"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sábado, 25 de dezembro de 2010

O Brasil precisa de uma Constituição



Provavelmente, muitos leitores pensarão que algo está errado com o título deste artigo. Afinal, em 1988 culminou no Brasil um processo constituinte que gerou a famosa constituição de 88, tão citada quanto emendada. Não, caro leitor, o título não está errado. A verdade é que o Brasil NÃO tem uma constituição. É o que eu pretendo demonstrar nessas mal traçadas linhas.

Infelizmente, parece que o legislador brasileiro, bem como o povo em geral não sabe distinguir uma constituição de uma lei. Isso que costumamos chamar de “constituição” não é o que conceitualmente se chama assim. É uma lei. E, por uma ficção jurídica, essa lei vale mais do que as outras. Mas é uma lei, não é uma constituição.

Uma constituição de verdade é uma carta de princípios. Esses princípios servem sim para impor limites às leis. Mas sua função não se limita a isso. Vai muito mais além. Essa carta de princípios é algo que deve ser conhecida e vivida no dia-a-dia das pessoas em geral. E, para isso, esses princípios devem estar escritos em linguagem acessível a um público leigo em direito. Deve ser ensinado nas escolas e vivido, não apenas nos tribunais, mas em todas as relações sociais.

Vejamos alguns exemplos. A seção IV do título VI da constituição federal tem o seguinte título:

Seção IV

DOS IMPOSTOS DOS ESTADOS E DO DISTRITO FEDERAL

Será que é razoável que exista numa constituição federal uma seção destinada a determinar que impostos um estado-membro pode ou não cobrar? Será este um assunto a ser disciplinado pelo Direito Constitucional? Ainda sobre tributos podemos citar:

Art. 82. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem instituir Fundos de Combate á Pobreza, com os recursos de que trata este artigo e outros que vierem a destinar, devendo os referidos Fundos ser geridos por entidades que contem com a participação da sociedade civil.

§ 1º Para o financiamento dos Fundos Estaduais e Distrital, poderá ser criado adicional de até dois pontos percentuais na alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS, sobre os produtos e serviços supérfluos e nas condições definidas na lei complementar de que trata o art. 155, § 2º, XII, da Constituição, não se aplicando, sobre este percentual, o disposto no art. 158, IV, da Constituição.

§ 2º Para o financiamento dos Fundos Municipais, poderá ser criado adicional de até meio ponto percentual na alíquota do Imposto sobre serviços ou do imposto que vier a substituí-lo, sobre serviços supérfluos.

Veja que primor: este dispositivo constitucional não apenas cria um fundo estadual e outro municipal para o combate à pobreza e ainda cita nominalmente os impostos estadual e municipal que devem contribuir para o mesmo, estabelecendo alíquotas sobre esses impostos para o fundo que devem financiar. Será este o tipo de matéria da qual uma constituição deve tratar? Esse tipo de matéria não cabe nem mesmo numa constituição estadual ou numa lei orgânica municipal. Esse tipo de matéria deve ser tratada em lei ordinária, estadual ou municipal, respectivamente.

Agora vejamos o outro lado desta moeda. Há um princípio geral do direito muito conhecido que estabelece que leis que descrevem tipos penais não podem ser objeto de interpretação analógica ou extensiva. Isto consta em livros de doutrina e é ensinado nas faculdades de Direito. Mas não há nenhum dispositivo constitucional estabelecendo isso. Assim, se algum juiz der uma interpretação analógica para enquadrar um ato num tipo penal e, assim, condenar um réu por ter cometido um ato análogo a um crime, esse réu não terá um dispositivo constitucional a embasar um recurso contra essa decisão teratológica. Terá que confiar exclusivamente nos livros de doutrina que certamente têm força moral, mas não têm força de lei.

Mas não acabou ainda. Como disse antes, uma constituição deve ser uma carta de princípios que devem ser aplicados em todas as relações sociais. Se é assim, então ela não deve ser conhecida exclusivamente por juízes, advogados e outros operadores do Direito. Ela deve ser amplamente conhecida pela população em geral. Somente assim ela poderá ser vivida em ambientes outros que não a rígida rotina dos tribunais.

Veja o que diz o inciso LIX do artigo 5º da Constituição Federal:

LIX - será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal;

Não pretendo entrar no mérito da disposição em si. Nem mesmo discutir se esse tipo de assunto deve ou não constar numa constituição. O que eu quero ressaltar é que a própria constituição estabelece isso como um direito fundamental do cidadão. Se é assim, então deve ser amplamente conhecido, para que possa ser praticado pelos cidadãos em geral, titulares deste direito. 

Um advogado não terá dificuldades em comprender o significado deste dispositivo. Mas experimente pedir a uma pessoa sem formação na área do Direito para ler este dispositivo e pergunte-lhe se ele compreende que direito fundamental está garantido por ele. Um singelo exemplo de um direito fundamental garantido em sede constitucional a todo e qualquer cidadão brasileiro que a imensa maioria da população não tem sequer condições de compreender.

É isso que eu quero dizer quando digo que o Brasil precisa de uma constituição. Nosso país jamais teve nada que se parecesse com isso. Talvez porque jamais tenhamos tido uma Assembléia Nacional Constituinte. Sim, porque as constituições brasileiras que não foram impostas por um executivo autoritário foram redigidas pelo Congresso Nacional, não por uma Assembléia Nacional Constituinte.

Quando finalmente conseguirmos elaborar nossa primeira constituição, talvez deixemos de ser o país das leis que não “pegam”. Talvez o povo finalmente compreenda que as leis existem em seu benefício, não para criar-lhe dificuldades, tormentos e aborrecimentos. E talvez, por fim, um brasileiro passe a ter mais em comum com seus compatriotas do que meramente uma paixão pela seleção canarinho.




 por: Mario Barbosa Villas Boas

Engenheiro e advogado no Rio de Janeiro

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