"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quinta-feira, 3 de junho de 2010

A Questão Racial




A questão racial parece um desafio do presente, mas tem sido permanente. Modifica-se ao acaso das situações, das formas de sociabilidade e dos jogos das forças sociais, mas reitera-se continuamente, modificada mas persistente. Esse é o enigma com o qual defrontam-se uns e outros, intolerantes e tolerantes, discriminados e preconceituosos, segregados e arrogantes, subordinados e dominantes, em todo o mundo. Mais do que tudo isso, a questão racial revela, de forma particularmente evidente, nuançada e estridente, como funciona a fábrica da sociedade, compreendendo identidade e alteridade, diversidade e desigualdade, cooperação e hierarquização, dominação e alienação.




Vista assim, em perspectiva ampla, a história do mundo moderno é também a história da questão racial, um dos dilemas da modernidade. Ao lado de outros dilemas, também fundamentais, como as guerras religiosas, as desigualdades masculino-feminino, o contraponto natureza e sociedade e as contradições de classes sociais, a questão racial revela-se um desafio permanente, tanto para indivíduos e coletividades, como para cientistas sociais, filósofos, artistas. Uns e outros com freqüência são desafiados a viver situações e/ou interpretá-las, sem alcançar a explicação, nem resolver a situação. São muitas, recorrentes e diferentes, as tensões e contradições polarizadas em termos preconceitos, xenofobias, etnicismos, segregacionismos ou racismos, multiplicadas ou reiteradas no curso dos anos, décadas e séculos, nos diferentes países, continentes, ilhas, arquipélagos.




Esse o dilema envolvido entre Bartolomeu de Las Casas e Juan Gines de Sepúveda, na época da conquista do Novo Mundo, repetindo-se e desenvolvendo-se nas vivências e ideologias, teorias e utopias de muitos, no curso dos tempos modernos. Essa é uma história na qual entram Herbert Spencer, Conde de Gobineau e Georges Lapouge, tanto quanto o evolucionismo e o darwinismo social, o nazismo e o americanismo.




Em certa medida, o debate relativo ao "choque de civilizações" implica em xenofobia, etnicismo e racismo. Ao hierarquizar as "civilizações", hierarquizando também os povos, nações, nacionalidades, e etnias, é evidente que se promove a classificação, entre positiva, negativa, neutra ou indefinida, de uns e outros. Samuel P. Huntington, que classifica as "civilizações contemporâneas" em: Chinesa, Japonesa, Hindú, Islâmica, Ocidental e Latinoamericana, está, simultaneamente, estabelecendo alguma relação entre etnia, ou raça e cultura ou civilização; uma relação cientificamente insustentável, desde Franz Boas, mesmo quando dissimulada. Essa é, obviamente, uma implicação de sua teoria, ao priorizar a "civilização ocidental" por sua escala de "modernização", "tecnificação", "produtividade", "prosperidade", "lucratividade". Aliás, esse contrabando etnicista, xenófobo ou racista, está presente em diferentes pensadores "empenhados" em explicar o mundo em termos de "modernização", "racionalização", "tecnificação" e outros emblemas ideológicos do "ocidentalismo".




É evidente que Huntington "esquece" a presença e a atuação do mercantilismo, colonialismo, imperialismo ou capitalismo, simultaneamente "ocidentalismo" na constituição do seu mapa do mundo; uma "recomposição da ordem mundial" de conformidade com a geopolítica norteamericana, arrogando-se como herdeira do "ocidentalismo", como guardião do capitalismo, ou vice e versa. Toma cada "civilização" como se fossem essências, qualificáveis ou inqualificáveis, com referência ao padrão de civilização capitalista desenvolvida na Europa Ocidental e nos Estados Unidos da América do Norte. Está empenhado em delinear a geopolítica de alcance mundial que está sendo exercida pelas elites governantes e as classes dominantes norteamericanas desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-45), entrando pelo século XXI. Essa é a ideologia que informa também o pensamento e a prática de Henry Kissinger, Zbigniew Brzezinsk, Condoleezza Rice e outros.




É assim que o mundo ingressa no século XXI, debatendo-se com a questão racial, tanto quanto com a intolerância religiosa, a contradição natureza e sociedade, as hierarquias masculino-feminino, as tensões e lutas de classes. São dilemas que se desenvolvem com a modernidade, demonstrando que o "desencantamento com o mundo", enquanto metáfora do esclarecimento e da emancipação continua a ser desafiada por preconceitos e superstições, intolerâncias e racismos, irracionalismos e idiossincrasias, interesses e ideologias.




Esta é, em síntese, uma idéia, hipótese ou interpretação com a qual todos se defrontam cotidianamente ou de quando-em-quando: a sociedade burguesa, capitalista, fabrica contínua e reiteradamente a questão racial, assim como as desigualdades feminino-masculino, o contraponto sociedade natureza e as contradições de classes, além de outros problemas com implicações práticas e teóricas. São enigmas que nascem e desenvolvem-se com a modernidade, por dentro e por fora do "desencantamento com o mundo". A despeito de inegáveis conquistas sociais realizadas no curso dos tempos modernos, esses e outros enigmas se criam e recriam, desenvolvem e transfiguram, em diferentes círculos de relações sociais, não só em sociedades nacionais, como também na sociedade mundial. De par-em-par com a globalização da questão social, desenvolve-se e intensifica-se mais um ciclo de racialização do mundo, assim como de transnacionalização de movimentos sociais de todos os tipos, envolvendo feministas, reivindicações étnicas, tensões e lutas religiosas implicadas na geopolítica do terrorismo e crescente consciência de que o próprio planeta Terra. Esses são problemas e enigmas da modernidade-nação, ou primeira modernidade, e da modernidade-mundo, ou segunda modernidade, ambas conjugando-se e tensionando-se no curso dos tempos e nos espaços do mapa do mundo; revelando que a modernidade seria ininteligível sem esses dilemas, os quais desafiam a prática e a teoria a ideologia e a utopia.




Seria fácil reconhecer que esses enigmas estão na natureza das coisas, da vida, ou da sociedade burguesa, moderna, como enigmas insolúveis, ainda que manejáveis. E é esse o pensamento de muitos em diferentes partes do mundo. Grande parte das práticas e dos discursos sobre "a lei e a ordem", "a nova ordem econômico-social mundial", "o mundo sem fronteiras", "o fim da história" ou "a teoria, a prática do neoliberalismo" implica em "naturalizar" ou "ideologizar" o status quo: modificar alguma coisa para que nada se transforme.




Mas é possível imaginar que esses problemas ou enigmas podem ser fermentos de outras formas de sociabilidade, outros jogos de forças sociais, outro tipo de sociedade, outro modo de produção e processo civilizatório; com os quais se põe em causa a ordem social burguesa prevalecente, revelando-se a sua incapacidade e impossibilidade de resolvê-los, reduzi-los ou eliminá-los. Sim, esses problemas ou enigmas podem ser tomados como contradições sociais abertas, encobertas ou latentes, permeando amplamente o tecido das sociedades nacionais e da sociedade mundial, com os quais se fermenta a sociedade do futuro.




Octavio Ianni é professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp

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