"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Os novos rumos da Medida Provisória e o trancamento específico de pauta



Questão de infindáveis controvérsias e constantes litígios entre os Poderes (ou funções dos Poderes, no dizer de Montesquieu), é a possibilidade dada pelo constituinte de 1988 ao Chefe do Poder Executivo de, em caso de urgência e relevância jurídica e política, editar Medidas Provisórias – MPs com força de lei. Não obstante, essas Medidas Provisórias devem ser votadas de imediato pelo Congresso Nacional, sobrestando as demais votações quando ultrapassados quarenta e cinco dias sem suas deliberações.


Inicialmente, impõe sustentar a importância das Medidas Provisórias para a subsistência de um Estado Democrático de Direito, o qual faz necessária a concessão desta faculdade ao Presidente, para editá-las com força de lei. Em essência, dois são os argumentos que dão legitimidade à sua existência:

a) O processo legislativo é moroso e de bastante discussão nas Casas Legislativas, sendo inviável e totalmente ineficaz, em alguns casos de urgência, que determinada norma passe por todos os trâmites comuns às demais espécies normativas ordinárias (tome-se, por exemplo, casos de calamidades públicas em que são de extrema valia a concessão de créditos extraordinários para salvaguardar vidas que, naquele átimo, encontram-se em perigo);

b) Dada a harmonia e independência que se perpetra por todo o postulado da separação dos Poderes, o Presidente da República, que é quem administra o Estado, precisa resguardar-se de algum instrumento que dê efetividade imediata a algumas decisões políticas profícuas.

Todavia, hodiernamente é perceptível que a função dessas Medidas Provisórias – MPs desvirtuou-se quase que totalmente de seu sentido original, sendo, na prática, um meio para o chefe do Poder Executivo legislar em assuntos diversos, mesmo que descumprindo os requisitos de urgência e relevância, reduzindo, por conseguinte, a atuação do Poder Legislativo.

Essa afirmação torna-se mais preocupante porque passados quarenta e cinco dias da edição desta medida, tranca-se a pauta das Casas Legislativa em que essa MP tramita, não podendo ela deliberar sobre diversos assuntos de importância popular e o que é pior, servindo de mero anuente dos mandos e desmandos do Poder Executivo.

Neste contexto, o Poder Legislativo, corporificado em seus órgãos (Câmara dos Deputados e Senado Federal), busca soluções para que volte a exercer suas atividades típicas, que são a de legislar e a de fiscalizar os atos do Poder Executivo.

Uma dessas soluções, extraída da Questão de Ordem nº 411/2009, da Câmara dos Deputados, foi interpretar restritivamente o disposto no artigo 62, § 6º, da Constituição da República, no sentido de que as Medidas Provisórias não votadas em quarenta e cinco dias impedem apenas a votação de leis ordinárias, e ainda, de leis ordinárias que não estejam proibidas constitucionalmente de serem objeto de MPs.

Destarte, continuaria normalmente as atividades legislativas no que diz respeito à discussão e votação de emendas à Constituição, leis complementares, leis delegadas, decretos legislativos e resoluções, e ainda, de leis ordinárias que não podem ser objeto de Medidas Provisórias.

É fato que trata-se de uma mutação constitucional, concebida como uma mudança de sentido e alcance de dada norma da Constituição, sem que seja seguido o processo legislativo atinente à mudança formal da Constituição, através de Emenda Constitucional. Assim, tal interpretação, ainda nova, é passível de críticas pelas mais determinadas classes de estudiosos, intérpretes e aplicadores do Direito Constitucional Brasileiro.

Tal é a controvérsia gerada, visto que há diversidade interna dentro da própria Câmara dos Deputados, que a medida adotada pela citada Questão de Ordem está sendo objeto de um Mandado de Segurança no Supremo Tribunal Federal, o qual já possui, inclusive, decisão liminar, considerando legítima essa interpretação da Constituição.

Isso não quer dizer, no entanto, que tal modo de ver a Carta da República é correto ou equivocado. Trata-se da busca incessante pelo Poder Legislativo de, através de meios alternativos e legítimos, desafogar-se das inúmeras Medidas Provisórias expedidas pelo Presidente da República. Busca-se, pelo constante conflito e diálogo, a harmonia e independência dos Poderes, princípio fundamental de um Estado Democrático de Direito.

A questão da separação de Poderes

Em uma análise prévia, percebe-se que a atitude adotada pela Câmara dos Deputados na Questão de Ordem nº 411/2009 não fere o princípio da separação dos Poderes. A edição excessiva de MPs requer uma providência vigorosa dos outros Poderes no escopo de restabelecer a harmonia.

A evolução do pensamento sobre a separação dos Poderes, ou separação das funções de Poderes, remonta à Grécia Antiga, onde são encontrados os primeiros resquícios de uma das teorias mais importantes do Estado moderno e contemporâneo. Especificamente em Aristóteles, que avalia ser censurável e arriscado conceder a uma única pessoa o exercício do Poder, tal princípio ganha seus primeiros contornos.

No entanto, apenas com Montesquieu esse princípio recebe sistematização e força, sendo atribuído a este tal teoria. De acordo com o renomado autor, o Poder nunca pode estar concentrado na mão de uma só pessoa, pois esta sempre tenderá a abusar dele. Desta forma, precisaria impor alguns limites para o exercício desse Poder.

Dessarte, para Montesquieu, somente o próprio Poder poderia frear o seu exercício, dependendo da maneira como ele está disposto. Deste modo, a maneira ideal encontrada seria dividir o Poder em funções autônomas e independentes umas das outras, sem que, no entanto, uma tivesse supremacia em relação às demais. Cada vez que uma função estivesse exorbitando de suas competências, a outra viria e restabeleceria a harmonia entre todas. Essa autocontenção ficou conhecida como sistema de “freios e contrapesos”.

Para isso, é imperioso que cada Poder tenha sua função típica e outras funções atípicas, atinentes ao exercício de atividades de natureza dos demais “poderes”. Assim, a atividade típica do Poder Legislativo é legislar, mas este exerce também competências administrativas e judicantes, atipicamente, e assim por diante.

Aplicando essa teoria ao Estado brasileiro, após a Constituição de 1988, que a positivou no artigo 2º, percebe-se que o fulcro do constituinte não foi, de modo algum, dar mais poder a uma função que às outras. Encontra-se na harmonia dos poderes as interferências que cada um tem para com o outro, no trato recíproco e nas restrições impostas aos seus exercícios.

Desta forma, a Constituição da República de 1988 concedeu ao Poder Executivo a função administrativa, de governo e de chefia do Estado. Essas são suas funções típicas. Concedeu ainda, como função atípica legislativa, a faculdade de editar, com força de lei, Medidas Provisórias. Tal faculdade deve ser exercida com cautela, apenas, como se verá, em estado de extrema necessidade, atendidos os requisitos de urgência e relevância.

O instituto da Medida Provisória: uso e abuso


Dispõe o artigo 61 da Constituição Brasileira de 1988 que o chefe do Poder Executivo pode editar medidas provisórias com força de lei em caso de urgência e relevância, devendo ser imediatamente encaminhada para a apreciação do Congresso Nacional. Portanto, conforme se depreende do citado artigo, essa medida somente pode ser usada em situações excepcionalíssimas, de extrema urgência para a população ou para a garantia de direitos.

Seu uso advém de um denominado estado de necessidade social, que carece algumas vezes de medidas enérgicas por parte do Poder Executivo para estabilizar a ordem ou para garantir a inviolabilidade de direitos fundamentais, tendo, assim, caráter normativo e com eficácia imediata.

Desta forma, esse instrumento é de muito fácil abuso, necessitando de contenção. Essa contenção, por seu turno, é feita de duas formas:

a) através de análise por Comissão de cada casa, dos requisitos de urgência e relevância da medida provisória, nos termos do artigo 62, § 5º;

b) pela análise judicial, de caráter excepcional, feita pelo Supremo Tribunal Federal.

Não obstante esse controle prévio acerca dos pressupostos formais (urgência e relevância) e do excesso no seu uso, a confecção exacerbado de MPs é corriqueiro pelo Poder Executivo. De acordo com pesquisas realizadas pela Subsecretaria de Informações do Senado Federal, em 1999, durante o governo FHC as Medidas Provisórias foram editadas e reeditadas cerca de duas mil, setecentas e sessenta e sete vezes. Pergunta-se: será que a República Federativa do Brasil esteve todas essas vezes em um estado de urgência e relevância, a ponto de se editar uma Medida Provisória?

No escopo de restringir o uso (e abuso) das freqüentes edições e reedições de MPs, o poder constituinte derivado impôs outros limites à confecção de Medida Provisória, de caráter material. Essas restrições advieram com a Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001, que reduziu a reedição das medidas e restringiu, quanto ao conteúdo, as mesmas. Essas ressalvas encontram-se no art. 62, § 1º, CRFB/88 (vide nota nº 4).

Reitere-se que o instituto é, em sua essência, um instrumento necessário para a convivência social e a harmonia dos Poderes. No entanto, dada a facilidade de sua edição e a demora de sua votação, torna-se uma carta poderosa na mão do Presidente da República que, com tanto poder, tende a abusar dele, conforme antiga lição de Montesquieu.

Percebe-se que, mesmo com todas as restrições impostas, continua o Presidente da República abusando deste instrumento, usurpando o princípio fundamental da separação dos Poderes. Assim, torna-se indispensável uma solução para essas edições e reedições.

Trancamento da pauta: a mutação constitucional de sua interpretação


Conforme intelecção do artigo 62, § 6º da Carta da República, a Medida Provisória que não for analisada no prazo de quarenta e cinco dias, contados da publicação, sobrestará, até que termine sua votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa. Por muito tempo, interpretou-se esse dispositivo de forma declarativa, ou seja, o que a norma dispunha era exatamente aquilo que deveria ser feito.

Todavia, essa interpretação gerou, durante longa temporada, uma paralisação da atividade legislativa pelo Poder Legislativo brasileiro.

Ora, tal interrupção fere frontalmente o postulado da Separação de Poderes, pois não é possível esse órgão ser impedido de exercer sua atividade primária, típica, qual seja a confecção de normas. E ainda pior, foi transferida, de certa maneira, essa atividade ao Poder Executivo, que, na conjectura atual, mantém a linha altamente expedidora de MPs.

Assim, dado o conjunto fático da usurpação pelo Executivo da atividade legiferante, durante muito tempo buscou-se uma solução adequada para a harmonização deste instituto com a atividade do Poder legislativo.

Não é possível extinguir de sobremodo as Medidas Provisórias, haja vista seu caráter necessário; nem é possível estacionar os trabalhos do Legislativo. Assim, pouco a pouco, em uma relação intensa e recíproca, em fricção que produz calor, mas nem sempre luz, ambos os Poderes tenderam para a nova interpretação deste dispositivo, de modo a não ferir o núcleo fundamental desse instituto, nem do órgão.

Finalmente, em resposta à Questão de Ordem nº 411/2009, o Presidente da Câmara dos Deputados, Dep. Michel Temer, em uma solução ímpar na história constitucional, especialmente após 1988, propõe a seguinte solução para o sobrestamento da pauta:

Na verdade o constituinte não quis sobrestar absolutamente todas as deliberações legislativas, mas apenas aquelas que também são previstas para Medida Provisória, ou seja, as demais espécies normativas não estão abrangidas na disposição do art. 62, § 6º, CRFB/88.

Essa nova tese é fabulosa no sentido de dar mais autonomia ao Poder Legislativo no exercício de sua função primária: a atividade legislativa. Ademais, tal interpretação advém da própria sistemática constitucional, pois uma norma não pode ser interpretada sozinha, haja vista que ela está inserida em um plano maior, que é o ordenamento jurídico.

De acordo com o eminente deputado Michel Temer, o fundamento dessa interpretação é de duas naturezas, uma política e outra jurídica. Disserta o eminente constitucionalista acerca do fundamento político, verbis,

Os senhores sabem o quanto esta Casa tem sido criticada, porque praticamente paralisamos as votações em face das medidas provisórias. Basta registrar que temos hoje 10 medidas provisórias e uma décima primeira que voltou do Senado Federal, porque lá houve emenda, que trancam a pauta dos nossos trabalhos.

Num critério temporal bastante otimista, essa pauta só será destrancada no meio ou no final de maio, isso se ainda não voltarem para cá outras medidas provisórias do Senado Federal, com eventuais emendas, ou ainda outras vierem a ser editadas de modo a trancar a pauta.

Portanto, se não encontrarmos uma solução no caso interpretativo do texto constitucional que nos permita o destrancamento da pauta, nós vamos passar, Deputadas e Deputados, praticamente esse ano sem conseguir levar adiante as propostas que tramitam por esta Casa que não sejam as medidas provisórias.

Aqui, estou me cingindo a colocações de natureza política. Eu quero, portanto, dar uma resposta à sociedade brasileira, dizendo que nós encontramos aqui uma solução que vai nos permitir legislar.

Continuando, Temer argumenta acerca do fundamento jurídico, que separa em duas afirmações de natureza genérica,

Uma primeira é que esta Constituição - sabemos todos - inaugurou política e juridicamente, um estado democrático de direito. Não precisamos ressaltar que nasceu como fruto do combate ao autoritarismo. Não precisamos ressaltar que surgiu para debelar o centralismo.

Não precisamos repisar que surgiu para igualar os poderes e, portanto, para impedir que um dos poderes tivesse uma atuação política e juridicamente superior a de outro poder, o que ocorria no período anterior à Constituinte de 1988.

Quando digo que se quis um estado democrático de direito, estou reproduzindo o texto constitucional. A Constituição, logo na sua abertura, diz que o Brasil é um estado democrático de direito. Bastaria dizer estado democrático. Bastaria dizer estado de direito, mas repisou: "é um estado democrático de direito."

E, na seqüência, estabeleceu uma igualdade absoluta entre os poderes do Estado, ou seja, eliminou aquela ordem jurídica anterior que dava prevalência ao Poder Executivo e, no particular, ao Presidente da República.

Feita essa equação, pela Constituição Federal, da repartição das funções do Estado, falo entre parênteses, o poder não é nosso, não é do Presidente da República, não é do Judiciário; o poder é do povo. Somos meros órgãos exercentes do poder que nos foi atribuído.

Ao distribuir essas funções, a soberania popular, expressada na Constituinte, estabeleceu funções distintas para órgãos distintos. Para dizer uma obviedade, Executivo executa, Legislativo legisla e Judiciário julga.

Portanto, a função primacial, primeira, típica, identificadora de cada um dos poderes é esta: execução, legislação e jurisdição.

Posto estes fundamentos, prossegue Michel Temer para a conclusão acerca do novo paradigma interpretativo do sobrestamento de pauta, verbis

No caso do Legislativo, atividade entrega ao órgão do poder chamado Poder Legislativo.

Pode haver exceção a esse princípio? Digo eu: pode e há. Tanto que, em matéria legislativa, o Poder Executivo, por meio do Presidente da República, pode editar medidas provisórias com força de lei, na expressão constitucional.

É uma exceção ao princípio segundo o qual ao Legislativo incumbe legislar.


(...)

Então, volto a dizer: toda vez que há uma exceção esta interpretação não pode ser ampliativa. Ao contrário. A interpretação é restritiva. Toda e qualquer exceção retirante de uma parcela de poder de um dos órgãos de Governo, de um dos órgãos de poder, para outro órgão de Governo só pode ser interpretada restritivamente.

Muito bem. Então, registrado que há uma exceção, nós vamos ao art. 62 e lá verificamos o seguinte: que a medida provisória, se não examinada no prazo de 45 dias, sobresta todas as demais deliberações legislativas na Casa em que estiver tramitando a medida provisória. Mas, aí surge uma pergunta: de que deliberação legislativa está tratando o texto constitucional? E eu aqui faço mais uma consideração genérica.

A interpretação mais prestante na ordem jurídica do texto constitucional é a interpretação sistêmica. Quer dizer, eu só consigo desvendar os segredos de um dispositivo constitucional se eu encaixá-lo no sistema. É o sistema que me permite a interpretação correta do texto. A interpretação literal - para usar um vocábulo mais forte - é a mais pedestre das interpretações.

Então, se eu ficar na interpretação literal "todas as deliberações legislativas", eu digo, nenhuma delas pode ser objeto de apreciação. Mas não é isso que diz o texto. Eu pergunto, e a pergunta é importante: uma medida provisória pode versar sobre matéria de lei complementar?

Não pode.

Há uma vedação expressa no texto constitucional. A medida provisória pode modificar a Constituição?

Não pode.

Só a emenda constitucional pode fazê-lo. A medida provisória pode tratar de uma matéria referente a decreto legislativo, por exemplo, declarar a guerra ou fazer a paz, que é objeto de decreto legislativo?

Não pode.

A medida provisória pode editar uma resolução sobre o Regimento Interno da Câmara ou do Senado?

Não pode.

Isto é matéria de decreto legislativo e de resolução. Aliás, aqui faço um parêntese: imaginem os senhores o que significa o trancamento da pauta. Se hoje estourasse um conflito entre o Brasil e um outro país, e o Presidente mandasse uma mensagem para declarar a guerra, nós não poderíamos expedir o decreto legislativo, porque a pauta está trancada até maio. Então nós mandaríamos avisar: só a partir do dia 15 ou 20 de maio nós vamos poder apreciar esse decreto legislativo. Não é?

Então, em face dessas circunstâncias, a interpretação que se dá a essa expressão "todas as deliberações legislativas" são todas as deliberações legislativas ordinárias. Apenas as leis ordinárias é que não podem trancar a pauta. E ademais disso, mesmo no tocante às leis ordinárias, algumas delas, estão excepcionadas.

O art. 62, no inciso I, ao tratar das leis ordinárias que não podem ser objeto de medida provisória estabelece as leis ordinárias sobre nacionalidade, cidadania, e outros tantos temas que estão elencados no art. 62, inciso I. Então, nestas matérias também, digo eu, não há trancamento da pauta.


Terminada essa exaustiva explicação acerca da nova interpretação dada ao sobrestamento da pauta pelas MPs, convém frisar que o objetivo desta “mutação constitucional” visa nada mais que corroborar o princípio fundante e intangível da Separação de Poderes, dando maior liberdade ao Poder Legislativo e, ainda, sem excluir a função legislativa atípica dada, neste caso, ao Presidente da República.

Tal opinião encontrou guarida na decisão liminar proferida pelo Min. Celso de Mello nos autos do Mandado de Segurança nº 27.931, segundo o qual, a “solução interpretativa dada pelo Senhor Presidente da Câmara dos Deputados encerraria uma reposta jurídica qualitativamente superior àquela que busca sustentar – e, mais grave, preservar – virtual interdição das funções legislativas do Congresso Nacional”.

Corrobora este entendimento o ministro, fundamentando que

A construção jurídica formulada pelo Senhor Presidente da Câmara dos Deputados, além de propiciar o regular desenvolvimento dos trabalhos legislativos no Congresso Nacional, parece demonstrar reverência ao texto constitucional, pois - reconhecendo a subsistência do bloqueio da pauta daquela Casa legislativa quanto às proposições normativas que veiculem matéria passível de regulação por medidas provisórias (não compreendidas, unicamente, aquelas abrangidas pela cláusula de pré-exclusão inscrita no art. 62, § 1º, da Constituição, na redação dada pela EC nº 32/2001) – preserva, íntegro, o poder ordinário de legislar atribuído ao Parlamento.

Este novo paradigma interpretativo se coaduna completamente, como se pode perceber, com o Princípio da Separação dos Poderes, pois é conseqüência da busca incessante pelo Poder Legislativo brasileiro de uma maneira para exercer sua atividade primária. Não é concebível que haja supremacia do Poder Executivo sobre os demais, muito menos que tenha este faculdade de expedir MPs de modo excessivo, sobrestando a pauta da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

A regra que insculpida no § 6º do art. 62 CRFB/88, que “paralisa” o andamento do Congresso, deve ceder diante do postulado fundamental da Separação de Poderes (art. 2º c/c 60, § 4º, III, CRFB/88).

Conforme ensinamento Virgílio Afonso da Silva [20], os princípios constitucionais contêm uma carga valorativa (diga-se supremacia ética) superior às regras, ainda que constitucionais. Dessa forma, o princípio fundamental, na divisão de Luís Roberto Barroso, reitere-se, com seu núcleo fundamental intangível, ao se deparar em confronto com uma regra, cuja aplicação se dá na modalidade “tudo ou nada”, deva ceder diante da aplicação daquele.

Utilizando-se de princípios interpretativos (ponderação de valores – igualmente tutelados), cujo escopo, segundo George Marmelstein é “ajudar a encontrar respostas racionalmente fundamentadas, com base em parâmetros constitucionalmente aceitos, além de possibilita maior transparência e objetividade na argumentação jurídica e no processo decisório”, pode-se chegar à conclusão que a edição continuada de MPs, sobestando a pauta do Congresso Nacional, macula irrazoavelmente o Princípio da Separação de Poderes.

Ora, se de acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello [23], o malferimento de um princípio (constitucional, diga-se de passagem) é bem pior que a violação de uma regra, haja vista que um princípio faz parte de um sistema e, por conseguinte, ferir-se-iam diversos outros princípios, é de se considerar plausível (ou ao menos prudente) a interpretação oriunda da Câmara dos Deputados.

Destarte, o novo caminho aberto com tal mutação constitucional advinda da interpretação dada pelo Poder Legislativo ao instituto das Medidas Provisórias mostra-se em consonância com os princípios fundamentais e com toda a ordem constitucional. É, outrossim, fruto da constante síntese e controle dos Poderes, manifestada pelo sistema de “freios e contrapesos”. Portanto, é legítimo que as MPs tranquem apenas a deliberação atinente às leis ordinárias.



Conclusão


Diante de todo o quadro exposto, pode-se fazer a seguinte síntese:

O Poder é um só, e é corolário da soberania popular. Seu exercício, no entanto, é dividido em funções (Executivo, Legislativo e Judiciário). Cada função exerce uma atividade típica e outras atípicas, a fim de se estabelecer a harmonia entre cada uma (sistema de freios e contra-pesos).

A Medida provisória é essencial para a existência de um Estado Democrático de Direito e de bem-estar social, pois muitas vezes o Poder Executivo precisa adotar medidas que tornar-se-iam ineficazes se se passasse por todo o processo legislativo ordinário. Seu abuso, no entanto, merece ser rechaçado da ordem jurídica, tanto que há meios de contenção destes, tal como a análise dos requisitos de urgência e relevância pelo Poder Legislativo e o controle de excessos pelo Poder Judiciário.

Por muito tempo interpretou-se o artigo 62, § 6º, da Constituição da República de forma declarativa, sobrestando todas as deliberações legislativas quando uma MP que não estivesse concluída a votação ultrapassasse o prazo de 45 dias.

No entanto, tal interpretação estava subtraindo do Poder Legislativo sua função primordial: a atividade legislativa.

A solução encontrada pela Câmara dos Deputados, através da Questão de Ordem nº 411/2009, no sentido de que as MPs que ainda estivessem para ser votadas depois de quarenta e cinco dias somente sobrestariam as leis de procedimento ordinário a qual são objetos das referidas Medidas, mostra-se perfeitamente subsumida na ordem constitucional e nos princípios hodiernos.

Tal mutação constitucional é necessária na medida em que “desafoga” o Poder Legislativo, podendo este exercer suas atividades com maior liberdade, sem dependência dos mandos e desmandos do Poder Executivo.



por: Renan Barros dos Reis

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