenas nove anos, atravessou o Atlântico junto com sua família, que transmigrou para o Brasil por sábia decisão de seu pai, o futuro Dom João VI. Foi criado no bairro de São Cristóvão, em contato direto com todos os segmentos da sociedade. Conheceu o povo de alto a baixo. Assim, aprendeu a amar a nova terra e a se fazer querido junto à população. Mas, afinal, quem foi Dom Pedro I?
A História oficial tem sido parcial em seus registros. Prefere a superfície à substância. O retrato que nos mostra não é de corpo inteiro. Com freqüência, acentua o lado impulsivo, apaixonado e por vezes autoritário de Pedro I, como se sua figura histórica não passasse de um monte de emoções desconexas.
Costuma deixar de fora quase tudo que ultrapassa sua dimensão romântica. Pouco se fala do homem que se identificou abertamente com as idéias liberais de seu tempo, a ponto de ser contra a escravidão e a favor do trabalho assalariado, por entender que o instituto servil corrompia não só o escravo mas, também, o senhor; do músico, que teve uma abertura sua regida pelo grande Rossini; do general de gênio, que soube conduzir brilhantemente a campanha constitucionalista contra Dom Miguel, seu irmão absolutista, e do legislador, que deixou sua marca em duas dentre as primeiras cartas constitucionais adotadas no mundo, a nossa e a portuguesa.
Pedro I foi também e muito marcado pelo signo da dualidade. Ao se fazer esta afirmação, não se quer desculpá-lo, mas, sem ter isto claro, é impossível compreender o modo como atuou em nossa história. Foi, de fato, política, geográfica e até fisicamente dividido. No plano político, ele sofreu os efeitos de ter sido criado na tradição absolutista portuguesa e de ter feito uma opção constitucional.
Na geografia, um oceano separava o Brasil de Portugal. As implicações geopolíticas eram claras, trazendo à tona a dificuldade, se não a impossibilidade de manter os dois países unidos. Fisicamente, nem mesmo a morte livrou Pedro I da dualidade. Seu coração está depositado em Portugal, e os ossos foram trazidos para sua outra pátria, o Brasil, mais precisamente para a cidade de São Paulo.
Se ele, por vezes, errava no varejo, nunca se equivocou no atacado. Nos grandes momentos de sua vida, soube fazer a opção correta.
Nunca se prestou à inglória tarefa de tentar fazer retroceder os ponteiros da História. Caminhou e ajudou a caminhar na direção certa.
Foi assim no memorável dia do Fico, em que não fugiu à responsabilidade, em que não se omitiu perante a terra que o acolhera em plena adolescência e juventude. Assim foi quando preferiu proclamar nossa independência a reduzir o Brasil novamente à humilhante condição de colônia, como queriam as cortes portuguesas.
Foi assim quando preferiu aceitar o princípio da limitação do poder real a continuar nas vias tortuosas do absolutismo. Assim foi quando preferiu abdicar, em 1831, a jogar o Brasil numa provável guerra civil. E foi assim, ainda uma vez mais, quando não titubeou em dar combate armado ao absolutismo de seu próprio irmão para que a Constituição portuguesa não se transformasse num pedaço de papel rasgado.
Mas este homem, que homenageamos a cada 7 de setembro, fez muito mais do que simplesmente proclamar nossa independência. Empenhou-se em construir instituições que pudessem dar solidez à nova nação que surgia no concerto das demais. Refiro-me aqui a um capítulo muito especial da biografia de Pedro I: a Constituição que nos legou. Visões simplistas preferem desmerecê-la por ter sido outorgada e não promulgada. Este, entretanto, não é o cerne da questão.
O que importa saber, a respeito de qualquer texto constitucional, é se ele dispõe de instrumentos eficazes na cobrança de responsabilidade e de punição dos desmandos perpetrados pelos governantes de um país, vale dizer, por aqueles cuja obrigação é defender e resguardar o interesse público. É isto que separa o faz-de-conta da coisa séria. Foi certamente por reconhecer que nossa Carta Imperial dispunha desses dispositivos que o insuspeito Afonso Arinos afirmou ter sido ela a melhor Constituição que o país já teve.
O momento histórico ora vivido por todos nós deixa à mostra as feias entranhas da República. A ausência de regras ágeis para administrar as crises comprova, mais uma vez, sua incompetência institucional. As distorções são de tal ordem que muitos aceitam o engodo de que é preciso em cartório a culpa do presidente. Esquecem que governo é questão de confiança. Uma vez perdida a confiança, o governo, o gabinete, não teria mais como sobreviver.
Os países mais avançados do mundo atual não abrem mão deste princípio. Afinal, poder bom é poder fiscalizado e prontamente punido, quando necessário. Nossa Constituição Imperial, ao admitir a dissolução da Câmara dos Deputados, com a convocação imediata de novas eleições, permitia a rápida e incruenta destituição dos maus governos. Este dispositivo eliminava, no nascedouro, os malefícios que tais governos certamente causariam e operacionalizava, com um século de antecedência, proposta semelhante desenvolvida por Karl Popper como sendo a única realmente capaz de preservar o interesse público. Em poucas palavras: o povo tinha vez e voz. Assim o fazia porque dele não tinha medo. E não tinha medo do povo porque colocava o interesse público em primeiro lugar requisito básico para que um país dê certo.
No combate à corrupção, a lei de 15 de outubro de 1827 dá testemunho das preocupações de Pedro I com o tema. Era uma lei draconiana na responsabilização dos ministros, secretários de Estado e conselheiros por crimes contra a coisa pública. A punição exemplar era regra, que a corrupta prática republicana brasileira jamais quis seguir. E somente a certeza da total impunidade reinante explica o completo descalabro a que chegamos.
Mas, se a hora é difícil, não deve haver espaço para o desânimo. O plebiscito está próximo. Já temos dia marcado para traçar um novo destino para este país. Assim como 9 de janeiro de 1822 foi o dia do Fico, 21 de abril de 1993 bem poderá ser o dia do Basta.
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