1 DE ABRIL DE 2010
Constituição Federal trouxe avanços importantes no desenho institucional das principais políticas públicas brasileiras. O modelo, do ponto de vista normativo, privilegia a gestão descentralizada e participativa em todos os níveis da federação. Nesse desenho, cabe ao nível nacional a normatização dos critérios e padrões para o exercício do direito, e aos estados e municípios, a gestão e a execução local de políticas públicas que afetam diretamente o cidadão.
Entretanto, passados mais de 20 anos da vigência desse modelo constitucional, persiste contraste nocivo característico da história brasileira: o distanciamento entre prescrições normativas e nossa prática institucional. Apenas como exemplo introdutório cito nossa saúde pública. Ainda que tenhamos um Sistema Único de Saúde (SUS) exemplar, continuamos a ver nossos hospitais e postos de saúde carentes de condições para oferecer serviço público condizente com as necessidades do cidadão brasileiro.
Argumento reiterado, poderia ser tratado mais uma vez como um problema de financiamento, que afeta a maior parte das políticas públicas. No entanto, além dos aspectos financeiros, há o aspecto institucional que deveria ser mais discutido no Brasil: o nosso federalismo.
Apesar de existirem experiências pontualmente bem-sucedidas, de maneira geral o Estado federativo brasileiro não tem conseguido desempenhar satisfatoriamente a tarefa de conciliar o modelo de gestão local das políticas públicas com a existência de padrões nacionais de investimento e de qualidade. Essa tarefa deveria ser central na discussão sobre o federalismo e sobre um novo modelo de desenvolvimento includente para o País, mas que vem tendo sua importância minorada. Tarefa que, no fundo, se refere à compatibilização de dois elementos centrais para o êxito das políticas públicas: legitimidade e eficiência.
Este artigo aposta que, para melhor concretizar os ideais de descentralização e democracia, eleitos constitucionalmente como diretrizes de nossas políticas públicas, é necessário revisar, e até mesmo substituir nossas práticas institucionais federativas. Aposta, nesse sentido, que a melhor configuração é aquela que privilegia práticas transfederais, sem que com isso se sacrifique o potencial experimentalista e exemplificador que somente a gestão local, descentralizada, pode trazer para todo o País.
Para tanto, divido o artigo em três partes. Na primeira, apontarei que a tarefa de conciliar gestão local com padrões nacionais de políticas públicas passa pela reconstrução do federalismo no Brasil, que ainda não conseguiu equilibrar a histórica tensão entre cooperação e concorrência. Apresentarei visão de federalismo baseado na “concorrência cooperativa” para justificar a necessidade de discutir mudanças estruturais em nossas práticas federativas.
Na segunda parte, ancorado em visão institucional sintetizada de dois setores de políticas sociais (saúde e assistência social) – que certamente serão, mais uma vez, alvo de discussão nas próximas eleições presidenciais – apresento alguns desafios para enfrentar o tema, atualmente. Destaco que o ideário de descentralização ainda não conseguiu satisfazer as necessidades do binômio legitimidade/eficiência. E por fim, na terceira parte, apresento diretrizes para medidas práticas, em vários níveis de dificuldade, que, se adotadas, serviriam para, sistematicamente, iniciar uma reconstrução profunda de nosso sistema federativo em matéria de políticas públicas.
Concorrência cooperativa: novas bases para a reconstrução do federalismo brasileiro.
A ideia de federação, na forma como a conhecemos hoje, é uma invenção estadunidense do século XVIII. Serviu, originalmente, para confortar interesses políticos e comerciais das colônias então recém-independentes. A combinação entre autonomia política das colônias e sua interdependência econômica e militar foi aspecto determinante para tanto.
Esta é uma feliz combinação que oferece a ideia de federação, como escreveu Alexander Hamilton (em O Federalista): “os interesses gerais são confiados à legislatura nacional; os particulares e locais aos legisladores dos estados”. Daí por que tem sido fórmula adotada crescentemente no mundo. Atualmente, 28 países adotam essa forma de governo, sendo que entre eles estão alguns dos países de maior extensão territorial do mundo, como, além dos Estados Unidos e do Brasil, Índia e Rússia (ao todo, 40% da população mundial vivem em federações). A fórmula federativa permite juntar unidade com grau de heterogeneidades, sejam elas territoriais ou culturais.
Mas isso não significa que haja consenso sobre a definição de federação. Cada país, cada tradição oferece um sem-número de possibilidades e dificuldades, sobretudo na relação entre União, entes federados e cidadãos. Isso ocorre com o federalismo – entendido como conjunto de ideias e reflexões acerca da forma de governo federação – no Brasil. Refletir sobre qual melhor modelo institucional para o nosso caso é fundamental.
Em nosso país, em razão de sua dimensão territorial, descentralização administrativa sempre foi, antes que uma escolha, uma necessidade. A dificuldade administrativa e de manutenção da unidade política sempre foi grande. Exemplo disso é que, já no período imperial – ainda que não tenha havido sistema federativo – houve descentralização (o Ato Adicional de 1834 concedeu maior “autonomia” legislativa – assembleias provinciais – e administrativa). Mas federalismo, apesar de pressupor descentralização, é mais do que isso. É forma de governo que, ao menos em tese, deveria andar junto com democracia, com abertura maior à diversidade.
A ligação entre descentralização e democracia, contudo, não é da tradição brasileira. Entre nós, apesar de necessária do ponto de vista da gestão governamental, a adoção da forma federativa de governo foi uma importação incompleta, a começar por sua origem. A federação brasileira surgiu, ao contrário de seu modelo inspirador norte-americano, de movimento do poder central que não contou com a participação das províncias (consubstanciado inicialmente no Decreto no 1, de 15 de novembro de 1889, posteriormente adaptado na Constituição de 1891).
A então República dos Estados Unidos do Brasil adotou um liberalismo às avessas. Ao invés de um federalismo em que o fundamento era a divisão do poder com o fim de garantir as liberdades negativas dos cidadãos diante do potencial opressor do poder do Estado (tal qual a descrição liberal clássica), por aqui, como interpreta Raymundo Faoro em Os Donos do Poder, o liberalismo político aliou-se às pretensões da oligarquia rural, e a reivindicação federalista nada mais foi do que concessão de autonomia àquele grupo.
O sistema, que Victor Nunes Leal (Coronelismo, Enxada e Voto) descreveu como coronelismo, consistia na aliança entre o Estado, que concedia poder, e as oligarquias locais, que garantiam votos. Houve, assim, crescimento significativo do poder dos governadores. Não é por acaso que a “política de governadores” do período ficou conhecida, em razão do poderio paulista e mineiro, como a “política do café com leite”.
Tal versão distorcida da descentralização foi interrompida pelo forte processo de centralização do poder da União na era Getúlio Vargas, sobretudo a partir de 1937. Com exceção da Constituição de 1934 – que trouxe número mínimo de competências concorrentes, mantendo, mesmo assim, concentração em torno da União – a distribuição de competências manteve o tradicional modelo dualista, rígido e estanque, com concentração de atribuições na União. Aos estados cabia apenas tratar de matérias não-presentes no vasto rol de competências da União. A discussão e a resolução dos grandes problemas nacionais contavam com pouca participação dos estados e dos municípios.
Radicalização desse modelo veio com o regime militar, que, além de repetir o modelo centralizador, rígido e estanque, reforçou a dependência dos estados menos desenvolvidos – sobretudo a partir de mudanças no sistema tributário –, limitou a autonomia administrativa dos governos estaduais e, principalmente, extirpou a autonomia política. Governadores e prefeitos das capitais passaram a ser eleitos indiretamente – o que perdurou até 1982.
A Constituição de 1988 veio com o objetivo de superar cenário de centralização e rigidez de competência. O sistema atual é considerado um dos modelos mais descentralizadores entre os países em desenvolvimento.
A descentralização se deu em nível legislativo, administrativo e financeiro. O rol de competências legislativas e executivas da União foi reduzido. Instrumentos de repasses, muitos deles constitucionalmente previstos, aumentaram significativamente o volume de recursos distribuídos (houve queda, num primeiro momento, da receita disponível da União, cenário que foi alterado, posteriormente, no governo do presidente Itamar Franco com a criação do Fundo Social de Emergência – que desvinculou 20% das receitas da União – e na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, com a criação de contribuições sociais, como a CPMF, que aumentaram a receita). Ocorreram, ademais, mudanças significativas na estrutura federativa básica. O modelo dualista tradicional cedeu espaço.
Os municípios, antes apenas dotados de relativa autonomia, passaram ao status de ente da federação. As competências privativas dos entes foram relativamente reduzidas, o que abriu caminho para um significativo rol de competências legislativas concorrentes e executivas comuns.
A passagem de olhos na dinâmica histórica de nosso federalismo permite apontar que, além da rigidez, há movimentos “hidráulicos” – mudanças nas configurações de competências entre os entes federados estão relacionadas com acréscimo de poder de uma esfera federativa em detrimento de outra. Quanto mais poderes para a União, menos para os demais entes federados e vice-versa. Há uma plasticidade sistêmica.
O mais importante, porém, não é identificar esses movimentos como movimentos institucionais abstratos; é observar que a discussão sobre o federalismo no Brasil andou distante do ponto central: as possibilidades concretas de os modelos institucionais criarem condições para a ampliação de oportunidades ao povo brasileiro e, por conseguinte, aumentarem a autonomia individual – seja na esfera privada, seja para participação política – por meio das políticas públicas democratizantes.
A discussão, frequentemente, não se concentra na efetividade de instrumentos federativos para gerar políticas públicas de qualidade. Nesse sentido, é importante desvelar contradições e possibilidades do nosso sistema federativo atual.
A Constituição de 1988 buscou contemplar duas concepções distintas de federalismo. De um lado, a tradição dualista estadunidense de repartição de competências legislativas e administrativas consoante a esfera de interesse, dos estados ou da União. Há nessa concepção maior tendência à competição entre os entes e à diversidade das condições de vida. E, de outro lado, a tradição germânica – iniciada na Constituição de Weimar e completada na Constituição de Bonn – em que imperam a integração e a unidade nacional, a partir de competências comuns e concorrentes. O princípio da “uniformidade das condições de vida” é característico desse modelo focalizado na cooperação federativa.
O debate nacional tem-se posicionado no sentido de que o Brasil precisa de um sistema federativo mais cooperativo. Há muita razão nesse ponto, especialmente se considerarmos nossa história institucional. Contudo, para isso não basta copiar o modelo integrado/cooperativo e abandonar o modelo concorrencial, como se ele fosse o vilão. É necessário reconstruí-los e criarmos uma prática mais adequada às necessidades brasileiras. É nesse sentido que surge a ideia de “concorrência cooperativa” como base para pensar em novos rumos para o pacto federativo nacional.
Se, de um lado, são necessárias flexibilizações e maior cooperação com o sistema federativo – para que, por exemplo, um cidadão que more em uma região mais pobre do País não esteja fadado ao insucesso em razão da baixa qualidade das políticas públicas que lhes são ofertadas –, de outro, em um país tão cultural e economicamente heterogêneo quanto o Brasil, é preciso fomentar métodos e conteúdos de políticas públicas divergentes, que venham a servir de caminhos e modelos futuros para todos. Isso se agrava em um cenário em que se privilegiou a descentralização administrativa e institucional, mas se manteve a centralização financeira e orçamentária.
A denominada concorrência coo¬perativa é modelo que enxerga na conciliação entre padrões nacionais de investimento e de qualidade mínimos e na gestão local caminho profícuo para reorientar o federalismo brasileiro, em face dessa aparente contradição. Esse é o ponto de partida que será utilizado para pontuar os desafios que a federação brasileira tem em matéria de políticas públicas e, posteriormente, as possibilidades de melhoramento desse quadro.
Desafios para conciliar padrões nacionais com gestão local
Existe um paradoxo no processo recente de descentralização político-administrativa no Brasil, ocorrida com a promulgação da Constituição Federal de 1988: a maior autonomia dada aos entes federados, sobretudo aos municípios, tem significado, na prática, falta de autonomia concreta. Apesar de o modelo corretamente privilegiar descentralização e gestão local (com a elevação dos municípios à categoria de ente federado, o aumento do poder de tributação de estados e de municípios e com o grande número de transferências automáticas), a maioria dos municípios brasileiros carece de capacidade de gestão administrativa em suas competências mais basilares.
Após a Constituição de 1988, que trouxe aumento significativo da autonomia municipal, houve um “surto” de criação de novos municípios. Parece que o pano de fundo coronelista continua presente. Alguns fatores ajudaram na manutenção desse cenário. A redação original do §4o do artigo 18 da Constituição Federal (que trata de incorporação, fusão e desmembramento de municípios) previa que os requisitos para a criação de novos municípios era matéria de lei complementar estadual. Além disso, mencionava o aumento do poder de tributação, consubstanciado, por exemplo, na majoração da alíquota de repasse do imposto de renda (que saiu de 17 para 22%) e na destinação dada ao IPI.
A título ilustrativo, num período de oito anos – compreendido entre o ano seguinte à promulgação do texto constitucional (1989) e o ano de aprovação da Emenda Constitucional no 15 (1997), que alterou a redação do §4o do artigo 18 da Constituição, para determinar que os requisitos voltados à criação de novos municípios passassem a ser estabelecidos por lei complementar federal ao invés de estadual – foram criados 1 320 novos municípios. Destes, cerca de 80% não apresentavam receita própria suficiente para emancipar-se. Mais de 90% desses novos municípios tinham menos de 20 mil habitantes, sendo que mais de 50% contavam menos de cinco mil. Dados do IBGE de 2005 indicam que naquele ano metade do PIB nacional estava concentrado em pouco mais de 1% dos municípios brasileiros.
Esse cenário ajuda a compreender a limitação gerencial, sobretudo em matéria de políticas públicas, para as quais é necessário traduzir finanças governamentais em eficiência gerencial. Isso explica em grande parte a ineficiência das políticas públicas brasileiras.
Contudo, tal ineficiência não gera a opinião de que é preciso reduzir o processo de descentralização. Esta, ao contrário, está ligada, em geral, a melhor alocação de recursos, a maior eficiência gerencial. E, mesmo que assim não fosse, é aplicável ao nosso caso o mesmo raciocínio que Alexis de Tocqueville apresentou ao descrever o federalismo dos EUA no século XIX, no sentido de que o mais admirável não eram os efeitos administrativos da descentralização, mas os efeitos políticos. A importância da descentralização também reside em seu aspecto democrático, consistente com a gestão de problemas locais em nível local, e em maior possibilidade de participação do cidadão diretamente atingido pelas políticas públicas.
Descentralização, em tese, seria a melhor fórmula de aliar legitimidade a eficiência em país de dimensões territoriais e peculiaridades culturais como o Brasil. No entanto, ainda estamos distantes de apresentar um grau satisfatório para tal binômio em nosso modelo federativo. E o problema não pode ser creditado apenas ao municipalismo.
A tradição de separação rígida de competência tem gerado interpretação distorcida do sistema de competências na Constituição. Competências comuns e concorrentes têm sido interpretadas de forma negativa (critérios para não fazer), como um limite de atribuições. O mínimo é concebido como o máximo. É necessário inverter essa situação. Competências comuns e concorrentes deveriam ser vistas como um conjunto mínimo de obrigações dos entes federados em matéria de políticas públicas. É preciso um sistema concorrencial proativo de gestão das matérias relevantes para o desenvolvimento econômico e social
O peso dessa proatividade não deve, todavia, ser repassado exclusivamente para estados e municípios. É importante que o poder central (União) assuma cada vez mais responsabilidades na condução de um novo federalismo, por meio do estabelecimento de padrões mínimos de qualidade e eficiência gerencial. Ao mesmo tempo, por meio de compartilhamento de informações, a União deve incentivar a existência de contramodelos que superem tais padrões mínimos e, com isso, sirvam de exemplos para o restante do País. A União não deve ter postura tímida, mas assumir cada vez mais o papel de liderança nacional em matéria de políticas públicas.
Em síntese, a redefinição prática do federalismo brasileiro passa pela difícil, porém possível conciliação entre padrões nacionais de investimento e de qualidade e a gestão local das políticas públicas de cidadania.
Para enfrentar essa tarefa conciliatória são necessários, em cada uma das políticas públicas brasileiras, três tipos de instrumentos:
a) sistemas nacionais de avaliação de políticas públicas,
b) mecanismos equânimes de distribuição de recursos, financeiros e humanos, entre os entes federados
c) procedimentos aptos a consertar a gestão repetidamente deficitária de determinada política pública no âmbito dos estados e, principalmente, dos municípios. Existem experiências pontuais interessantes no que se refere ao primeiro e ao segundo elemento. O terceiro ainda é incipiente.
Falta, entretanto, abordagem sistemática do conjunto. É o que demonstra observação de importantes políticas públicas.
Para exemplificar o argumento, apresentarei nas próximas linhas visão sumária, sem adentrar em detalhes setoriais, dos problemas e dos avanços em matéria federativa nas políticas públicas de saúde e de assistência social.
Saúde
Fruto, em grande parte, da luta do movimento sanitarista, sobretudo em contraposição a tendências privatistas, a Constituição de 1988 diferenciou-se ao tratar a saúde como direito universal. No modelo anterior, serviços de saúde prestados pelo Estado eram decorrentes de seguridade social devida ao trabalhador, e não ao cidadão em geral. Benefícios esses que eram geridos pelos antigos institutos de aposentadoria e pensão.
Com a Constituição atual, esse cenário alterou-se do ponto de vista conceitual, institucional, financeiro e em termos de responsabilização. Conceitualmente, a ideia de saúde como direito universal e dever do Estado modificou seu sentido “hospitalocêntrico” que lhe era dado anteriormente. Passou a compreender o trinômio atenção, prevenção e promoção à saúde. A gestão da saúde passou a ser tratada, institucionalmente, como uma responsabilidade solidária entre os entes da federação. As políticas públicas de saúde passaram a integrar rede regionalizada e hierarquizada, o Sistema Único de Saúde (SUS). O modelo foi concebido para ser gerido de forma descentralizada e com participação social.
O financiamento, por sua vez, ficou a cabo do orçamento da seguridade social de cada ente federativo. Ademais, a Emenda Constitucional no 19/2000 estabeleceu obrigatoriedade de aplicação, para cada ente, de recursos mínimos. No caso dos estados e do Distrito Federal, o percentual é de 12% da receita proveniente de imposto de sua competência, como por exemplo, o IPVA, e de repartição de receitas oriundas da União. Já em relação aos municípios e ao Distrito Federal, o mínimo a ser aplicado refere-se a 15% da receita dos impostos de sua competência, como por exemplo, o IPTU, e de receitas oriundas de repartição da arrecadação de impostos da União.
A responsabilização também foi prevista em sede constitucional. A mesma Emenda Constitucional no 19 inseriu na Constituição previsão de intervenção federal da União nos estados e no Distrito Federal e dos estados nos municípios, no caso de não serem aplicados os mínimos descritos no parágrafo anterior.
A saúde, com efeito, avançou significativamente na construção de desenho institucional representativo de um novo modelo de federalismo, baseado em maior cooperação entre os entes federados. Inaugurou, sobretudo com a entrada em vigor das Leis no 8 080 e no 8 142, ambas de 1990, referência que posteriormente foi adaptada por outras políticas públicas. No entanto, mesmo que, em geral, o SUS possa ser considerado desenho institucional bem-sucedido, ele não conseguiu conciliar de maneira adequada a relação entre padrões nacionais de investimento e de qualidade e gestão local eficiente. É ainda uma obra inacabada que, se completada, pode contribuir para a melhoria da qualidade da saúde pública no Brasil.
Em que pese a limitação das fontes de financiamento, existem limitações institucionais. O modelo parece ter apostado quase que exclusivamente no controle social como ferramenta de contemplar legitimidade e eficiência. É opção louvável, mas insuficiente para resolver, por si só, problemas gerenciais do ponto de vista federativo.
Ainda não há na saúde sistema de avaliação claro que propicie análise crítica da prestação dos serviços à população. Isso ocorre apesar de previsão, no artigo 198, §3o, de lei complementar, quinquenal, que, entre outras coisas, defina critérios de fiscalização, avaliação e controle de despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal.
A distribuição de recursos também é deficitária. Padece de, pelo menos, dois problemas: a falta de mecanismos equânimes e o alto volume de repasses automáticos de recursos, independentemente de contrapartidas – transferências fundo a fundo. O artigo 35 da Lei no 8 080/1990 prevê que, para o estabelecimento de valores a serem transferidos a estados, Distrito Federal e municípios, deveria ser utilizada a combinação de vários critérios, como por exemplo, o perfil demográfico e epidemiológico da população a ser coberta, a eficiência da gestão do setor no período anterior e o planejamento quinquenal.
Esses critérios deveriam ser aplicados, consoante o §1o desse dispositivo legal, em metade dos recursos destinados. A outra metade deveria ser distribuída conforme critério relativo ao número de habitantes. No entanto, quando a Lei no 8 142, também de 1990, estipulou as formas de alocação de recursos do Fundo Nacional de Saúde, estabeleceu que a parcela desse fundo destinada às ações de estados e de municípios deveria ser repassada de maneira regular e automática e que, enquanto os critérios do artigo 35 da Lei no 8 080 não fossem regulamentados, deveria ser aplicado exclusivamente o critério relativo ao número de habitantes. Até hoje o dispositivo não foi regulamentado.
Embora a fórmula de repasses automáticos tenha significado histórico, baseado no receio de que a discricionariedade na distribuição de recursos culminasse na manutenção de critérios políticos escusos, a aposta nesse mecanismo deve ser vista com cautela. Ainda que existam critérios básicos para a utilização de tais recursos pelos entes federados, a União não dispõe de instrumentos para análise qualitativa desses gastos. A discricionariedade praticamente passa do poder central para o poder estadual ou municipal.
Ainda que estabeleça responsabilidade solidária entre os entes federados perante o cidadão, não há no SUS mecanismos de responsabilização ou de melhorias no caso de um sistema municipal ou estadual que permaneça repetidamente aquém do esperado. A única hipótese mais radical de responsabilização do gestor estadual ou municipal é a intervenção federal no caso de não-aplicação do mínimo previsto na Constituição Federal. Trata-se, porém, de critério somente nominal, e não quantitativo.
O Supremo Tribunal Federal (Mandado de Segurança no 25 295), por exemplo, entendeu inconstitucional a decretação de estado de calamidade pública que autorizou, em 2005, a União, via Ministério da Saúde, a requisitar bens e serviços em hospitais da rede hospitalar do Rio de Janeiro. É necessário pensar mecanismos para que a população não seja refém de gestão que não consiga propiciar qualidade mínima às políticas públicas na área, mas que isso não se traduza em redução da autonomia federativa.
Assistência social
O texto constitucional procurou dar novo significado à assistência social. Ela passou, a partir de 1988, a possuir contornos institucionais de uma política pública baseada em direito social, e não mais em voluntarismo político. A Constituição vinculou-a ao sistema de seguridade social e estabeleceu, assim como na saúde, diretrizes de descentralização e participação e de controle social.
Existe, entretanto, grande confusão prática sobre o significado da assistência social. Transcorridos mais de 20 anos da promulgação da Constituição e mais de 15 anos da entrada em vigor da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), as ações assistenciais continuam fragmentadas, com ações desconexas em vários órgãos. Seus recursos financeiros, quando existentes, ficam completamente pulverizados.
A política social que a Constituição, especificamente, direcionou para os mais pobres e necessitados foi a assistência social. Entre as formas de implementação dessa política, a LOAS, em seu capítulo IV, destaca quatro tipos abrangentes: benefícios, serviços, programas e projetos de assistência social. A diferença desses tipos se refere ao grau de complexidade das ações. Contudo, várias ações que poderiam estar presentes no sistema de assistência social não estão, como por exemplo, o Bolsa-Família.
Tais programas, sobretudo em nível estadual e municipal, insistem em caracterizar ações que deveriam ser tratadas dentro do arcabouço definido pela assistência social como outras políticas, que, geralmente, procuram espelhar a ação de determinada liderança política. Ou seja, fora da assistência social, muitas vezes, há um conjunto de ações e de programas personalistas, pouco institucionais. Parecem fugir de requisitos mais claros de distribuição de recursos e de controle social das ações. Em geral, o conjunto dessas políticas discricionárias não possui mecanismos de controle, sobretudo federativos.
A questão federativa é caminho fundamental para a consolidação de um sistema de assistência não reduzido a paternalismos e clientelismos de lideranças locais ou regionais.
Mesmo assim, houve avanços significativos no setor. Em 2005, após anos de discussão pública sobre o tema, foi aprovada a criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Inspirado no SUS, o SUAS é tido como um modelo de gestão para todo território nacional, que integra os três níveis federativos. Objetiva consolidar um sistema descentralizado e participativo.
Em relação à avaliação da qualidade dos serviços socioassistenciais, foi criado o chamado índice SUAS. Esse índice é calculado para cada município, levando em conta vários critérios, tais como: taxa de pobreza, receita líquida municipal per capita e quantidade de recursos transferidos pelo Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS). Esse índice é adotado como parâmetro dos repasses vindouros.
Com isso, o SUAS modificou o repasse do FNAS, de maneira a compatibilizar a distribuição às necessidades e empenho da gestão local. Trata-se de avanço, sobretudo quando o comparamos com o sistema de repasses vinculados da saúde. A integração de sistema de avaliação com mecanismo de repasse equânime é fórmula produtiva que auxilia a racionalizar, sem interferir na autonomia dos entes federados.
Em relação a procedimento para auxiliar um sistema local quando este se encontra abaixo dos padrões nacionais, não existe previsão. Nesse ponto, também é necessária a criação de mecanismos institucionais.
Possibilidades institucionais
Os desafios apresentados acima, exemplificados com as políticas públicas de saúde e de assistência social, não podem ser vistos de forma isolada. Representam alguns dos problemas que a concepção tradicional de federalismo no Brasil não tem conseguido responder de forma satisfatória. A conciliação entre padrões nacionais de investimento e de qualidade e gestão local não é um problema teórico. É tema que necessita de construção de alternativas institucionais que aprofundem o perfil de concorrência cooperativa implícito no modelo brasileiro.
Na sequência, destaco algumas medidas, algumas mais complexas do que outras, que reproduzem em parte o debate e o posicionamento de vários setores do governo, do Congresso Nacional e da sociedade brasileira. Tais propostas, se vistas apenas isoladamente, podem parecer até mesmo triviais. Acredito, porém, que, se encaradas em conjunto, podem sinalizar um caminho para discussão. Eu as dividirei em três conjuntos: 1) organização da cooperação, 2) aprofundamento dos mecanismos de gestão compartilhada e 3) responsabilização das entidades e gestores públicos pela qualidade das políticas públicas prestadas.
Organização da cooperação federativa
A federação brasileira é um projeto inacabado. Mais de 20 anos após a promulgação da Constituição Federal, vários temas importantes referentes à relação federativa não foram traduzidos em lei. Exemplo relevante para a temática das políticas públicas é a ausência de regulamentação do artigo 23 da Constituição.
Esse artigo trouxe rol de competências comuns, sendo que entre elas estão, por exemplo, acesso à educação, ciência e tecnologia, proteção do meio ambiente, fomento a produção agropecuária e organização do abastecimento alimentar, saneamento básico e combate à pobreza. Na redação original da Constituição havia a previsão geral de que lei complementar fixaria normas para a cooperação entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios. A Emenda Constitucional no 53/2006, contudo, estabeleceu que leis complementares fixariam as normas para cooperação. A sutil diferença de redação indica que a partir de tal Emenda os assuntos presentes no artigo 23 deverão ter um regime de cooperação regulado separadamente, e não apenas por intermédio de uma mesma lei complementar. A dificuldade é que nada foi aprovado até agora.
Esses instrumentos seriam importantes para fixar as “regras do jogo” em termos federativos. Nelas, poder-se-iam apresentar, ainda que em linhas gerais, previsão de sistemas de avaliação setorial e de (re)distribuição equânime de recursos financeiros e humanos, a obrigatoriedade de compartilhamento público de informações, além da expressa previsão de mecanismo de colaboração federativa em momentos de dificuldades. De qualquer forma, mais importante que o instrumento legislativo é a iniciativa de assumir responsabilidades pelas qualidades das políticas, o que vem sendo feito ainda de forma tímida
Mecanismos de gestão compartilhada
Um dos maiores problemas para cooperação federativa voltada à realização de políticas públicas é a falta dos instrumentos adequados. Os instrumentos mais utilizados pelo poder central são os convênios e os acordos de cooperação técnica. Ambos, todavia, são muito frágeis para a consolidação de padrões mínimos de qualidade.
O sistema de repasse de verbas permanece entre dois extremos. De um lado, as transferências voluntárias, que eximem a União de realizar qualquer fiscalização ou controle de qualidade. E, de outro, as transferências voluntárias, que, em geral, não possuem critérios objetivos e que, em caso de não-cumprimento dos convênios, resultam na rescisão do “acordo” e na inscrição do ente federado em uma espécie de cadastro de maus pagadores. Ambos os modelos são nitidamente insuficientes. No caso do primeiro modelo, nada garante ao cidadão a prestação de uma política com mínimas qualidades. E, no caso do segundo, a solução é mais radical: pune-se o ente federado, punindo-se também o cidadão, que passa a ter recursos reduzidos para as suas necessidades.
A grande quantidade de demandas sociais que deveriam ser regulamentadas e transformadas em políticas públicas eficientes, implementadas pela administração, torna necessária a existência de mecanismos colaborativos que não devem ser vistos apenas como exceção. Alternativa para resolver esse impasse seria apostar em mecanismos cooperativos de gestão associada.
Existem instrumentos nesse sentido. O artigo 241 da Constituição, alterado pela Emenda Constitucional no 19/1998, trouxe a possibilidade de que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios se associem para a gestão de serviços públicos, com a possibilidade de transferência, total ou parcial, de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos. Os instrumentos constitucionalmente eleitos para essa tarefa foram: os consórcios públicos e os convênios de cooperação – ambos, até então, inexistentes no direito brasileiro.
Os consórcios públicos já foram regulamentados pela Lei no 11 107/2005 e, especificamente no âmbito da União, pelo Decreto no 6 017/2007 – que, inclusive, prevê que as transferências voluntárias da União devem privilegiar tais associações. São dotados de personalidade jurídica, seja de direito público ou de direito privado, e são formalizados por meio de contratos entre os entes envolvidos. Entre os pontos interessantes desse instrumento está a possibilidade do exercício de uma gestão associada, que se refere a planejamento, regulação e fiscalização de serviços públicos.
Essa gestão se dá por meio de órgãos trans-federativos, que associam os entes envolvidos na persecução das finalidades contratuais. Já aparecem bons resultados em consórcios municipais, porém não vêm sendo utilizados como instrumentos verticais de cooperação. No entanto, poderiam ser medidas interessantes no caso de políticas públicas locais que estão aquém do esperado.
Muitos acreditam que a necessidade de aprovação legislativa pelo ente consorciado é empecilho grande para utilização em maior escala, e com a participação da União. Ainda há preconceitos com a nova fórmula. Parte dos juristas, por exemplo, continua a limitar a leitura do instrumento ao assimilá-lo às estruturas e conceitos tradicionais do direito administrativo. É preciso mais ousadia e imaginação para traduzir esses mecanismos, tanto o consórcio público como o não-regulamentado convênio de cooperação, para construir alternativas institucionais com a finalidade de aprofundar um modelo federativo mais adequado ao desenvolvimento.
Responsabilização
A última possibilidade institucional apenas faz sentido se forem adequadamente implantadas as outras duas. Seria necessária a criação de parâmetros de avaliação claros e pactuados e de instrumentos de auxílio federativo capazes de capacitar e orientar a gestão eficiente das políticas públicas. Se mesmo assim esses instrumentos não funcionarem, seria o caso de pensar em responsabilização.
O sistema de responsabilização existente, em especial as leis de Responsabilidade Fiscal e de Improbidade Administrativa, é extremamente formal. Seria o caso de pensar em critérios qualitativos de responsabilização. Assim, por exemplo, a manutenção de políticas em níveis reiteradamente insatisfatórios, juntamente com a omissão do agente político no que tange à busca dos auxílios federativos, poderiam ser tipificadas como ato de improbidade administrativa. Essa é discussão complexa que se cogita para fomentar o debate.
A hora de uma reforma mais ampla
Pensar em políticas públicas de qualidade não prescinde de discussão séria sobre a reconstrução de nosso federalismo. Essa foi a mensagem buscada neste artigo. Não basta tentar encontrar mecanismos paliativos. É preciso enfrentar frontalmente a questão institucional subjacente.
Parte da discussão sobre o tema encontra-se presa às questões fiscais/financeiras e outros aspectos conceituais. Ambas as perspectivas são incompletas se não pensarmos nos fundamentos incompletos e nas deficiências institucionais que a nossa federação possui. Da mesma forma, também é ilusório imaginar que a solução para problemas complexos, que exigem reflexão política, serão resolvidos com a judicialização dos temas atinentes às políticas públicas. É importante pensar em reforma mais ampla.
Temos pela frente, mais uma vez, a oportunidade de lançar o tema em debate nacional. As eleições deste ano podem ser espaço para discussão de assuntos dessa estirpe. Não podemos perder a chance! •
Vitor Pinto Chaves é mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Professor convidado da FGV-Direito-Rio. Procurador federal. Foi chefe de gabinete da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República de agosto de 2008 a outubro de 2009.
Nenhum comentário:
Postar um comentário