"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

domingo, 5 de setembro de 2010

A Nação Inexistente

Historicamente ambíguo, o conceito de nação muda de época para época. Inicialmente, o conceito de nação indicava origem comum, passando posteriormente a indicar elementos que possuem um passado comum. Posteriormente, no período conhecido como Romantismo, a nação passou a significar principalmente o "espírito" e/ou a "alma" de um povo.


Sabe-se que, de acordo com os ideais franceses, os quais tiveram grande influência em terras americanas, a nação foi concebida como indivisível, logo, além de buscar a liberdade, a independência também deveria almejar a unidade política. Diversos estudos mostram a impossibilidade de, no Brasil, haver um sentimento nacional capaz de engendrar o processo responsável pela independência. O processo que culmina com o 7 de setembro é, em primeiro plano, resposta à política implementada pelas cortes.


Perante a independência monárquica, a República mostrou-se impossível; não obstante, a unidade brasileira foi assegurada. O grupo político que conduziu o processo da emancipação era cônscio da fragilidade nacional e do simbolismo inerente à monarquia. Devido à inexistência da nação, fez-se necessário representá-la através de ritos e ornamentos, os quais foram utilizados em grande escala.

Além da cerimônia da aclamação, existente em Portugal, foram aqui acrescentadas as cerimônias de coroação e sagração. Tais cerimônias agiam, sem sombra de dúvida, no imaginário coletivo da época, indo além de quaisquer fronteiras sociais e políticas. As cerimônias representam a forma de governo que o país representa perante o resto do mundo, legitimando-as e, através do poder simbólico da igreja, tornando-as sacras.

Os elementos simbólicos diretamente associados à figura imperial relacionam-se diretamente aos ideais de justiça, paz, ordem e equilíbrio. Através dessas representações buscava-se, além de dirimir as dificuldades inerentes à uma nação que não se configurava como tal, evitar o perigo republicano das colônias espanholas em constante guerra civil.


O presente trabalho, além da Introdução, articula-se em duas partes.

A primeira, A Nação Inexistente, objetiva mostrar a inexistência de um sentimento nacional capaz de fomentar um espírito nacional favorável à independência; logo, diversos aspectos do processo histórico que culminou no 7 de setembro - entre eles, as causas da vinda da família real para o Brasil, o papel da imprensa e da maçonaria na divulgação do ideário emancipacionista, alguns aspectos da política das cortes às vésperas da independência etc - foram deixados de lado e não tratados com o devido relevo; não obstante melhor desenvolvidos na parte seguinte.

A segunda parte, Sagração e Coroação: o Nascimento Simbólico da Nacionalidade, procurou, na medida do possível, analisar os aspectos simbólicos de tais cerimônias através de seus componenetes estruturais, ou seja: a cor, os gestos, as personagens, as palavras etc.

Tal análise foi desenvolvida, principalmente, a partir do documento Coroação e Sagração de S. M. I. o Sr. Dr. Pedro 1, no dia Iº de dezembro de 1822 - Descrição dos festejos, de Mello Morais; também foram acrescentados elementos de Coroação de D. Pedro - Imperador do Brasil; Explicação do Desenho, e de Coroação de D. Pedro, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, celebrada na capela imperial a 1º de dezembro de 1822, ambos da autoria de Debret.



A Nação Inexistente



A vinda da família imperial para o Brasil e a conseguinte abertura dos portos (1808) jogou por terra o chamado "pacto colonial". O comércio da produção brasileira já não era intermediado por Portugal. Posteriormente, o Brasil passou a ser conhecido como reino unido a Portugal e Algarves. O regente e a Corte, instalados no Rio de Janeiro, objetivavam administrar todo o Império, inclusive as possessões em África e Ásia.



Logo, um aparelho administrativo que supria as necessidades da Europa foi aqui instalado; não obstante, tal aparelhagem estava longe de atender às necessidades brasileiras. Esse aspecto, somado a outros de todo o período colonial, impossibilitou o surgimento de um sentimento nacional brasileiro; a nação continuava a ser portuguesa.



A administração portuguesa no período colonial favoreceu a quase total ausência de laços entre as diversas regiões da colônia; a própria extensão do país muitas vezes causava embaraços comunicacionais que impediam a formação de um sentimento nacional preso a uma unidade territorial. Em fins do século XVIII e início do XIX diversas lutas separatistas eclodiram na América Portuguesa, entretanto, essas lutas sempre foram locais. Conforme dito anteriormente, o caráter local desses movimentos explica-se pelo fato de o desejo emancipacionista não estar ligado, de modo algum, a um inexistente espírito nacional.




Após o fim das guerras napoleônicas, Portugal devia sair de seu lugar secundário na política e economia européias; entretanto, D. João VI permaneceu no Brasil. Tal fato, para os portugueses de Lisboa, colocava Portugal numa posição de inferioridade dentro de seu próprio império. Desde a abertura dos portos e dos tratados comerciais assinados com a Inglaterra, a burguesia não parou de sofrer prejuízos. Em 1820, a burguesia do porto, cansada de seu papel secundário no Império Português, eclode em revolta. O rei sente-se obrigado a retornar a Portugal.

A possível volta da família real pôs em choque brasileiros nascidos na América Portuguesa e brasileiros nascidos em Portugal. Organizaram-se dois blocos: o "partido português" - essencialmente formado por comerciantes portugueses contrários a medidas favoráveis ao Brasil - e o "partido brasileiro", claramente favorável à permanência do rei na América Portuguesa. Não obstante, esse entrave inicial de modo algum traduzia-se em um sentimento de independência, tanto brasileiros como portugueses sentiam-se pertencentes à mesma nação, ou seja, à nação portuguesa.


D. João VI finalmente retorna à Lisboa. O príncipe herdeiro é nomeado regente e encarregado do governo geral e da administração do Reino Unido do Brasil. Os meses seguintes marcam a presença de correntes de opinião contrárias ou favoráveis à política imposta pelas cortes; à medida que favoráveis são rejeitadas, observa-se o recrudescimento paulatino de idéias favoráveis à independência, essas idéias estiveram, no início, presentes na imprensa e em sociedades secretas.

Porém, o projeto da independência nada tem a ver com um espírito nacional ou de união; a emancipação deve aqui ser vista como resposta à política das Cortes de Lisboa, e não como representante de um desejo nacional. O Estado, através de um processo ideológico, criou a pátria e a nação, legitimando-as através do regime monárquico.



Sagração e Coroação: o Nascimento Simbólico de uma Nacionalidade


Antes da separação, o Brasil encontrava-se sob jurisdição portuguesa; entretanto, após a independência, o aparelho administrativo português continuou a ser o instaurado em 1808. O sentimento nacional e, conseguintemente, a nação eram frágeis demais.



Apesar de a monarquia brasileira ser legítima, isto é, o imperador pertencia a uma dinastia européia e tinha direito à coroa portuguesa, as cerimônias monárquicas não seguiram os costumes portugueses.

Alguns rompimentos com a tradição portuguesa foram introduzidos; além da cerimônia de aclamação, também houve as de coroação e sagração. Algumas hipóteses parecem explicar o fato: os símbolos e emblemas objetivam afirmar um estado novo que, cercado por repúblicas, precisava mostrar-se legítimo em frente às outras nações. Como não existia nação, o estado precisou criá-la por meio de ritos e emblemas.



Não obstante, tratando-se de uma monarquia constitucional na qual o caráter divino da aclamação foi abolido, parece controverso o uso das cerimônias de coroação e sagração. A aclamação objetivava fundar a legitimidade do poder imperial sobre a soberania popular; entretanto, o novo império - fracamente nacional - requeria outras cerimônias que o afirmassem capaz de representar a nação. As cerimônias de coroação e sagração não são contrárias, de modo algum, à aclamação.

Na verdade, ambas são complementares, cabendo à coroação e à sagração conferir maior autenticidade e autoridade ao império e ao imperador.



Os motivos de ordem dinástica também devem ser levados em consideração: o imperador era um Bragança. A data escolhida para as cerimônias de sagração e coroação foi a mesma da aclamação de D. João VI, primeiro monarca da dinastia de Bragança. A data relembra duas coisas, a continuidade dinástica e o desligamento entre Portugal e Espanha, após sessenta anos. A data também representava, através do uso das cerimônias de sagração e coroação, o apartamento do Brasil em relação a Portugal.




Toda a cerimônia foi fundamentada no Pontificial romano, objetivando, desse modo, que a monarquia brasileira tivesse a mesma sacralidade e legitimidade que as européias. As cerimônias funcionam, simbolicamente, como batismo do império recém-nascido. Apesar de baseadas em regras contidas no Pontificial romano, os elementos dinásticos foram continuamente invocados: a legitimidade monárquica baseava-se na monarquia, a qual representava a nação.

Entretanto, não foi apenas o Pontificial romano a única fonte na qual se basearam as cerimônias, certamente, em conseqüência da participação de Jean Baptiste Debret, a sagração e a coroação também se basearam nas cerimônias de Napoleão Bonaparte.


O lugar escolhido para a cerimônia, a capela real, garante, através da Igreja, a legitimidade da sagração e da coroação. Por meio da igreja, o imperador adentra o universo mítico-sobrenatural, tornando sacralizada a transmissão do poder. Por ser considerada um espaço sagrado e propício à comunicação divina, a igreja é autoridade na legitimação dos rituais.

Dá-se uma origem mítica ao império do Brasil, origem essa conferida pelo próprio estado. Ao se invocar o passado ancestral (elementos dinásticos) através do culto, a monarquia mostra-se, ao mesmo tempo, sagrada e legítima.



Aspectos Estruturais da Coroação e Sagração:

- As personagens e seus lugares



Em quaisquer cerimônias, o lugar e o papel das respectivas personagens é sobremaneira importante. Na cerimônia de coroação e sagração as principais personagens são o Imperador, os bispos, o corpo diplomático e o senado.


Os papéis mais importantes foram os do imperador, dos bispos, e de alguns membros da corte. O Senado, o restante da corte e o corpo diplomático apenas ocuparam papéis secundários, cujo objetivo era testemunhar a continuidade dinástica e a legitimidade do Império recém criado.

Já no cortejo que parte do paço em direção à capela observa-se o papel que cabe a cada personagem.

Observa-se também que as personagens da sagração e coroação já estiveram presentes no cortejo de aclamação. Os arqueiros, timboleiros, o rei de armas etc, reaparecem; não obstante, ao contrário de Portugal, no Brasil tais cargos foram nomeados apenas para a cerimônia, as funções não foram mantidas.


O Imperador localizava-se no centro do cortejo, caminhando entre a Corte, a qual segurava as insígnias imperiais e o pálio, logo atrás da Corte ia o Senado, que, ao contrário do ocorrido na cerimônia de aclamação, desempenhou papel secundário na sagração e coroação.

O príncipe, no decorrer da cerimônia, submeteu-se a um poder superior ao seu, um poder que advém de Deus, não dos homens; esse poder foi recebido através da intermediação do bispo, o qual representa Cristo. Durante o desenrolar da cerimônias, os outros, espectadores e testemunhas (família real, membros da Corte, Senado e corpo diplomático), assistiam, cada um postado em seu devido lugar.

O Senado encontrava-se à direita, na fila mais próxima do centro; os ministros e personagens da corte à esquerda; logo atrás, os procuradores-gerais das províncias e as pessoas que compareceram ao cortejo. O lado direito das tribunas foi ocupado pelas damas da Corte; o esquerdo, pelas damas de altos dignitários e outros convidados. O corpo diplomático e os oficiais que serviam junto à imperatriz, cuja tribuna localizava-se de frente para o trono, ocuparam as tribunas do coro.

A disposição espacial de tais personagens traduz-se em interessante simbologia judaico-cristã, que atribui ao centro um simbolismo extremamente poderoso.


As Palavras e os Gestos


A cerimônia começou no momento em que D. Pedro chegou à porta da capela, o ritual foi realizada em latim, de acordo com o rito estabelecido pela igreja. O objetivo das palavras e gestos era sagrar e coroar o imperador, de modo idêntico ao europeu. Dessa forma, o acontecimento adquiriu, através do poder divino, um aspecto mágico-simbólico, ganhando características de eterno.


Mesmo obedecendo ao Pontificial romano, a cerimônia incorporou, no juramento e no sermão termos concernentes ao contexto histórico do Brasil. No juramento, à soberania divina foi acrescentada a do povo; no sermão, a cerimônia ganhou conotação intensamente política, discorrendo sobre particularidades brasileiras, entre elas, a aclamação popular, as vantagens da monarquia etc. Razões de ordem externa foram intensamente utilizadas.

As palavras, complementadas pelos gestos, funcionam como um conjunto simbólico altamente expressivo. A oralidade apresenta, no rito, maior eficiência que o texto, perpetuando a cerimônia simbólica.


Os objetos:



As insígnias imperiais - espada, coroa e manto - foram recebidas pelo imperador após a sagração. A espada que cingiu o imperador representa a defesa da Igreja; a coroa, entregue pelos bispo simboliza a glória e a santidade, o homem e a força; o cetro simboliza a virtude e a verdade. Posteriormente, o imperador trajou o manto.


De acordo com estudos de simbologia, a coroa e o cetro, objetos complementares, situam e distinguem o rei em seu meio, identificando-o; os dois símbolos unidos representam também a continuidade dinástica. A coroa, de ouro maciço e ramos fechados, apresenta forma elíptica e grande proporção; florões e escudos com as armas do Brasil alternam-se em sua base. No ponto central da coroa encontra-se um globo celeste cortado ao meio sobreposto por uma cruz; símbolo da totalidade, o globo significa soberania sobre o reino (a esfera celeste é antigo símbolo para a colônia brasileira).



O cetro, também fabricado a partir de ouro maciço, traz em seu ápice um dragão sentado sobre um pedestal quadrangular, representando a dinastia de Bragança.

O manto é composto em claro estilo nacional, seu bordado imitava a forma de folhas e frutos de palmeira. Além do mais, a forma de poncho evoca influências americanas.


As Cores:

Basicamente, as cores do Brasil Imperial são a verde e a amarela; isto é, cores diferentes das da dinastia de Bragança, que a azul e a branca.


Entretanto, diversas teorias buscam explicar o porquê dessas duas cores: segundo Debret, responsável pelas cores da emblemática brasileira, o verde liga o trono ao novo mundo; não obstante, a cor verde era uma das preferidas de Napoleão.



De acordo dom Varnhagem, a escolha das cores imperiais é decorrência de uma predileção de D. Pedro. Hoje em dia, os manuais escolares assinalam que as cores da bandeira brasileira referem-se às riquezas do país, tanto na fauna como na flora.

Curiosamente, mesmo não sendo as cores verde e amarela diretamente representativas da dinastia dos Bragança, verde é a cor do animal heráldico desta mesma dinastia. Talvez a idéia da continuidade monárquica não esteja totalmente fora de cogitação.

por: Renato Pignatari Pereira

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