Historicamente ambíguo, o conceito de nação muda de época para época. Inicialmente, o conceito de nação indicava origem comum, passando posteriormente a indicar elementos que possuem um passado comum. Posteriormente, no período conhecido como Romantismo, a nação passou a significar principalmente o "espírito" e/ou a "alma" de um povo.
Sabe-se que, de acordo com os ideais franceses, os quais tiveram grande influência em terras americanas, a nação foi concebida como indivisível, logo, além de buscar a liberdade, a independência também deveria almejar a unidade política. Diversos estudos mostram a impossibilidade de, no Brasil, haver um sentimento nacional capaz de engendrar o processo responsável pela independência. O processo que culmina com o 7 de setembro é, em primeiro plano, resposta à política implementada pelas cortes.
Perante a independência monárquica, a República mostrou-se impossível; não obstante, a unidade brasileira foi assegurada. O grupo político que conduziu o processo da emancipação era cônscio da fragilidade nacional e do simbolismo inerente à monarquia. Devido à inexistência da nação, fez-se necessário representá-la através de ritos e ornamentos, os quais foram utilizados em grande escala.
Além da cerimônia da aclamação, existente em Portugal, foram aqui acrescentadas as cerimônias de coroação e sagração. Tais cerimônias agiam, sem sombra de dúvida, no imaginário coletivo da época, indo além de quaisquer fronteiras sociais e políticas. As cerimônias representam a forma de governo que o país representa perante o resto do mundo, legitimando-as e, através do poder simbólico da igreja, tornando-as sacras.
Os elementos simbólicos diretamente associados à figura imperial relacionam-se diretamente aos ideais de justiça, paz, ordem e equilíbrio. Através dessas representações buscava-se, além de dirimir as dificuldades inerentes à uma nação que não se configurava como tal, evitar o perigo republicano das colônias espanholas em constante guerra civil.
O presente trabalho, além da Introdução, articula-se em duas partes.
A primeira, A Nação Inexistente, objetiva mostrar a inexistência de um sentimento nacional capaz de fomentar um espírito nacional favorável à independência; logo, diversos aspectos do processo histórico que culminou no 7 de setembro - entre eles, as causas da vinda da família real para o Brasil, o papel da imprensa e da maçonaria na divulgação do ideário emancipacionista, alguns aspectos da política das cortes às vésperas da independência etc - foram deixados de lado e não tratados com o devido relevo; não obstante melhor desenvolvidos na parte seguinte.
A segunda parte, Sagração e Coroação: o Nascimento Simbólico da Nacionalidade, procurou, na medida do possível, analisar os aspectos simbólicos de tais cerimônias através de seus componenetes estruturais, ou seja: a cor, os gestos, as personagens, as palavras etc.
Tal análise foi desenvolvida, principalmente, a partir do documento Coroação e Sagração de S. M. I. o Sr. Dr. Pedro 1, no dia Iº de dezembro de 1822 - Descrição dos festejos, de Mello Morais; também foram acrescentados elementos de Coroação de D. Pedro - Imperador do Brasil; Explicação do Desenho, e de Coroação de D. Pedro, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, celebrada na capela imperial a 1º de dezembro de 1822, ambos da autoria de Debret.
A Nação Inexistente
A vinda da família imperial para o Brasil e a conseguinte abertura dos portos (1808) jogou por terra o chamado "pacto colonial". O comércio da produção brasileira já não era intermediado por Portugal. Posteriormente, o Brasil passou a ser conhecido como reino unido a Portugal e Algarves. O regente e a Corte, instalados no Rio de Janeiro, objetivavam administrar todo o Império, inclusive as possessões em África e Ásia.
Logo, um aparelho administrativo que supria as necessidades da Europa foi aqui instalado; não obstante, tal aparelhagem estava longe de atender às necessidades brasileiras. Esse aspecto, somado a outros de todo o período colonial, impossibilitou o surgimento de um sentimento nacional brasileiro; a nação continuava a ser portuguesa.
A administração portuguesa no período colonial favoreceu a quase total ausência de laços entre as diversas regiões da colônia; a própria extensão do país muitas vezes causava embaraços comunicacionais que impediam a formação de um sentimento nacional preso a uma unidade territorial. Em fins do século XVIII e início do XIX diversas lutas separatistas eclodiram na América Portuguesa, entretanto, essas lutas sempre foram locais. Conforme dito anteriormente, o caráter local desses movimentos explica-se pelo fato de o desejo emancipacionista não estar ligado, de modo algum, a um inexistente espírito nacional.
Após o fim das guerras napoleônicas, Portugal devia sair de seu lugar secundário na política e economia européias; entretanto, D. João VI permaneceu no Brasil. Tal fato, para os portugueses de Lisboa, colocava Portugal numa posição de inferioridade dentro de seu próprio império. Desde a abertura dos portos e dos tratados comerciais assinados com a Inglaterra, a burguesia não parou de sofrer prejuízos. Em 1820, a burguesia do porto, cansada de seu papel secundário no Império Português, eclode em revolta. O rei sente-se obrigado a retornar a Portugal.
A possível volta da família real pôs em choque brasileiros nascidos na América Portuguesa e brasileiros nascidos em Portugal. Organizaram-se dois blocos: o "partido português" - essencialmente formado por comerciantes portugueses contrários a medidas favoráveis ao Brasil - e o "partido brasileiro", claramente favorável à permanência do rei na América Portuguesa. Não obstante, esse entrave inicial de modo algum traduzia-se em um sentimento de independência, tanto brasileiros como portugueses sentiam-se pertencentes à mesma nação, ou seja, à nação portuguesa.
D. João VI finalmente retorna à Lisboa. O príncipe herdeiro é nomeado regente e encarregado do governo geral e da administração do Reino Unido do Brasil. Os meses seguintes marcam a presença de correntes de opinião contrárias ou favoráveis à política imposta pelas cortes; à medida que favoráveis são rejeitadas, observa-se o recrudescimento paulatino de idéias favoráveis à independência, essas idéias estiveram, no início, presentes na imprensa e em sociedades secretas.
Porém, o projeto da independência nada tem a ver com um espírito nacional ou de união; a emancipação deve aqui ser vista como resposta à política das Cortes de Lisboa, e não como representante de um desejo nacional. O Estado, através de um processo ideológico, criou a pátria e a nação, legitimando-as através do regime monárquico.
Sagração e Coroação: o Nascimento Simbólico de uma Nacionalidade
Antes da separação, o Brasil encontrava-se sob jurisdição portuguesa; entretanto, após a independência, o aparelho administrativo português continuou a ser o instaurado em 1808. O sentimento nacional e, conseguintemente, a nação eram frágeis demais.
Apesar de a monarquia brasileira ser legítima, isto é, o imperador pertencia a uma dinastia européia e tinha direito à coroa portuguesa, as cerimônias monárquicas não seguiram os costumes portugueses.
Alguns rompimentos com a tradição portuguesa foram introduzidos; além da cerimônia de aclamação, também houve as de coroação e sagração. Algumas hipóteses parecem explicar o fato: os símbolos e emblemas objetivam afirmar um estado novo que, cercado por repúblicas, precisava mostrar-se legítimo em frente às outras nações. Como não existia nação, o estado precisou criá-la por meio de ritos e emblemas.
Não obstante, tratando-se de uma monarquia constitucional na qual o caráter divino da aclamação foi abolido, parece controverso o uso das cerimônias de coroação e sagração. A aclamação objetivava fundar a legitimidade do poder imperial sobre a soberania popular; entretanto, o novo império - fracamente nacional - requeria outras cerimônias que o afirmassem capaz de representar a nação. As cerimônias de coroação e sagração não são contrárias, de modo algum, à aclamação.
Na verdade, ambas são complementares, cabendo à coroação e à sagração conferir maior autenticidade e autoridade ao império e ao imperador.
Os motivos de ordem dinástica também devem ser levados em consideração: o imperador era um Bragança. A data escolhida para as cerimônias de sagração e coroação foi a mesma da aclamação de D. João VI, primeiro monarca da dinastia de Bragança. A data relembra duas coisas, a continuidade dinástica e o desligamento entre Portugal e Espanha, após sessenta anos. A data também representava, através do uso das cerimônias de sagração e coroação, o apartamento do Brasil em relação a Portugal.
Toda a cerimônia foi fundamentada no Pontificial romano, objetivando, desse modo, que a monarquia brasileira tivesse a mesma sacralidade e legitimidade que as européias. As cerimônias funcionam, simbolicamente, como batismo do império recém-nascido. Apesar de baseadas em regras contidas no Pontificial romano, os elementos dinásticos foram continuamente invocados: a legitimidade monárquica baseava-se na monarquia, a qual representava a nação.
Entretanto, não foi apenas o Pontificial romano a única fonte na qual se basearam as cerimônias, certamente, em conseqüência da participação de Jean Baptiste Debret, a sagração e a coroação também se basearam nas cerimônias de Napoleão Bonaparte.
O lugar escolhido para a cerimônia, a capela real, garante, através da Igreja, a legitimidade da sagração e da coroação. Por meio da igreja, o imperador adentra o universo mítico-sobrenatural, tornando sacralizada a transmissão do poder. Por ser considerada um espaço sagrado e propício à comunicação divina, a igreja é autoridade na legitimação dos rituais.
Dá-se uma origem mítica ao império do Brasil, origem essa conferida pelo próprio estado. Ao se invocar o passado ancestral (elementos dinásticos) através do culto, a monarquia mostra-se, ao mesmo tempo, sagrada e legítima.
Aspectos Estruturais da Coroação e Sagração:
- As personagens e seus lugares
Em quaisquer cerimônias, o lugar e o papel das respectivas personagens é sobremaneira importante. Na cerimônia de coroação e sagração as principais personagens são o Imperador, os bispos, o corpo diplomático e o senado.
Os papéis mais importantes foram os do imperador, dos bispos, e de alguns membros da corte. O Senado, o restante da corte e o corpo diplomático apenas ocuparam papéis secundários, cujo objetivo era testemunhar a continuidade dinástica e a legitimidade do Império recém criado.
Já no cortejo que parte do paço em direção à capela observa-se o papel que cabe a cada personagem.
Observa-se também que as personagens da sagração e coroação já estiveram presentes no cortejo de aclamação. Os arqueiros, timboleiros, o rei de armas etc, reaparecem; não obstante, ao contrário de Portugal, no Brasil tais cargos foram nomeados apenas para a cerimônia, as funções não foram mantidas.
O Imperador localizava-se no centro do cortejo, caminhando entre a Corte, a qual segurava as insígnias imperiais e o pálio, logo atrás da Corte ia o Senado, que, ao contrário do ocorrido na cerimônia de aclamação, desempenhou papel secundário na sagração e coroação.
O príncipe, no decorrer da cerimônia, submeteu-se a um poder superior ao seu, um poder que advém de Deus, não dos homens; esse poder foi recebido através da intermediação do bispo, o qual representa Cristo. Durante o desenrolar da cerimônias, os outros, espectadores e testemunhas (família real, membros da Corte, Senado e corpo diplomático), assistiam, cada um postado em seu devido lugar.
O Senado encontrava-se à direita, na fila mais próxima do centro; os ministros e personagens da corte à esquerda; logo atrás, os procuradores-gerais das províncias e as pessoas que compareceram ao cortejo. O lado direito das tribunas foi ocupado pelas damas da Corte; o esquerdo, pelas damas de altos dignitários e outros convidados. O corpo diplomático e os oficiais que serviam junto à imperatriz, cuja tribuna localizava-se de frente para o trono, ocuparam as tribunas do coro.
A disposição espacial de tais personagens traduz-se em interessante simbologia judaico-cristã, que atribui ao centro um simbolismo extremamente poderoso.
As Palavras e os Gestos
A cerimônia começou no momento em que D. Pedro chegou à porta da capela, o ritual foi realizada em latim, de acordo com o rito estabelecido pela igreja. O objetivo das palavras e gestos era sagrar e coroar o imperador, de modo idêntico ao europeu. Dessa forma, o acontecimento adquiriu, através do poder divino, um aspecto mágico-simbólico, ganhando características de eterno.
Mesmo obedecendo ao Pontificial romano, a cerimônia incorporou, no juramento e no sermão termos concernentes ao contexto histórico do Brasil. No juramento, à soberania divina foi acrescentada a do povo; no sermão, a cerimônia ganhou conotação intensamente política, discorrendo sobre particularidades brasileiras, entre elas, a aclamação popular, as vantagens da monarquia etc. Razões de ordem externa foram intensamente utilizadas.
As palavras, complementadas pelos gestos, funcionam como um conjunto simbólico altamente expressivo. A oralidade apresenta, no rito, maior eficiência que o texto, perpetuando a cerimônia simbólica.
Os objetos:
As insígnias imperiais - espada, coroa e manto - foram recebidas pelo imperador após a sagração. A espada que cingiu o imperador representa a defesa da Igreja; a coroa, entregue pelos bispo simboliza a glória e a santidade, o homem e a força; o cetro simboliza a virtude e a verdade. Posteriormente, o imperador trajou o manto.
De acordo com estudos de simbologia, a coroa e o cetro, objetos complementares, situam e distinguem o rei em seu meio, identificando-o; os dois símbolos unidos representam também a continuidade dinástica. A coroa, de ouro maciço e ramos fechados, apresenta forma elíptica e grande proporção; florões e escudos com as armas do Brasil alternam-se em sua base. No ponto central da coroa encontra-se um globo celeste cortado ao meio sobreposto por uma cruz; símbolo da totalidade, o globo significa soberania sobre o reino (a esfera celeste é antigo símbolo para a colônia brasileira).
O cetro, também fabricado a partir de ouro maciço, traz em seu ápice um dragão sentado sobre um pedestal quadrangular, representando a dinastia de Bragança.
O manto é composto em claro estilo nacional, seu bordado imitava a forma de folhas e frutos de palmeira. Além do mais, a forma de poncho evoca influências americanas.
As Cores:
Basicamente, as cores do Brasil Imperial são a verde e a amarela; isto é, cores diferentes das da dinastia de Bragança, que a azul e a branca.
Entretanto, diversas teorias buscam explicar o porquê dessas duas cores: segundo Debret, responsável pelas cores da emblemática brasileira, o verde liga o trono ao novo mundo; não obstante, a cor verde era uma das preferidas de Napoleão.
De acordo dom Varnhagem, a escolha das cores imperiais é decorrência de uma predileção de D. Pedro. Hoje em dia, os manuais escolares assinalam que as cores da bandeira brasileira referem-se às riquezas do país, tanto na fauna como na flora.
Curiosamente, mesmo não sendo as cores verde e amarela diretamente representativas da dinastia dos Bragança, verde é a cor do animal heráldico desta mesma dinastia. Talvez a idéia da continuidade monárquica não esteja totalmente fora de cogitação.
por: Renato Pignatari Pereira
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