Na hora de vender um carro que pode custar entre 105 mil (o modelo mais barato) e 570 mil reais (o mais caro), é natural que o vendedor tente cercar seus clientes de todo o conforto. E por conforto entenda-se, entre outras coisas, não ser importunado pela miséria ao seu redor. Afinal, por menos consciência social que as pessoas tenham, ser confrontado por uma criança vendendo balas ou pedindo dinheiro deixa qualquer um com culpa. Isso é o que deve ter passado pela cabeça do preconceituoso vendedor da concessionária BMW do Rio de Janeiro ao expulsar uma criança de sete anos de sua loja enquanto atendia os pais, interessados em comprar um carro.
Se o menino estava bem vestido, sabia se expressar e estava quietinho andando pela loja, a única explicação para a atitude do vendedor é o preconceito. O menino, filho adotivo de um casal branco (e certamente em boa situação financeira), é negro. A história rendeu matérias em jornais e emissoras de TV, mas a grande repercussão foi mesmo nas redes sociais, depois que a mãe criou a página “Preconceito não é mal-entendido, é crime”. Até domingo (27/1), a página de Priscila Celeste já contava com mais de 11 mil acessos ou, como se diz a linguagem do Facebook, a página foi “curtida” por 11 mil pessoas. Onze mil pessoas que reconhecem uma realidade sempre negada em nosso país: no Brasil existe preconceito de cor.
O bom serviço que a imprensa não presta
Como disse Zuenir Ventura em texto publicado no jornal O Globo:
“Episódios como o das babás discriminadas em clubes sociais e o da criança negra que foi destratada e quase expulsa de uma concessionária da BMW no Rio demonstram que o racismo, apesar de resolvido legalmente, já que é crime, ainda constitui um problema no dia-a-dia das relações interpessoais, onde às vezes se manifesta explicitamente.
O sociólogo Florestan Fernandes dizia que o brasileiro tem preconceito de ter preconceito. Em outras palavras, o Brasil seria um país com racismo, mas sem racistas, como revela uma pesquisa em que 87% das pessoas entrevistadas afirmaram haver racismo, mas só 4% se confessaram racistas. Porém, pior ainda do que essas atitudes explícitas, que pelo menos despertam repulsa, é a situação social, econômica e cultural da população não branca no país.
Tratadas com naturalidade, as desigualdades raciais no campo da saúde, da educação e do mercado de trabalho são tão iníquas que em alguns casos parecem saídas da novela “Lado a lado”, um retrato fiel e competente da luta contra a intolerância racial e religiosa após a abolição da escravatura e no começo da República. Apenas um exemplo: o risco de morte por doenças infecciosas é hoje 43% maior entre as crianças negras com menos de um ano de idade do que entre as brancas. Isso equivale a expulsar da cidadania, senão da vida, toda uma geração de negros.”
Discutir o assunto seriamente, e com maior frequência, seria um bom serviço prestado pela imprensa, que se limita a falar do assunto quando explode algum novo caso. Se um episódio rende 11 mil manifestações, é sinal de que as pessoas que interessam pelo tema.
Espaço necessário
Em artigo publicado pelo Estado de S.Paulo no domingo (27/1), a antropóloga Débora Diniz escreveu:
“Crianças negras são ainda invisíveis ao universo do consumo, o que pode parecer óbvio dada a sobreposição da desigualdade de classe à desigualdade racial no país: negros são mais pobres que brancos, um fato que alimenta intermináveis controvérsias sobre as causas da desigualdade, se seriam elas de renda ou raciais. A verdade é que as crianças negras não são invisíveis apenas na concessionária da BMW, mas em escolas, hospitais ou espaços de lazer, isto é, como futuros cidadãos à espera da proteção de uma sociedade que se define como livre do racismo.
Como em um experimento sociológico, o caso da família multirracial mostrou que a renda não é capaz de silenciar a rejeição racial: a criança se converteu em um ser abstrato, parte de uma massa de pedintes que incomodam os clientes ricos. Ao contrário do que imagina a loja da BMW, o mal-entendido não se resumiu ao diálogo entre o gerente e a família, mas entre quem imaginamos que somos como uma democracia racial e o que efetivamente fazemos com nossa diversidade racial.”
Quem sabe a imprensa resolve enfrentar o preconceito de frente e começa a dedicar um espaço maior à discussão do problema. Esperar que casos esporádicos tragam o assunto à pauta é muito pouco. Cada vez que o IBGE divulga dados sobre a população (suas condições de moradia, salário e educação) revela-se que os negros continuam vivendo numa situação pior que a dos brancos pobres. Mas o tema só ganha destaque quando alguém faz um boletim de ocorrência divulgando a discriminação. É muito pouco para tentar mudar uma situação que arrasta desde a escravidão.
Se há espaço para discutir o sucesso da música sertaneja (vide edição da Veja desta semana) e outros assuntos tão pouco relevantes, por que não dedicar algumas páginas para falar dessa parte da população que continua marginalizada? Ou será que não interessa à mídia reconhecer que somos, sim, um país racista?
Ligia Martins de Almeida
Se o menino estava bem vestido, sabia se expressar e estava quietinho andando pela loja, a única explicação para a atitude do vendedor é o preconceito. O menino, filho adotivo de um casal branco (e certamente em boa situação financeira), é negro. A história rendeu matérias em jornais e emissoras de TV, mas a grande repercussão foi mesmo nas redes sociais, depois que a mãe criou a página “Preconceito não é mal-entendido, é crime”. Até domingo (27/1), a página de Priscila Celeste já contava com mais de 11 mil acessos ou, como se diz a linguagem do Facebook, a página foi “curtida” por 11 mil pessoas. Onze mil pessoas que reconhecem uma realidade sempre negada em nosso país: no Brasil existe preconceito de cor.
O bom serviço que a imprensa não presta
Como disse Zuenir Ventura em texto publicado no jornal O Globo:
“Episódios como o das babás discriminadas em clubes sociais e o da criança negra que foi destratada e quase expulsa de uma concessionária da BMW no Rio demonstram que o racismo, apesar de resolvido legalmente, já que é crime, ainda constitui um problema no dia-a-dia das relações interpessoais, onde às vezes se manifesta explicitamente.
O sociólogo Florestan Fernandes dizia que o brasileiro tem preconceito de ter preconceito. Em outras palavras, o Brasil seria um país com racismo, mas sem racistas, como revela uma pesquisa em que 87% das pessoas entrevistadas afirmaram haver racismo, mas só 4% se confessaram racistas. Porém, pior ainda do que essas atitudes explícitas, que pelo menos despertam repulsa, é a situação social, econômica e cultural da população não branca no país.
Tratadas com naturalidade, as desigualdades raciais no campo da saúde, da educação e do mercado de trabalho são tão iníquas que em alguns casos parecem saídas da novela “Lado a lado”, um retrato fiel e competente da luta contra a intolerância racial e religiosa após a abolição da escravatura e no começo da República. Apenas um exemplo: o risco de morte por doenças infecciosas é hoje 43% maior entre as crianças negras com menos de um ano de idade do que entre as brancas. Isso equivale a expulsar da cidadania, senão da vida, toda uma geração de negros.”
Discutir o assunto seriamente, e com maior frequência, seria um bom serviço prestado pela imprensa, que se limita a falar do assunto quando explode algum novo caso. Se um episódio rende 11 mil manifestações, é sinal de que as pessoas que interessam pelo tema.
Espaço necessário
Em artigo publicado pelo Estado de S.Paulo no domingo (27/1), a antropóloga Débora Diniz escreveu:
“Crianças negras são ainda invisíveis ao universo do consumo, o que pode parecer óbvio dada a sobreposição da desigualdade de classe à desigualdade racial no país: negros são mais pobres que brancos, um fato que alimenta intermináveis controvérsias sobre as causas da desigualdade, se seriam elas de renda ou raciais. A verdade é que as crianças negras não são invisíveis apenas na concessionária da BMW, mas em escolas, hospitais ou espaços de lazer, isto é, como futuros cidadãos à espera da proteção de uma sociedade que se define como livre do racismo.
Como em um experimento sociológico, o caso da família multirracial mostrou que a renda não é capaz de silenciar a rejeição racial: a criança se converteu em um ser abstrato, parte de uma massa de pedintes que incomodam os clientes ricos. Ao contrário do que imagina a loja da BMW, o mal-entendido não se resumiu ao diálogo entre o gerente e a família, mas entre quem imaginamos que somos como uma democracia racial e o que efetivamente fazemos com nossa diversidade racial.”
Quem sabe a imprensa resolve enfrentar o preconceito de frente e começa a dedicar um espaço maior à discussão do problema. Esperar que casos esporádicos tragam o assunto à pauta é muito pouco. Cada vez que o IBGE divulga dados sobre a população (suas condições de moradia, salário e educação) revela-se que os negros continuam vivendo numa situação pior que a dos brancos pobres. Mas o tema só ganha destaque quando alguém faz um boletim de ocorrência divulgando a discriminação. É muito pouco para tentar mudar uma situação que arrasta desde a escravidão.
Se há espaço para discutir o sucesso da música sertaneja (vide edição da Veja desta semana) e outros assuntos tão pouco relevantes, por que não dedicar algumas páginas para falar dessa parte da população que continua marginalizada? Ou será que não interessa à mídia reconhecer que somos, sim, um país racista?
Ligia Martins de Almeida
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