Propostas para uma jurisdição constitucional democrática
1. Democracia e direitos fundamentais.
O Estado democrático constitucional de direito contemporâneo vive um instigante paradoxo: a proteção dos direitos fundamentais fixados em benefício do cidadão conduzem a uma constante restrição do poder político de titularidade do próprio povo; e, em enorme medida, tal restrição do poder político, que é desempenhado em regra pelos representantes parlamentares dos próprios cidadãos, é feita através de um Poder que não dispõe de representatividade popular, o Judiciário.
Essa inexorável relação entre democracia e direitos fundamentais foi muito bem captada por Robert Alexy, para quem se há uma limitação do legislador através da fixação de um rol de direitos fundamentais que definem aquilo que o legislador pode ou não pode fazer – com a finalidade de retirar os direitos fundamentais das investidas das maiorias parlamentares que exercitam momentaneamente o poder político, então há uma constante colisão entre o princípio democrático e tais direitos fundamentais.
Constante colisão esta que, segundo o próprio autor, mostra-se como um “problema inevitável e permanente”, à medida que a própria Constituição distribui competências nesse campo tanto ao legislador com legitimação democrática direta e responsabilidade política – em razão da possibilidade de não-reeleição – quanto aos juízes constitucionais indiretamente legitimados e não destituíveis eleitoralmente.
Para Alexy, essa constante litigiosidade entre a democracia e o estabelecimento de direitos fundamentais demonstra uma natureza dúbia dos direitos fundamentais, sendo eles tanto democráticos quanto antimajoritários, pois, em essência, tais direitos de ordem constitucional estabelecem posições jurídicas subjetivas fundamentais dos indivíduos que não poderão ser decididas pela regra majoritária parlamentar.
De ver-se que a democracia atualmente desejada, portanto, é uma democracia constitucional, pluralista e tolerante em que, por meio dos direitos fundamentais declarados para todos os indivíduos e organizações que compõem a sociedade, assegura-se uma “democracia de direitos” que impede o esquecimento de lembranças históricas nem tão distantes de que “apesar do seu caráter fluido e aberto, a democracia (meramente representativa), paradoxalmente, traz em seu bojo a potencialidade da determinação social, da identificação do povo com o ‘povo uno’, o fantasma totalitário, o perigo de seu contrário”.
A colisão do monopólio do poder de conformar o direito através da função legislativa com os direitos fundamentais normatizados pela Constituição mostra-se, então, apenas aparentemente antidemocrática, eis que a função antimajoritária dos direitos fundamentais é justamente preservar o pacto democrático plural e tolerante estipulado constitucionalmente.
2. A função antimajoritária da jurisdição constitucional.
A harmonização do tênue equilíbrio constitucional entre a representatividade majoritária ocasional da sociedade e o consenso democrático específico de maior grau qualitativo decorrente da Constituição é atribuída ao controle de constitucionalidade, especialmente à jurisdição constitucional, como uma decorrência natural do caráter jurídico-vinculante das Constituições contemporâneas, em que estas se caracterizam como um conjunto de normas de maior hierarquia formal e de maior densidade político-jurídica, que, caso não observadas espontaneamente, deve ser imposto mediante coercibilidade pelos órgãos constitucionais responsáveis pelo controle de constitucionalidade, especialmente pelos juízes constitucionais.
Cabendo à jurisdição constitucional, como “condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito”, impor a rule of law capitaneada pela Constituição quando ela é inobservada pelos detentores do poder político, somos apresentados a um arranjo político-constitucional em que se faz uma complexa combinação entre a proteção de direitos fundamentais, a supremacia da Constituição, o império da lei e mecanismos institucionais de controle de constitucionalidade.
Portanto, quando em uma democracia baseada em direitos fundamentais humanistas não há a observância espontânea de tais direitos, a função de sua garantia cabe especialmente à jurisdição constitucional, a qual terá a dura missão de equilibrar, como dois lados da mesma moeda desejável ao fortalecimento da vida em sociedade, o exercício do poder político por meio da regra da democracia e a manutenção de direitos fundamentais que devem proteger pluralmente não só a maioria dos cidadãos, mas todos os cidadãos, inclusive os que compõem grupos sociais minoritários, pois o objetivo do constitucionalismo é harmonizar esses ideais de democracia e direitos fundamentais “até um “ponto ótimo” de equilíbrio institucional e desenvolvimento da sociedade política, sendo tal ponto a medida de sucesso de uma Constituição”.
3. Nossa jurisdição constitucional é democrática?
Mesmo diante da consagração contemporânea dos direitos fundamentais e do constitucionalismo, ainda existem questionamentos se a jurisdição constitucional realizada por agentes públicos que não se submetem a um processo de escolha democrática majoritária e por um Poder não sujeito aos critérios tradicionais de controle democrático goza de legitimidade democrática para rever atos normativos produzidos pelos representantes do próprio povo.
E até que são questionamentos teoricamente plausíveis se considerarmos aquele aparente paradoxo democrático, sob o qual uma Constituição democrática, a um só tempo, legitima tanto a prevalência de direitos fundamentais como limites ao exercício do poder político como o monopólio da produção do direito positivado pelo legislador democraticamente eleito.
Sabe-se que existem diversas teorias quanto à legitimidade democrática da jurisdição constitucional, graduando-se as diversas posições doutrinárias sobre o tema desde a total rejeição de tal legitimidade ao judicial review até o amplo incentivo à realização da jurisdição constitucional, sob um nítido fomento à adoção de posturas ativistas pelo Poder Judiciário.
Nesse último campo, em nossa realidade constitucional, seria possível estipular que os principais fundamentos empregados para uma total rejeição da jurisdição constitucional, como via democrática de controle da constitucionalidade dos atos produzidos pelo legislador brasileiro, recaem sobre o processo não majoritário de escolha de nossos juízes constitucionais e a ausência de regular controle democrático posterior sobre suas decisões.
Quanto à caracterização não majoritária do processo de escolha de nossos juízes constitucionais, parece-nos que tal crítica não seja acertada quando se percebe que a jurisdição constitucional deve ser considerada sob a ideia de que a vontade da maioria ocasionalmente detentora do poder político não pode prevalecer sobre as escolhas político-jurídicas feitas durante o consenso democrático privilegiado responsável pela Constituição.
É que se um dos fundamentos do controle de constitucionalidade, e consequentemente da jurisdição constitucional, é justamente impedir que a vontade da Carta seja modificada pelo legislador ordinário ou pelo próprio legislador constituinte derivado, neste caso além dos limites especificamente postos pela própria Constituição, e se isso importa que o controle seja exercido mediante a adoção de posturas contramajoritárias à vontade do legislador ordinário e das entidades governamentais com interesse nas medidas que violem a Constituição, não se deve estipular a escolha dos juízes constitucionais por um processo majoritário em que os mesmos sejam submetidos a todas as espécies de pressões e lobbys idênticos aos que normalmente ocorrem na escolha dos membros eleitos dos Poderes Executivo e Legislativo.
Na verdade, esse processo antimajoritário de escolha dos membros do Poder Judiciário revela-se como um importante mecanismo de manutenção da jurisdição constitucional como contraponto antimajoritário à vontade do legislador ocasional em nossa realidade, pois, ao contrário dos agentes políticos que compõem os demais Poderes, os agentes responsáveis pela jurisdição constitucional não são obrigados a “jogar para a galera”.
Não por outro motivo foi esse processo antimajoritário de escolha dos nossos juízes constitucionais fixado pelo mesmo pacto popular democrático que originou a CF/1988, pois é intenção da Constituição que a jurisdição seja uma garantia efetiva de proteção contramajoritária dos direitos fundamentais e de controle judicial dos atos produzidos pelo Poder Público.
Essa opção constitucional – e popular – por um sistema de controle de constitucionalidade baseado na jurisdição constitucional é decisiva para afastar eventuais alegações de deficit de legitimidade democrática à atribuição do controle do poder político pela jurisdição no Brasil, pois como o exercício de tal função pelo Poder Judiciário e o processo de escolha formal dos juízes constitucionais é expressamente prevista em nossa Constituição, “discussões quanto à inexistência da jurisdição constitucional, no Brasil, ou são fúteis, ou são de lege ferranda”.
4. Judicialização e ativismo judicial.
Mas, exatamente porque a jurisdição constitucional é essencial à manutenção da democracia e dos direitos fundamentais, é necessário questionar se, por ser fruto de um ideal democrático, a jurisdição constitucional não deve se submeter à ideia de democracia que a legitima?
Ainda que de resposta aparentemente óbvia, tal pergunta é extremamente pertinente, porque nem mesmo o estabelecimento de um sistema constitucional de controle judicial é suficiente para afastar a constatação de que as decisões proferidas pela jurisdição constitucional, especialmente no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), não tem sido suscetíveis de regular controle democrático a posteriore, parecendo-nos esse o “calcanhar de Aquiles” de um sistema que se pretende legitimamente democrático.
Especialmente se consideramos uma realidade institucional em que nosso STF tem se autodenominado como o “árbitro definitivo da constitucionalidade das leis”, como o único Poder da República brasileira que pode errar por último, como o Poder que sua “função institucional de “guarda da Constituição” (CF, art. 102, “caput”) confere-lhe o monopólio da última palavra em tema de exegese das normas positivadas no texto da Lei Fundamental”.
Daí será possível fazer outra pergunta: se essa é a posição institucional dos juízes constitucionais, especialmente do STF, quando a jurisdição decidir contra a Constituição, quem ou o quê poderá nos salvar?
Ora, trata-se de uma pergunta plausível! Afinal, a jurisdição, como qualquer função estatal, está exposta – ainda que em muito menor grau do que as funções estritamente políticas – a arroubos de arbítrio no uso do poder, sendo perfeitamente possível supor que os mesmos juízes que deveriam guardar a Constituição possam algum dia atentar contra ela.
Sim, porque se por um lado a jurisdição constitucional pode conferir eficaz proteção do Estado constitucional democrático de direito, por outro lado ela também poderia – como bem nos ensina a história antiga e recente de várias nações – ser um instrumento de aparelhamento da ordem democrática pelos detentores do poder político, servindo apenas para “legitimar” constitucionalmente arroubos e práticas nefandas do poder público intentadas contra a própria Carta e contra os direitos e liberdades mínimas dos cidadãos.
Essa possibilidade extrema de que os juízes constitucionais voltem-se contra a própria Constituição, somada a um forte incremento na participação do Poder Judiciário na vida institucional brasileira, pode representar um risco de que “o destino de toda e qualquer lei deixe de depender da própria vontade legislativa, passando a ser decidida pelos magistrados, com base em suas próprias preferências quanto ao assunto encampado pelo ato normativo contestado”, tornando plausível o receio de que, mais do que uma judicialização da política e/ou das relações sociais, a aceitação de uma ampla e irrestrita participação do Poder Judiciário na definição de todas as questões político-constitucionais possa estar gerando uma completa “politização da justiça”, tornando ainda maiores as chances de que o guardião da Constituição entenda-se como o seu único e exclusivo “Senhor”.
Essa “politização da justiça” decorrente de uma super-expansão da jurisdição constitucional pode sugestionar aos juízes constitucionais que eles podem deixar de realizar julgamentos jurídicos necessariamente calcados em argumentos e parâmetros de validade de natureza jurídico-constitucional para decidirem com base nos seus critérios pessoais e/ou sob critérios eminentemente políticos de atuação que não lhe são conferidos pela Constituição, passando-se, então, a defrontarmo-nos não mais com a judicialização das relações sociais, mas com fenômeno distinto denominado como ativismo judicial.
Ativismo judicial esse que, quaisquer que sejam suas intenções, pode representar um risco democrático, vez que, enquanto a judicialização decorre naturalmente de um arranjo institucional estipulado pela própria Constituição com base no judicial review, o ativismo judicial decorre de uma opção política do Poder Judiciário, em que este, ao invés de submeter-se ao direito vigente, entende-se como capaz de criar livremente o direito que lhe cabe aplicar, retirando da atuação do Poder Judiciário a margem de controlabilidade desejada pelo ideal constitucionalista na realização de qualquer função estatal.
Sob a percepção ativista do Poder Judiciário, teremos, então, ao invés da preponderância dos juízos jurídico-constitucionais dos juízes constitucionais sobre as opções feitas pelos demais Poderes e órgãos constitucionais sob um prisma eminentemente circunstancial e excepcional, uma preponderância política do Poder Judiciário baseada na constante substituição de juízos políticos, morais, sociológicos e técnicos do legislador e do administrador pelos juízos de mesma ordem dos juízes.
Ora, se é minimamente exigível que o exercício do poder político-jurídico conferido pela própria Constituição aos juízes para protegê-la seja limitado e controlado pelo “senhor” do poder, o povo, não se pode admitir o exercício da jurisdição constitucional ao largo de critérios jurídicos de conformação de validade de suas decisões, pois estas, como qualquer outra espécie de decisão estatal, deve basear-se na ideia de direito reinante sob a Constituição vigente, sob pena de que, sob a alegação de proteger-se direitos fundamentais, realize-se, na verdade, supressões indevidas do exercício do poder político pelos órgãos a quem a própria Constituição – ou melhor, o próprio povo – conferiu poder para tanto.
Essa percepção é referendada por um argumento muito simples: um dos fundamentos do judicial review é que justamente o Poder Judiciário seria o mais bem aparelhado e especializado para decidir questões político-jurídicas de cunho constitucional, justamente porque tal Poder possui características de atuação que o afastam do padrão de decisões baseadas em critérios de mera oportunidade e conveniência política.
Se assim o é, como se pode pretender que os juízes constitucionais possam furtar-se a decidir questões constitucionais sob critérios jurídicos de interpretação e sob pressupostos jurídicos que confiram limites de validade a sua função estatal de prestar jurisdição?
Não se pode, pois decisões judiciais baseadas no enfrentamento estritamente político ou pessoal de questões constitucionais afastam a função jurisdicional dos parâmetros político-jurídicos fixados pela própria Carta vigente e faz com que juízes e Tribunais acreditem ser legítimo autodenominarem-se como os únicos órgãos constitucionais com o poder de afirmar os padrões morais desejados pela Constituição, pelo que poderiam intervir até mesmo em decisões a que a própria Constituição e a legislação não lhe atribuem a última palavra.
5. Propostas de limitação democrática da jurisdição constitucional.
Tal perspectiva estritamente política e incontrolável da jurisdição constitucional nos instiga a tentar identificar alguns limites legitimamente passíveis de serem impostos àqueles que exercem a jurisdição constitucional, desde já ressaltando que, em vista da necessidade de adaptação de determinadas posturas oriundas de teorias estrangeiras a nossa realidade político-institucional, haverá – quando necessário – uma certa dose de adaptação de proposições produzidas em países onde já se superou, há muito tempo, muitos dos problemas sociais, políticos e culturais pelos quais ainda passamos no Brasil.
5.1. Judicial self-restraint.
Cabendo a cada órgão constitucional interpretar a Constituição e pautar sua atuação com base nela, ainda que, em caso de divergência, seja a palavra final do Judiciário, essa primazia não significa, porém, que toda e qualquer matéria só possa ser decidida pela jurisdição constitucional: ou porque não terá o Judiciário capacidade institucional para solucionar adequadamente determinadas questões que envolvam aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade que não têm no juiz o decisor mais qualificado ou porque ao Judiciário não é recomendável assumir o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis de sua decisão, pois, se de um lado, o juiz está preparado para realizar a justiça do caso concreto, a microjustiça, não tem ele condições, muitas vezes, de avaliar o impacto de suas decisões sobre um segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público.
Devem, portanto, os juízes, ao exercerem o controle substantivo da Constituição, moderarem-se e respeitarem as decisões políticas produzidas pelo legislador nessas condições, pois, no campo da constante colisão entre direitos fundamentais e a responsabilidade legislativa para a adequada conformação político-jurídica de tais direitos, havendo um caso concreto de colisão entre direitos fundamentais em que inexista um estado de arte (elementos fáticos, científicos, sociais, econômicos, tecnológicos, dentre outros) suficiente a gerar um grau de certeza e correção quanto a uma única decisão judicial para o referido caso, é recomendável que seja o mesmo estipulado como um hard case em que seja adotada uma postura de judicial self-restraint.
Entrementes, se a CF/1988 confere prioridade aos direitos fundamentais, estabelece a dignidade da pessoa humana como fundamento de nossa República e se nossa realidade institucional-constitucional ainda sequer conseguiu produzir a efetivação dos direitos de primeira dimensão, obviamente não estamos pregando que a adoção do judicial self-restraint aqui sugerido limite a função da jurisdição constitucional como desejam as teorias puramente procedimentalistas produzidas em outros países, sob conjunturas de desenvolvimento econômico, social, político e cultural completamente diversas de nossa realidade.
Ao contrário disso, nossa proposta é que o Poder Judiciário reconheça-se como limitado para decidir judicialmente questões estritamente políticas e/ou econômicas que pressupõem o conhecimento, a experiência e o manejo de informações e elementos que, naturalmente, escapam à função típica do Poder Judiciário e à formação profissional dos juízes.
5.2. Limitação da jurisdição constitucional pela própria Constituição que lhe cabe guardar – a vinculação constitucional.
Ainda que possa parecer uma enorme obviedade a pretensão de que o Poder Judiciário se submeta à Constituição no exercício de suas funções, especialmente quando esta função seja a de guardar a própria Carta, parece de enorme atualidade a orientação de Alexander Hamilton de que o poder de controlar a conformação de validade constitucional pelo Poder Judiciário não atribuiria a este a condição de ser superior ao Poder Legislativo, pois ambos os Poderes devem submeter-se às determinações constitucionais à medida que “o poder do povo (que institui a Constituição) é superior a ambos (os Poderes)” [45].
Há muito já se sustentava que cabendo às Cortes enunciar o sentido da Constituição, não poderia o Poder Judiciário apresentar “sua vontade” ao invés do seu julgamento, pois isso seria o mesmo que substituir as pretensões normativas do legislador constituinte originário pelas suas próprias pretensões judiciais, o que, obviamente, não pode ser o desejo da Constituição quando confere ao legislador o poder privativo de inovar a ordem jurídica positivada para concretizar suas “promessas constituintes”.
Esse antigo ensinamento é de extrema atualidade, por que se tem alegado que diante da necessária característica político-jurídica da jurisdição constitucional e de toda a diversidade e complexidade que marca a contemporânea aplicação do direito pelo juiz haveria que se suportar uma certa discricionariedade judicial sobre as regulações do legislador para o alcance da vontade constituinte.
Ao contrário! Obviamente, a Constituição não confere liberdade ao magistrado para atuar arbitrariamente em substituição ao legislador; primeiro, porque é o legislador o natural detentor da função constitucional de inovar a ordem jurídica; segundo, porque se de um lado a proteção da Constituição e toda a gama de “casos difíceis” que são submetidos à decisão do juiz exige-lhe postar-se como co-criador do direito a ser aplicado em cumprimento aos preceitos constitucionais vigentes, não se pode olvidar, por outro lado, que a atuação jurisdicional deve pautar-se por parâmetros jurídicos impostos pela própria Constituição criadora do direito justo.
Sim, porque conferir à jurisdição constitucional a competência de controlar o exercício do poder político não significa atribuir ao juiz constitucional o poder de realizar funções estritamente políticas, pois tal função de natureza jurisdicional deverá ser sempre realizada “de acordo com parâmetros materiais fixados nas normas e princípios da Constituição” à medida que só quando existem parâmetros jurídico-constitucionais de conformação do poder político podem os Tribunais apreciar a violação desses parâmetros.
Até porque a pretensão de um juiz ou Tribunal de, no exercício da função jurisdicional, atuar sob critérios eminentemente políticos, sem submeter-se aos ônus impostos pela Constituição aos agentes estritamente políticos – submissão a eleições, perda de mandato, impecheament, dentre outros – importaria em evidente violação ao sistema político-jurídico instituído pela Constituição vigente, pois esta não admite que o juiz, sob uma suposta aplicação criativa do direito, substitua as escolhas estritamente políticas feitas por outros órgãos constitucionais pelos seus próprios critérios pessoais de justiça ou por seus sentimentos de escolhas sociais mais adequadas.
Parece-nos correto, portanto, entender que o dever da jurisdição constitucional em decidir contra legem ou praeter legem – quando a lei ou a sua falta estejam em desconformidade com as determinações constitucionais -, não importa em conferir discricionariedade ao juiz, nem mesmo a uma Corte Constitucional, para decidir afastando-se da Constituição que fundamenta o direito vigente, sempre buscando neste os fundamentos para suas decisões, porque é um “direito fundamental do cidadão que o Estado cumpra a Constituição”, sendo obviamente aplicável essa aspiração constitucionalista de todo cidadão também ao Poder Judiciário.
A atribuição de controle de constitucionalidade ao juiz não importa em conferir-lhe liberdade para atuar ao largo do direito vigente, especialmente da própria Constituição, pois “a decisão e determinação do juiz, como decisão e determinação do Poder Judiciário do Estado, deve estar de acordo com o direito” e, diferentemente da função legislativa strictu sensu sob a qual se pode revogar uma norma positivada por meros juízos de discricionariedade, conveniência e/ou oportunismo – opa, oportunidade – política, “a atividade dos juízes constitucionais é uma atividade técnica de verificação da regularidade normativa segundo a Constituição” para corrigir a disfunção verificada no sistema jurídico com a produção de atos normativos e/ou concretos em desconformidade com a Carta.
Ou será que por que uma Corte tem o poder de “dizer o que é a Constituição”, teriam os juízes o poder para “dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa” em relação aos enunciados normativos fixados na Constituição positiva, criando uma Constituição paralela e desvirtuada das escolhas políticas feitas pelo legislador constituinte originário?
Ou por que os juízes são os guardiões da Constituição não se deve mais deles exigir que eles se vinculem às normas constitucionais positivas que lhes cabem guardar?
Ou conceber ao Judiciário, e especialmente ao STF a última palavra a respeito da interpretação e aplicação da CF/1988 implica em uma opção por tornar suas decisões infalíveis, sem que ao povo, o legítimo detentor do poder conferido aos juízes, seja conferida a possibilidade de exercer o seu poder legítimo e constitucional de contestar suas decisões?
Ou se responde contrariamente a tais questionamentos ou se torna tabula rasa a premissa constitucionalista de que é justamente essa vinculação ou esse pré-compromisso constitucional que não permite que se decida em qualquer direção no exercício do poder político, pois este é necessariamente passível de limitação pela própria Constituição.
Enfim, sejam quais forem as respostas que se confira aqueles questionamentos, uma coisa é certa: a atenção à vinculatividade do Texto Constitucional por parte de nossos juízes constitucionais evita questionamentos de legitimidade democrática nas decisões por eles proferidas, justamente porque assim o fazendo se impedem fissuras na institucionalidade constitucional vigente e evita-se que se decida contra a Constituição com o consequente esvaziamento de sua força normativa.
5.3. Respeito judicial à abertura do sistema de controle de constitucionalidade.
Existe nos Estados Unidos da América uma dualidade entre as teses por lá denominadas como “the final say” e “nonsupremacy”: enquanto na primeira entende-se que a Suprema Corte norte-americana deve, dentre suas funções, conferir a última interpretação da Constituição, coagindo os demais Poderes, na segunda corrente sustenta-se que a Corte deve respeitar as diversas interpretações produzidas pelos demais Poderes no âmbito de suas competências definidas pela própria Constituição, evitando-se com isso que o poder do povo de dispor sobre o direito possa ser cooptado por um possível despotismo do Judiciário.
Mesmo apesar de uma discussão de fundo a respeito das evidentes distinções existentes entre a Constituição norte-americana e a brasileira, parece-nos possível transplantar essa discussão tipicamente norte-americana para nossa realidade institucional quando verificamos que, apesar da CF/1988 reconhecer expressamente que a última palavra a respeito da interpretação e aplicação da Constituição é do STF, essa mesma Constituição, além de não estipular a Corte como um Tribunal exclusivamente constitucional – ao atribuir-lhe de forma apenas precípua a guarda da Carta –, prevê vários outros meios de controle de constitucionalidade, inclusive de natureza não jurisdicional.
Portanto, se deve o STF ter a última palavra a respeito da interpretação e da aplicação da Constituição, não se pode pretender caracterizar a Corte como uma espécie de super-guardião exclusivo da constitucionalidade, eis que cabe à Corte respeitar a vontade constitucional de não lhe atribuir exclusivamente tal poder, quando a própria CF/1988 não o estipulou como um Tribunal exclusivamente constitucional e estabeleceu um sistema de controle de constitucionalidade nitidamente misto.
Seria legítimo, portanto, pretender-se que, sob tal normatização constitucional, devam os juízes constitucionais respeitar a competência de cada um dos demais órgãos constitucionais denominados como “fiscais” da Constituição e reconhecer os limites dos efeitos de suas decisões, tal como definidos pela própria Carta e pela legislação processual vigente, pois isto contribui consideravelmente para a manutenção da legitimidade democrática que a própria Constituição atribui-lhe como principais, mas não exclusivos guardiões da Constituição.
Aliás, esse entendimento pode fundamentar-se, inclusive, no fato de tanto o legislador constituinte originário, quanto as diversas manifestações do legislador constituinte derivado que o sucederam, nos termos do art. 102, §2º da CF/1988, terem estabelecido que a eficácia vinculante das decisões do STF limita-se, subjetivamente, aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública brasileira.
É que assim o fazendo, a Constituição deu liberdade ao legislador e afastou-o do “autoritarismo que consistiria na criação de um Estado judicial (Jursdiktionstaat)” no Brasil, já que essa expressa definição dos limites da eficácia vinculante determinada pela CF/1988 deixou clara a pretensão de permitir-se um singular controle posterior da jurisdição constitucional pelos demais Poderes, seja através da possibilidade de que o Poder Legislativo emende a Constituição, através do exercício do amending power ou da possibilidade de que o Poder Legislativo e o Chefe do Poder Executivo – no exercício da função estritamente política de iniciativa legislativa – resistam às decisões proferidas pelos juízes constitucionais, através da edição de ato normativo idêntico ao que foi declarado inconstitucional, permitindo-se assim que cada órgão constitucional possua “a faculdade constitucional de persistir em sua interpretação constitucional, mesmo após decisão contrária do outro” .
Se, por um lado deve-se impedir que o Legislativo possa derrubar o poder dos juízes constitucionais mediante uma reforma meramente formal da Constituição, por outro lado “o peso do controle de constitucionalidade (por via judicial) deve ser compensado com o poder dos órgãos políticos de “responder” de algum modo aos juízes constitucionais, já que, de outro modo, a instituição do controle judicial perderia sua legitimidade” por não respeitar a condição do Legislador como intérprete/aplicador da Constituição, cujas “escolhas no campo da concretização constitucional merecem ser respeitadas, desde que não ultrapassem os limites demarcados pela Lei Maior”.
5.4. Fundamentação jurídica das decisões judiciais de controle de constitucionalidade.
Se não é mais admissível que se faça uma interpretação mecanicista da Constituição, também não será admissível que a interpretação político-jurídica da Constituição pelos juízes e Tribunais seja uma atividade essencialmente discricionária, pois elementos objetivos de interpretação apresentam-se como limites da interação entre os intérpretes e o Texto Constitucional e existem determinações constitucionais e processuais que impõem limites jurídicos ao exercício da função jurisdicional.
Nesse âmbito, a observância do direito processual constitucional vigente desempenha função de enorme relevância à legitimação da jurisdição constitucional à medida que o procedimento de tomada de qualquer decisão estatal deve ser conduzido de acordo com o direito processual vigente, pois, como um dos modos normais de agir do Estado, tem o processo a responsabilidade de influir nas decisões do Estado-juiz através da procedimentalização e da racionalização que lhes são inerentes.
É por isso que o poder de prestar a jurisdição constitucional não outorga aos órgãos do Poder Judiciário qualquer afastamento não controlável e injustificável dos limites processuais que lhe são estabelecidos pela própria Constituição e pela legislação processual infraconstitucional que a complementa, já que, sob um Estado constitucional democrático de direito, é inconcebível imaginar que o juiz, impositor da eficácia constitucional, a ela não se submeta por descumprir os seus preceitos processuais, instalando assim o arbítrio no exercício de sua função jurisdicional.
Mesmo que todas as circunstâncias contemporâneas imponham ao juiz constitucional uma atuação criativa e compromissada com os valores sociais normatizados pela Constituição, tal situação não o afasta da sua subordinação ao direito processual vigente, visto que este se trata de uma imposição da própria Constituição para limitar a atuação do Poder Judiciário e impedir o trato meramente pessoal das questões constitucionais e legais a serem decididas pelo Poder Judiciário.
Exemplo categórico de tal delimitação processual-constitucional imposta aos nossos juízes e Tribunais é a plena fundamentação e a ampla publicidade que se deve conferir às decisões judiciais, ttendo a determinação processual contida no art. 93, IX da CF/1988 a óbvia finalidade de tornar possível às partes, e a qualquer cidadão ou instituição, averiguar se a atuação jurisdicional detém racionalidade jurídica e se encontra suporte no ordenamento jurídico vigente, o que, em grande medida, evita eventual atuação judicial arbitrária.
Essa exigência processual-constitucional de publicidade, racionalidade e fundamentação das decisões judiciais, como direito garantia fundamental de todo cidadão brasileiro, inegavelmente contribui para impedir que o Poder Judiciário possa proferir uma decisão única e exclusivamente baseada em critérios pessoais de justiça dos juízes, eis que objetiva despersonificação da decisão judicial justamente para permitir a controlabilidade jurídica e crítica da decisão pelas partes e pelos demais cidadãos interessados.
É exatamente por isso que a decisão judicial de questões constitucionais somente encontrará legitimidade democrática se observados os preceitos constitucionais que determinam a adoção de um procedimento judicial decisório público, racional e fundamentado que permita a sua controlabilidade posterior e a ampla participação dos demais intérpretes da Constituição, estabelecendo assim um “diálogo em torno da Constituição” através do fomento de uma “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”.
6. Notas finais.
À guisa de conclusão, importante ressaltar que nem mesmo a proteção de direitos fundamentais pode fundamentar a pretensão de que a jurisdição constitucional seja exercida sem controle democrático anterior, concomitante e posterior, pois o poder estatal, seja de qual natureza for, só pode ser exercido nos termos da Constituição e em prol dos interesse dos cidadãos.
Por isso, é recomendável – ou melhor, exigível – que o Poder Judiciário esteja atento a alguns nortes de atuação que mantenham a função jurisdicional sob parâmetros de legitimidade democrática desejáveis pela Constituição, e pelo direito vigente, cabendo-lhe, ao exercer o controle substantivo da Constituição, moderar-se e respeitar as decisões políticas produzidas pelo legislador, sem olvidar que, mesmo detentor do papel de co-criador do direito, não pode afastar-se da vinculação e/ou do pré-compromisso fixado pela Constituição enquanto espécie de norma jurídica suprema, sendo o limite da sua interpretação constitucional o próprio texto das disposições constitucionais positivadas.
Afinal, justamente porque reconhecida a importância da jurisdição constitucional, deverá o Poder Judiciário observar o equilíbrio institucional desejado pela Constituição, através do reconhecimento judicial de que os demais órgãos constitucionais – especialmente o Legislador – precisam de mecanismos de “resposta” aos juízes constitucionais, já que de outro modo a instituição do controle judicial perde sua legitimidade.
Por fim, deve o Judiciário observar a normatização processual-constitucional que lhe é imposta, em especial a plena fundamentação e a ampla publicidade que se deve conferir às decisões judiciais, permitindo que às partes, e a qualquer cidadão ou instituição, seja possível averiguar a racionalidade e o acerto jurídico das decisões judiciais proferidas em nome da Constituição, permitindo, assim, uma jurisdição constitucional democrática, transparente e mais participativa.
DALTON SANTOS MORAIS é mestre em Direito Processual pela UFES
1. Democracia e direitos fundamentais.
O Estado democrático constitucional de direito contemporâneo vive um instigante paradoxo: a proteção dos direitos fundamentais fixados em benefício do cidadão conduzem a uma constante restrição do poder político de titularidade do próprio povo; e, em enorme medida, tal restrição do poder político, que é desempenhado em regra pelos representantes parlamentares dos próprios cidadãos, é feita através de um Poder que não dispõe de representatividade popular, o Judiciário.
Essa inexorável relação entre democracia e direitos fundamentais foi muito bem captada por Robert Alexy, para quem se há uma limitação do legislador através da fixação de um rol de direitos fundamentais que definem aquilo que o legislador pode ou não pode fazer – com a finalidade de retirar os direitos fundamentais das investidas das maiorias parlamentares que exercitam momentaneamente o poder político, então há uma constante colisão entre o princípio democrático e tais direitos fundamentais.
Constante colisão esta que, segundo o próprio autor, mostra-se como um “problema inevitável e permanente”, à medida que a própria Constituição distribui competências nesse campo tanto ao legislador com legitimação democrática direta e responsabilidade política – em razão da possibilidade de não-reeleição – quanto aos juízes constitucionais indiretamente legitimados e não destituíveis eleitoralmente.
Para Alexy, essa constante litigiosidade entre a democracia e o estabelecimento de direitos fundamentais demonstra uma natureza dúbia dos direitos fundamentais, sendo eles tanto democráticos quanto antimajoritários, pois, em essência, tais direitos de ordem constitucional estabelecem posições jurídicas subjetivas fundamentais dos indivíduos que não poderão ser decididas pela regra majoritária parlamentar.
De ver-se que a democracia atualmente desejada, portanto, é uma democracia constitucional, pluralista e tolerante em que, por meio dos direitos fundamentais declarados para todos os indivíduos e organizações que compõem a sociedade, assegura-se uma “democracia de direitos” que impede o esquecimento de lembranças históricas nem tão distantes de que “apesar do seu caráter fluido e aberto, a democracia (meramente representativa), paradoxalmente, traz em seu bojo a potencialidade da determinação social, da identificação do povo com o ‘povo uno’, o fantasma totalitário, o perigo de seu contrário”.
A colisão do monopólio do poder de conformar o direito através da função legislativa com os direitos fundamentais normatizados pela Constituição mostra-se, então, apenas aparentemente antidemocrática, eis que a função antimajoritária dos direitos fundamentais é justamente preservar o pacto democrático plural e tolerante estipulado constitucionalmente.
2. A função antimajoritária da jurisdição constitucional.
A harmonização do tênue equilíbrio constitucional entre a representatividade majoritária ocasional da sociedade e o consenso democrático específico de maior grau qualitativo decorrente da Constituição é atribuída ao controle de constitucionalidade, especialmente à jurisdição constitucional, como uma decorrência natural do caráter jurídico-vinculante das Constituições contemporâneas, em que estas se caracterizam como um conjunto de normas de maior hierarquia formal e de maior densidade político-jurídica, que, caso não observadas espontaneamente, deve ser imposto mediante coercibilidade pelos órgãos constitucionais responsáveis pelo controle de constitucionalidade, especialmente pelos juízes constitucionais.
Cabendo à jurisdição constitucional, como “condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito”, impor a rule of law capitaneada pela Constituição quando ela é inobservada pelos detentores do poder político, somos apresentados a um arranjo político-constitucional em que se faz uma complexa combinação entre a proteção de direitos fundamentais, a supremacia da Constituição, o império da lei e mecanismos institucionais de controle de constitucionalidade.
Portanto, quando em uma democracia baseada em direitos fundamentais humanistas não há a observância espontânea de tais direitos, a função de sua garantia cabe especialmente à jurisdição constitucional, a qual terá a dura missão de equilibrar, como dois lados da mesma moeda desejável ao fortalecimento da vida em sociedade, o exercício do poder político por meio da regra da democracia e a manutenção de direitos fundamentais que devem proteger pluralmente não só a maioria dos cidadãos, mas todos os cidadãos, inclusive os que compõem grupos sociais minoritários, pois o objetivo do constitucionalismo é harmonizar esses ideais de democracia e direitos fundamentais “até um “ponto ótimo” de equilíbrio institucional e desenvolvimento da sociedade política, sendo tal ponto a medida de sucesso de uma Constituição”.
3. Nossa jurisdição constitucional é democrática?
Mesmo diante da consagração contemporânea dos direitos fundamentais e do constitucionalismo, ainda existem questionamentos se a jurisdição constitucional realizada por agentes públicos que não se submetem a um processo de escolha democrática majoritária e por um Poder não sujeito aos critérios tradicionais de controle democrático goza de legitimidade democrática para rever atos normativos produzidos pelos representantes do próprio povo.
E até que são questionamentos teoricamente plausíveis se considerarmos aquele aparente paradoxo democrático, sob o qual uma Constituição democrática, a um só tempo, legitima tanto a prevalência de direitos fundamentais como limites ao exercício do poder político como o monopólio da produção do direito positivado pelo legislador democraticamente eleito.
Sabe-se que existem diversas teorias quanto à legitimidade democrática da jurisdição constitucional, graduando-se as diversas posições doutrinárias sobre o tema desde a total rejeição de tal legitimidade ao judicial review até o amplo incentivo à realização da jurisdição constitucional, sob um nítido fomento à adoção de posturas ativistas pelo Poder Judiciário.
Nesse último campo, em nossa realidade constitucional, seria possível estipular que os principais fundamentos empregados para uma total rejeição da jurisdição constitucional, como via democrática de controle da constitucionalidade dos atos produzidos pelo legislador brasileiro, recaem sobre o processo não majoritário de escolha de nossos juízes constitucionais e a ausência de regular controle democrático posterior sobre suas decisões.
Quanto à caracterização não majoritária do processo de escolha de nossos juízes constitucionais, parece-nos que tal crítica não seja acertada quando se percebe que a jurisdição constitucional deve ser considerada sob a ideia de que a vontade da maioria ocasionalmente detentora do poder político não pode prevalecer sobre as escolhas político-jurídicas feitas durante o consenso democrático privilegiado responsável pela Constituição.
É que se um dos fundamentos do controle de constitucionalidade, e consequentemente da jurisdição constitucional, é justamente impedir que a vontade da Carta seja modificada pelo legislador ordinário ou pelo próprio legislador constituinte derivado, neste caso além dos limites especificamente postos pela própria Constituição, e se isso importa que o controle seja exercido mediante a adoção de posturas contramajoritárias à vontade do legislador ordinário e das entidades governamentais com interesse nas medidas que violem a Constituição, não se deve estipular a escolha dos juízes constitucionais por um processo majoritário em que os mesmos sejam submetidos a todas as espécies de pressões e lobbys idênticos aos que normalmente ocorrem na escolha dos membros eleitos dos Poderes Executivo e Legislativo.
Na verdade, esse processo antimajoritário de escolha dos membros do Poder Judiciário revela-se como um importante mecanismo de manutenção da jurisdição constitucional como contraponto antimajoritário à vontade do legislador ocasional em nossa realidade, pois, ao contrário dos agentes políticos que compõem os demais Poderes, os agentes responsáveis pela jurisdição constitucional não são obrigados a “jogar para a galera”.
Não por outro motivo foi esse processo antimajoritário de escolha dos nossos juízes constitucionais fixado pelo mesmo pacto popular democrático que originou a CF/1988, pois é intenção da Constituição que a jurisdição seja uma garantia efetiva de proteção contramajoritária dos direitos fundamentais e de controle judicial dos atos produzidos pelo Poder Público.
Essa opção constitucional – e popular – por um sistema de controle de constitucionalidade baseado na jurisdição constitucional é decisiva para afastar eventuais alegações de deficit de legitimidade democrática à atribuição do controle do poder político pela jurisdição no Brasil, pois como o exercício de tal função pelo Poder Judiciário e o processo de escolha formal dos juízes constitucionais é expressamente prevista em nossa Constituição, “discussões quanto à inexistência da jurisdição constitucional, no Brasil, ou são fúteis, ou são de lege ferranda”.
4. Judicialização e ativismo judicial.
Mas, exatamente porque a jurisdição constitucional é essencial à manutenção da democracia e dos direitos fundamentais, é necessário questionar se, por ser fruto de um ideal democrático, a jurisdição constitucional não deve se submeter à ideia de democracia que a legitima?
Ainda que de resposta aparentemente óbvia, tal pergunta é extremamente pertinente, porque nem mesmo o estabelecimento de um sistema constitucional de controle judicial é suficiente para afastar a constatação de que as decisões proferidas pela jurisdição constitucional, especialmente no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), não tem sido suscetíveis de regular controle democrático a posteriore, parecendo-nos esse o “calcanhar de Aquiles” de um sistema que se pretende legitimamente democrático.
Especialmente se consideramos uma realidade institucional em que nosso STF tem se autodenominado como o “árbitro definitivo da constitucionalidade das leis”, como o único Poder da República brasileira que pode errar por último, como o Poder que sua “função institucional de “guarda da Constituição” (CF, art. 102, “caput”) confere-lhe o monopólio da última palavra em tema de exegese das normas positivadas no texto da Lei Fundamental”.
Daí será possível fazer outra pergunta: se essa é a posição institucional dos juízes constitucionais, especialmente do STF, quando a jurisdição decidir contra a Constituição, quem ou o quê poderá nos salvar?
Ora, trata-se de uma pergunta plausível! Afinal, a jurisdição, como qualquer função estatal, está exposta – ainda que em muito menor grau do que as funções estritamente políticas – a arroubos de arbítrio no uso do poder, sendo perfeitamente possível supor que os mesmos juízes que deveriam guardar a Constituição possam algum dia atentar contra ela.
Sim, porque se por um lado a jurisdição constitucional pode conferir eficaz proteção do Estado constitucional democrático de direito, por outro lado ela também poderia – como bem nos ensina a história antiga e recente de várias nações – ser um instrumento de aparelhamento da ordem democrática pelos detentores do poder político, servindo apenas para “legitimar” constitucionalmente arroubos e práticas nefandas do poder público intentadas contra a própria Carta e contra os direitos e liberdades mínimas dos cidadãos.
Essa possibilidade extrema de que os juízes constitucionais voltem-se contra a própria Constituição, somada a um forte incremento na participação do Poder Judiciário na vida institucional brasileira, pode representar um risco de que “o destino de toda e qualquer lei deixe de depender da própria vontade legislativa, passando a ser decidida pelos magistrados, com base em suas próprias preferências quanto ao assunto encampado pelo ato normativo contestado”, tornando plausível o receio de que, mais do que uma judicialização da política e/ou das relações sociais, a aceitação de uma ampla e irrestrita participação do Poder Judiciário na definição de todas as questões político-constitucionais possa estar gerando uma completa “politização da justiça”, tornando ainda maiores as chances de que o guardião da Constituição entenda-se como o seu único e exclusivo “Senhor”.
Essa “politização da justiça” decorrente de uma super-expansão da jurisdição constitucional pode sugestionar aos juízes constitucionais que eles podem deixar de realizar julgamentos jurídicos necessariamente calcados em argumentos e parâmetros de validade de natureza jurídico-constitucional para decidirem com base nos seus critérios pessoais e/ou sob critérios eminentemente políticos de atuação que não lhe são conferidos pela Constituição, passando-se, então, a defrontarmo-nos não mais com a judicialização das relações sociais, mas com fenômeno distinto denominado como ativismo judicial.
Ativismo judicial esse que, quaisquer que sejam suas intenções, pode representar um risco democrático, vez que, enquanto a judicialização decorre naturalmente de um arranjo institucional estipulado pela própria Constituição com base no judicial review, o ativismo judicial decorre de uma opção política do Poder Judiciário, em que este, ao invés de submeter-se ao direito vigente, entende-se como capaz de criar livremente o direito que lhe cabe aplicar, retirando da atuação do Poder Judiciário a margem de controlabilidade desejada pelo ideal constitucionalista na realização de qualquer função estatal.
Sob a percepção ativista do Poder Judiciário, teremos, então, ao invés da preponderância dos juízos jurídico-constitucionais dos juízes constitucionais sobre as opções feitas pelos demais Poderes e órgãos constitucionais sob um prisma eminentemente circunstancial e excepcional, uma preponderância política do Poder Judiciário baseada na constante substituição de juízos políticos, morais, sociológicos e técnicos do legislador e do administrador pelos juízos de mesma ordem dos juízes.
Ora, se é minimamente exigível que o exercício do poder político-jurídico conferido pela própria Constituição aos juízes para protegê-la seja limitado e controlado pelo “senhor” do poder, o povo, não se pode admitir o exercício da jurisdição constitucional ao largo de critérios jurídicos de conformação de validade de suas decisões, pois estas, como qualquer outra espécie de decisão estatal, deve basear-se na ideia de direito reinante sob a Constituição vigente, sob pena de que, sob a alegação de proteger-se direitos fundamentais, realize-se, na verdade, supressões indevidas do exercício do poder político pelos órgãos a quem a própria Constituição – ou melhor, o próprio povo – conferiu poder para tanto.
Essa percepção é referendada por um argumento muito simples: um dos fundamentos do judicial review é que justamente o Poder Judiciário seria o mais bem aparelhado e especializado para decidir questões político-jurídicas de cunho constitucional, justamente porque tal Poder possui características de atuação que o afastam do padrão de decisões baseadas em critérios de mera oportunidade e conveniência política.
Se assim o é, como se pode pretender que os juízes constitucionais possam furtar-se a decidir questões constitucionais sob critérios jurídicos de interpretação e sob pressupostos jurídicos que confiram limites de validade a sua função estatal de prestar jurisdição?
Não se pode, pois decisões judiciais baseadas no enfrentamento estritamente político ou pessoal de questões constitucionais afastam a função jurisdicional dos parâmetros político-jurídicos fixados pela própria Carta vigente e faz com que juízes e Tribunais acreditem ser legítimo autodenominarem-se como os únicos órgãos constitucionais com o poder de afirmar os padrões morais desejados pela Constituição, pelo que poderiam intervir até mesmo em decisões a que a própria Constituição e a legislação não lhe atribuem a última palavra.
5. Propostas de limitação democrática da jurisdição constitucional.
Tal perspectiva estritamente política e incontrolável da jurisdição constitucional nos instiga a tentar identificar alguns limites legitimamente passíveis de serem impostos àqueles que exercem a jurisdição constitucional, desde já ressaltando que, em vista da necessidade de adaptação de determinadas posturas oriundas de teorias estrangeiras a nossa realidade político-institucional, haverá – quando necessário – uma certa dose de adaptação de proposições produzidas em países onde já se superou, há muito tempo, muitos dos problemas sociais, políticos e culturais pelos quais ainda passamos no Brasil.
5.1. Judicial self-restraint.
Cabendo a cada órgão constitucional interpretar a Constituição e pautar sua atuação com base nela, ainda que, em caso de divergência, seja a palavra final do Judiciário, essa primazia não significa, porém, que toda e qualquer matéria só possa ser decidida pela jurisdição constitucional: ou porque não terá o Judiciário capacidade institucional para solucionar adequadamente determinadas questões que envolvam aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade que não têm no juiz o decisor mais qualificado ou porque ao Judiciário não é recomendável assumir o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis de sua decisão, pois, se de um lado, o juiz está preparado para realizar a justiça do caso concreto, a microjustiça, não tem ele condições, muitas vezes, de avaliar o impacto de suas decisões sobre um segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público.
Devem, portanto, os juízes, ao exercerem o controle substantivo da Constituição, moderarem-se e respeitarem as decisões políticas produzidas pelo legislador nessas condições, pois, no campo da constante colisão entre direitos fundamentais e a responsabilidade legislativa para a adequada conformação político-jurídica de tais direitos, havendo um caso concreto de colisão entre direitos fundamentais em que inexista um estado de arte (elementos fáticos, científicos, sociais, econômicos, tecnológicos, dentre outros) suficiente a gerar um grau de certeza e correção quanto a uma única decisão judicial para o referido caso, é recomendável que seja o mesmo estipulado como um hard case em que seja adotada uma postura de judicial self-restraint.
Entrementes, se a CF/1988 confere prioridade aos direitos fundamentais, estabelece a dignidade da pessoa humana como fundamento de nossa República e se nossa realidade institucional-constitucional ainda sequer conseguiu produzir a efetivação dos direitos de primeira dimensão, obviamente não estamos pregando que a adoção do judicial self-restraint aqui sugerido limite a função da jurisdição constitucional como desejam as teorias puramente procedimentalistas produzidas em outros países, sob conjunturas de desenvolvimento econômico, social, político e cultural completamente diversas de nossa realidade.
Ao contrário disso, nossa proposta é que o Poder Judiciário reconheça-se como limitado para decidir judicialmente questões estritamente políticas e/ou econômicas que pressupõem o conhecimento, a experiência e o manejo de informações e elementos que, naturalmente, escapam à função típica do Poder Judiciário e à formação profissional dos juízes.
5.2. Limitação da jurisdição constitucional pela própria Constituição que lhe cabe guardar – a vinculação constitucional.
Ainda que possa parecer uma enorme obviedade a pretensão de que o Poder Judiciário se submeta à Constituição no exercício de suas funções, especialmente quando esta função seja a de guardar a própria Carta, parece de enorme atualidade a orientação de Alexander Hamilton de que o poder de controlar a conformação de validade constitucional pelo Poder Judiciário não atribuiria a este a condição de ser superior ao Poder Legislativo, pois ambos os Poderes devem submeter-se às determinações constitucionais à medida que “o poder do povo (que institui a Constituição) é superior a ambos (os Poderes)” [45].
Há muito já se sustentava que cabendo às Cortes enunciar o sentido da Constituição, não poderia o Poder Judiciário apresentar “sua vontade” ao invés do seu julgamento, pois isso seria o mesmo que substituir as pretensões normativas do legislador constituinte originário pelas suas próprias pretensões judiciais, o que, obviamente, não pode ser o desejo da Constituição quando confere ao legislador o poder privativo de inovar a ordem jurídica positivada para concretizar suas “promessas constituintes”.
Esse antigo ensinamento é de extrema atualidade, por que se tem alegado que diante da necessária característica político-jurídica da jurisdição constitucional e de toda a diversidade e complexidade que marca a contemporânea aplicação do direito pelo juiz haveria que se suportar uma certa discricionariedade judicial sobre as regulações do legislador para o alcance da vontade constituinte.
Ao contrário! Obviamente, a Constituição não confere liberdade ao magistrado para atuar arbitrariamente em substituição ao legislador; primeiro, porque é o legislador o natural detentor da função constitucional de inovar a ordem jurídica; segundo, porque se de um lado a proteção da Constituição e toda a gama de “casos difíceis” que são submetidos à decisão do juiz exige-lhe postar-se como co-criador do direito a ser aplicado em cumprimento aos preceitos constitucionais vigentes, não se pode olvidar, por outro lado, que a atuação jurisdicional deve pautar-se por parâmetros jurídicos impostos pela própria Constituição criadora do direito justo.
Sim, porque conferir à jurisdição constitucional a competência de controlar o exercício do poder político não significa atribuir ao juiz constitucional o poder de realizar funções estritamente políticas, pois tal função de natureza jurisdicional deverá ser sempre realizada “de acordo com parâmetros materiais fixados nas normas e princípios da Constituição” à medida que só quando existem parâmetros jurídico-constitucionais de conformação do poder político podem os Tribunais apreciar a violação desses parâmetros.
Até porque a pretensão de um juiz ou Tribunal de, no exercício da função jurisdicional, atuar sob critérios eminentemente políticos, sem submeter-se aos ônus impostos pela Constituição aos agentes estritamente políticos – submissão a eleições, perda de mandato, impecheament, dentre outros – importaria em evidente violação ao sistema político-jurídico instituído pela Constituição vigente, pois esta não admite que o juiz, sob uma suposta aplicação criativa do direito, substitua as escolhas estritamente políticas feitas por outros órgãos constitucionais pelos seus próprios critérios pessoais de justiça ou por seus sentimentos de escolhas sociais mais adequadas.
Parece-nos correto, portanto, entender que o dever da jurisdição constitucional em decidir contra legem ou praeter legem – quando a lei ou a sua falta estejam em desconformidade com as determinações constitucionais -, não importa em conferir discricionariedade ao juiz, nem mesmo a uma Corte Constitucional, para decidir afastando-se da Constituição que fundamenta o direito vigente, sempre buscando neste os fundamentos para suas decisões, porque é um “direito fundamental do cidadão que o Estado cumpra a Constituição”, sendo obviamente aplicável essa aspiração constitucionalista de todo cidadão também ao Poder Judiciário.
A atribuição de controle de constitucionalidade ao juiz não importa em conferir-lhe liberdade para atuar ao largo do direito vigente, especialmente da própria Constituição, pois “a decisão e determinação do juiz, como decisão e determinação do Poder Judiciário do Estado, deve estar de acordo com o direito” e, diferentemente da função legislativa strictu sensu sob a qual se pode revogar uma norma positivada por meros juízos de discricionariedade, conveniência e/ou oportunismo – opa, oportunidade – política, “a atividade dos juízes constitucionais é uma atividade técnica de verificação da regularidade normativa segundo a Constituição” para corrigir a disfunção verificada no sistema jurídico com a produção de atos normativos e/ou concretos em desconformidade com a Carta.
Ou será que por que uma Corte tem o poder de “dizer o que é a Constituição”, teriam os juízes o poder para “dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa” em relação aos enunciados normativos fixados na Constituição positiva, criando uma Constituição paralela e desvirtuada das escolhas políticas feitas pelo legislador constituinte originário?
Ou por que os juízes são os guardiões da Constituição não se deve mais deles exigir que eles se vinculem às normas constitucionais positivas que lhes cabem guardar?
Ou conceber ao Judiciário, e especialmente ao STF a última palavra a respeito da interpretação e aplicação da CF/1988 implica em uma opção por tornar suas decisões infalíveis, sem que ao povo, o legítimo detentor do poder conferido aos juízes, seja conferida a possibilidade de exercer o seu poder legítimo e constitucional de contestar suas decisões?
Ou se responde contrariamente a tais questionamentos ou se torna tabula rasa a premissa constitucionalista de que é justamente essa vinculação ou esse pré-compromisso constitucional que não permite que se decida em qualquer direção no exercício do poder político, pois este é necessariamente passível de limitação pela própria Constituição.
Enfim, sejam quais forem as respostas que se confira aqueles questionamentos, uma coisa é certa: a atenção à vinculatividade do Texto Constitucional por parte de nossos juízes constitucionais evita questionamentos de legitimidade democrática nas decisões por eles proferidas, justamente porque assim o fazendo se impedem fissuras na institucionalidade constitucional vigente e evita-se que se decida contra a Constituição com o consequente esvaziamento de sua força normativa.
5.3. Respeito judicial à abertura do sistema de controle de constitucionalidade.
Existe nos Estados Unidos da América uma dualidade entre as teses por lá denominadas como “the final say” e “nonsupremacy”: enquanto na primeira entende-se que a Suprema Corte norte-americana deve, dentre suas funções, conferir a última interpretação da Constituição, coagindo os demais Poderes, na segunda corrente sustenta-se que a Corte deve respeitar as diversas interpretações produzidas pelos demais Poderes no âmbito de suas competências definidas pela própria Constituição, evitando-se com isso que o poder do povo de dispor sobre o direito possa ser cooptado por um possível despotismo do Judiciário.
Mesmo apesar de uma discussão de fundo a respeito das evidentes distinções existentes entre a Constituição norte-americana e a brasileira, parece-nos possível transplantar essa discussão tipicamente norte-americana para nossa realidade institucional quando verificamos que, apesar da CF/1988 reconhecer expressamente que a última palavra a respeito da interpretação e aplicação da Constituição é do STF, essa mesma Constituição, além de não estipular a Corte como um Tribunal exclusivamente constitucional – ao atribuir-lhe de forma apenas precípua a guarda da Carta –, prevê vários outros meios de controle de constitucionalidade, inclusive de natureza não jurisdicional.
Portanto, se deve o STF ter a última palavra a respeito da interpretação e da aplicação da Constituição, não se pode pretender caracterizar a Corte como uma espécie de super-guardião exclusivo da constitucionalidade, eis que cabe à Corte respeitar a vontade constitucional de não lhe atribuir exclusivamente tal poder, quando a própria CF/1988 não o estipulou como um Tribunal exclusivamente constitucional e estabeleceu um sistema de controle de constitucionalidade nitidamente misto.
Seria legítimo, portanto, pretender-se que, sob tal normatização constitucional, devam os juízes constitucionais respeitar a competência de cada um dos demais órgãos constitucionais denominados como “fiscais” da Constituição e reconhecer os limites dos efeitos de suas decisões, tal como definidos pela própria Carta e pela legislação processual vigente, pois isto contribui consideravelmente para a manutenção da legitimidade democrática que a própria Constituição atribui-lhe como principais, mas não exclusivos guardiões da Constituição.
Aliás, esse entendimento pode fundamentar-se, inclusive, no fato de tanto o legislador constituinte originário, quanto as diversas manifestações do legislador constituinte derivado que o sucederam, nos termos do art. 102, §2º da CF/1988, terem estabelecido que a eficácia vinculante das decisões do STF limita-se, subjetivamente, aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública brasileira.
É que assim o fazendo, a Constituição deu liberdade ao legislador e afastou-o do “autoritarismo que consistiria na criação de um Estado judicial (Jursdiktionstaat)” no Brasil, já que essa expressa definição dos limites da eficácia vinculante determinada pela CF/1988 deixou clara a pretensão de permitir-se um singular controle posterior da jurisdição constitucional pelos demais Poderes, seja através da possibilidade de que o Poder Legislativo emende a Constituição, através do exercício do amending power ou da possibilidade de que o Poder Legislativo e o Chefe do Poder Executivo – no exercício da função estritamente política de iniciativa legislativa – resistam às decisões proferidas pelos juízes constitucionais, através da edição de ato normativo idêntico ao que foi declarado inconstitucional, permitindo-se assim que cada órgão constitucional possua “a faculdade constitucional de persistir em sua interpretação constitucional, mesmo após decisão contrária do outro” .
Se, por um lado deve-se impedir que o Legislativo possa derrubar o poder dos juízes constitucionais mediante uma reforma meramente formal da Constituição, por outro lado “o peso do controle de constitucionalidade (por via judicial) deve ser compensado com o poder dos órgãos políticos de “responder” de algum modo aos juízes constitucionais, já que, de outro modo, a instituição do controle judicial perderia sua legitimidade” por não respeitar a condição do Legislador como intérprete/aplicador da Constituição, cujas “escolhas no campo da concretização constitucional merecem ser respeitadas, desde que não ultrapassem os limites demarcados pela Lei Maior”.
5.4. Fundamentação jurídica das decisões judiciais de controle de constitucionalidade.
Se não é mais admissível que se faça uma interpretação mecanicista da Constituição, também não será admissível que a interpretação político-jurídica da Constituição pelos juízes e Tribunais seja uma atividade essencialmente discricionária, pois elementos objetivos de interpretação apresentam-se como limites da interação entre os intérpretes e o Texto Constitucional e existem determinações constitucionais e processuais que impõem limites jurídicos ao exercício da função jurisdicional.
Nesse âmbito, a observância do direito processual constitucional vigente desempenha função de enorme relevância à legitimação da jurisdição constitucional à medida que o procedimento de tomada de qualquer decisão estatal deve ser conduzido de acordo com o direito processual vigente, pois, como um dos modos normais de agir do Estado, tem o processo a responsabilidade de influir nas decisões do Estado-juiz através da procedimentalização e da racionalização que lhes são inerentes.
É por isso que o poder de prestar a jurisdição constitucional não outorga aos órgãos do Poder Judiciário qualquer afastamento não controlável e injustificável dos limites processuais que lhe são estabelecidos pela própria Constituição e pela legislação processual infraconstitucional que a complementa, já que, sob um Estado constitucional democrático de direito, é inconcebível imaginar que o juiz, impositor da eficácia constitucional, a ela não se submeta por descumprir os seus preceitos processuais, instalando assim o arbítrio no exercício de sua função jurisdicional.
Mesmo que todas as circunstâncias contemporâneas imponham ao juiz constitucional uma atuação criativa e compromissada com os valores sociais normatizados pela Constituição, tal situação não o afasta da sua subordinação ao direito processual vigente, visto que este se trata de uma imposição da própria Constituição para limitar a atuação do Poder Judiciário e impedir o trato meramente pessoal das questões constitucionais e legais a serem decididas pelo Poder Judiciário.
Exemplo categórico de tal delimitação processual-constitucional imposta aos nossos juízes e Tribunais é a plena fundamentação e a ampla publicidade que se deve conferir às decisões judiciais, ttendo a determinação processual contida no art. 93, IX da CF/1988 a óbvia finalidade de tornar possível às partes, e a qualquer cidadão ou instituição, averiguar se a atuação jurisdicional detém racionalidade jurídica e se encontra suporte no ordenamento jurídico vigente, o que, em grande medida, evita eventual atuação judicial arbitrária.
Essa exigência processual-constitucional de publicidade, racionalidade e fundamentação das decisões judiciais, como direito garantia fundamental de todo cidadão brasileiro, inegavelmente contribui para impedir que o Poder Judiciário possa proferir uma decisão única e exclusivamente baseada em critérios pessoais de justiça dos juízes, eis que objetiva despersonificação da decisão judicial justamente para permitir a controlabilidade jurídica e crítica da decisão pelas partes e pelos demais cidadãos interessados.
É exatamente por isso que a decisão judicial de questões constitucionais somente encontrará legitimidade democrática se observados os preceitos constitucionais que determinam a adoção de um procedimento judicial decisório público, racional e fundamentado que permita a sua controlabilidade posterior e a ampla participação dos demais intérpretes da Constituição, estabelecendo assim um “diálogo em torno da Constituição” através do fomento de uma “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”.
6. Notas finais.
À guisa de conclusão, importante ressaltar que nem mesmo a proteção de direitos fundamentais pode fundamentar a pretensão de que a jurisdição constitucional seja exercida sem controle democrático anterior, concomitante e posterior, pois o poder estatal, seja de qual natureza for, só pode ser exercido nos termos da Constituição e em prol dos interesse dos cidadãos.
Por isso, é recomendável – ou melhor, exigível – que o Poder Judiciário esteja atento a alguns nortes de atuação que mantenham a função jurisdicional sob parâmetros de legitimidade democrática desejáveis pela Constituição, e pelo direito vigente, cabendo-lhe, ao exercer o controle substantivo da Constituição, moderar-se e respeitar as decisões políticas produzidas pelo legislador, sem olvidar que, mesmo detentor do papel de co-criador do direito, não pode afastar-se da vinculação e/ou do pré-compromisso fixado pela Constituição enquanto espécie de norma jurídica suprema, sendo o limite da sua interpretação constitucional o próprio texto das disposições constitucionais positivadas.
Afinal, justamente porque reconhecida a importância da jurisdição constitucional, deverá o Poder Judiciário observar o equilíbrio institucional desejado pela Constituição, através do reconhecimento judicial de que os demais órgãos constitucionais – especialmente o Legislador – precisam de mecanismos de “resposta” aos juízes constitucionais, já que de outro modo a instituição do controle judicial perde sua legitimidade.
Por fim, deve o Judiciário observar a normatização processual-constitucional que lhe é imposta, em especial a plena fundamentação e a ampla publicidade que se deve conferir às decisões judiciais, permitindo que às partes, e a qualquer cidadão ou instituição, seja possível averiguar a racionalidade e o acerto jurídico das decisões judiciais proferidas em nome da Constituição, permitindo, assim, uma jurisdição constitucional democrática, transparente e mais participativa.
DALTON SANTOS MORAIS é mestre em Direito Processual pela UFES
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