"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

domingo, 26 de junho de 2011

D. Pedro II e os valores republicanos



D. Pedro II e família em Petrópolis, em foto de Otto Hees, a última antes do fim do Império.
Da esquerda para a direita: a imperatriz, D. Antonio, a princesa Isabel, o imperador, D. Pedro Augusto (filho de D. Leopoldina, duquesa de Saxe), D. Luís, o conde D'Eu e D. Pedro de Alcântara (príncipe do Grão-Pará)


O cumprimento das leis, o respeito ao dinheiro público e a liberdade de expressão marcaram o governo do monarca

Três frases a propósito da monarquia sempre me deram o que pensar. A primeira, ouvi do maior historiador argentino vivo, Tulio Halperin Donghi: “O império brasileiro foi um luxo”. 


A segunda foi escrita por outro grande historiador, agora brasileiro, Sérgio Buarque de Holanda, no último volume da História Geral da Civilização Brasileira, por ele organizada: “O império dos fazendeiros (...) só começa no Brasil com a queda do Império”. 


A terceira foram as várias declarações de norte-americanos quando da viagem do imperador aos Estados Unidos exaltando seu republicanismo e seu ianquismo. A essas últimas poderiam ser acrescentadas as de outros estrangeiros, como o presidente da Venezuela Rojas Paúl e o poeta cubano Julian del Casal. O primeiro comentou ao ficar sabendo da queda do Império: “Foi-se a única República da América”; o segundo colocou na boca do imperador a frase “fui seu [do Brasil] primeiro republicano”.


São afirmações de pessoas insuspeitas que contradizem boa parte da historiografia brasileira sobre o Império e o imperador. Para esta última, o Império era o governo dos fazendeiros e donos de escravos, o imperador ou era déspota dos anos de 1860 ou o Pedro Banana da última década do século. 


Na contracorrente, Tulio Halperin Donghi fazia uma comparação entre o Brasil e os outros países latino-americanos no século XIX, pensando sobretudo na estabilidade política e no funcionamento regular das instituições representativas. Sérgio Buarque se referia ao não alinhamento do Estado imperial aos proprietários rurais. 


Os norte-americanos e outros, ao igualitarismo, ao despojamento, ao espírito público do imperador. Os que chamavam o Império de República pensavam, sobretudo, na liberdade de expressão existente no país.


Parte das características que distinguiam o Brasil dos vizinhos, como a unidade nacional e o grau mais atenuado de disputa pelo poder, dependia do parlamentarismo monárquico, por mais imperfeita que fosse sua execução, que D. Pedro II já encontrou a caminho da consolidação. Pode-se perguntar o que dependeu de sua ação e qual a consequência dela para o futuro do país.


O comportamento político do monarca foi marcado pelo escrupuloso cumprimento da Constituição e das leis, pelo respeito não menos escrupuloso ao dinheiro público, pela garantia da liberdade de expressão. Além de respeitar as leis, teve que levar em conta os grupos que controlavam a economia do país. Serviu como árbitro político entre esses grupos, intervindo em temas cruciais como a escravidão de maneira decidida, mas, para muitos, como Nabuco, demasiadamente lenta e cuidadosa.  


Não foi um absolutista, mas também não foi um político audacioso como o pai, apesar de governar sob uma Constituição presidencialista. Seu governo deixou uma tradição de valorização das instituições que, apesar de quebrada pelo golpe republicano, foi recuperada na Primeira República e talvez esteja viva até hoje, e legou um padrão de comportamento político que também sobreviveu nas primeiras décadas republicanas.


O que menos sobrevive hoje são os valores e atitudes republicanos. Na raiz deste retrocesso talvez esteja uma das falhas do sistema imperial, herdada pela Primeira República: a incapacidade de, depois de garantir a sobrevivência do Estado Nacional, promover a expansão da cidadania política. A elite política se manteve limitada e fechada, e o povo só foi entrar de fato no sistema político depois do Estado Novo. 


O caráter tardio e rápido da absorção do povo e da ampliação da elite, agravado pelos anos de ditadura, inviabilizou a transmissão de comportamentos e valores. O apelo à republicanização, feito várias vezes ao longo da história do regime, e essencial para garantir sua democratização, pode ter ainda hoje, como uma de suas referências, o exemplo de Pedro II. Republicanizando-se, o regime completará a herança imperial unindo República e democracia, e realizará, até onde isso é possível, a tarefa de construção nacional.

José Murilo de Carvalho é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de Os bestializados

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